Com as novas redes de fibra óptica protegidas por feriado regulatório, não há garantia de que os R$ 100 bi doados às teles serem investidos em banda larga
Por Marina Pita*
A palavra feriado soa como música aos ouvidos do trabalhador. Se não evoca aquele dia de folga mais do que merecido, funciona – especialmente para os autônomos, precarizados e terceirizados – como dia pra tirar o atraso de algumas (muitas) tarefas.
Mas “feriado” também pode significar um assalto à mão armada dos recursos públicos. É o que vai acontecer se o PLC 79/2016, que contém a proposta de alteração da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), for sancionado por Michel Temer.
O termo “feriado regulatório” tem sido usado pelos técnicos de diferentes áreas para identificar a suspensão de determinada regra ao longo de um período.Seria o mesmo que dispensa temporária da obrigatoriedade de uma norma.
No caso do setor de telecomunicações, este feriado foi estabelecido pela Resolução nº 600, editada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2012.
Tal resolução criou o Plano Geral de Metas de Competição (PGMC), estabelecendo obrigação de acesso e fornecimento de recursos de rede, além da oferta de produtos de atacado no caso de áreas onde não há competição adequada entre os fornecedores de serviços de telecomunicações.
Em outras palavras, em localidades onde uma empresa tem tanto poder de mercado que não há livre-concorrência, essa empresa tem obrigação de liberar o acesso à sua rede para as concorrentes (20% da capacidade).
Imagine que uma única empresa controla o acesso ao único poço de água de uma cidade. O que o PGMC faz é obrigar que a empresa controladora do poço garanta acesso a ele a todas as outras empresas que vendem água engarrafada, cobrando um aluguel por isso. Assim, as demais empresas também poderão vender garrafas d’água.
Tomando a alegoria do poço para explicar o funcionamento no caso das redes, as novas redes de fibra ótica (construídas a partir de 2012) são os poços, enquanto a infraestrutura da última milha, que chega até a casa das pessoas, são as garrafas d’água.
Acontece que, a pedido das empresas de telecomunicações, no PGMC, as novas redes de acesso de fibra óptica (o poço) não precisam ser compartilhadas durante nove anos porque estão protegidas pelo feriado regulatório.
O argumento das empresas para suspender a obrigatoriedade de compartilhamento é garantir o retorno do investimento já realizado.
Mas o resultado é que essas redes, tão necessárias para a ampliação do acesso à Internet no Brasil, ficarão protegidas até 2021 – o que significa quase uma década de atraso.
Por que isso importa?
O Projeto de Lei 79/2016, em tramitação no Senado e que ficou conhecido por entregar R$ 100 bilhões em infraestrutura pública para as empresas de telecomunicações, faz isso exatamente propondo que as operadoras, em troca, invistam valor equivalente no setor.
Segundo o discurso das empresas, seria essa a forma de garantir justamente a ampliação da oferta de banda larga no país, via a construção de novas redes de fibra óptica.
O PL das Teles, entretanto, não explicita como esse investimento deverá ocorrer. Fala apenas – de forma genérica – que a definição deverá ser do Poder Executivo e da Anatel, “priorizando áreas sem competição adequada e considerando a redução das desigualdades”.
Assim, além de estarmos a mercê de um governo ilegítimo e de uma agência reguladora que há muito tempo prioriza os interesses das operadoras em vez dos usuários, o resultado da combinação entre o PLC 79 e o feriado regulatório previsto na resolução da Anatel é a de que esses investimentos, que serão na prática financiados com recursos da União, serão feitos em infraestrutura que sequer será compartilhada para gerar uma ampliação da oferta.
Quando uma empresa investe em fibra óptica com o dinheiro dela, pode até ser compreensível o estabelecimento de um feriado regulatório para proteger o investimento. Mas, neste caso, o dinheiro a ser aplicado em novas redes de acesso de fibra óptica será da própria União.
E, se a regra do feriado regulatório para novas redes se mantiver, a estrutura da Internet no Brasil se manterá como está, ou seja, excludente.
Vale lembrar ainda que a construção de infraestrutura de fibra óptica requer abertura de vias (ruas avenidas, estradas, rodovias), instalação de postes e de cabeamentos.
Se uma empresa que oferta este serviço na ponta (última milha) não tem acesso a esta infraestrutura, de duas uma: ou não oferecerá o serviço, o que acarretará em falta de competitividade no mercado e prejuízos ao cidadão, ou terá que edificar sua própria infraestrutura, o que significa desperdício de recursos públicos, impacto ambiental, transtornos para os usuários das vias e mais poluição visual.
Divergências no setor
A questão do compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações construída com recursos púbicos não é um problema só aos olhos das organizações da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos dos usuários.
O vice-presidente da TIM, Mário Girassole, também já questionou o modelo, em seminário do setor, em meados de fevereiro.
“Isso não pode ser. Essa infraestrutura em áreas menos favorecidas, implantada com recursos que seriam da União, precisa de um regime de compartilhamento regulado que não preveja feriado regulatório para que a transição se torne neutra do ponto de vista competitivo”, disse ele, conforme informação publicada no site Convergência Digital.
Também houve reclamação por parte da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint), que representa pequenos e médios empresários que operam no mercado de distribuição de acesso a vários locais ignorados pelas grandes operadoras.
Aumento da concentração
Considerando que há uma aposta dos analistas na “consolidação do setor de telecomunicações” – expressão usada para dizer que haverá fusões e aquisições e, portanto, concentração de mercado –, estruturar uma política para investimento em banda larga que garanta a competitividade é mais do que nunca fundamental.
Se somarmos a isso o fato de que, há anos, especula-se que a TIM deve ser vendida e que a Oi está falida, esta política se torna ainda mais relevante.
De acordo com o relatório da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) “Ending Digital Exclusion: Why the Acess Divide Persists and How to Close It”, de abril de 2016, o valor do compartilhamento de infraestrutura é subdimensionado e deve ser uma das premissas de países que pretendem acabar com a exclusão digital:
“Países em desenvolvimento podem poupar bilhões e aumentar a velocidade do acesso universal à banda larga por meio de compartilhamento de infraestrutura.”
Assim, é fundamental estabelecer que a infraestrutura de telecomunicações usada para banda larga não será protegida por feriado regulatório. É o básico. E nem isto consta no PLC 79/2016.
Não há desculpas para gastarmos tão mal um recurso que é do povo brasileiro.
Banda larga é cada vez mais um meio para a garantia de direitos; não deve ser meramente tratada como um negócio para poucos, onde os conchavos são feitos a portas fechadas e sem debate com os demais setores interessados.
É por essas e outras que o PLC 79 não pode ser aprovado como está no Senado Federal. Que os senadores percebam rapidamente o tamanho do crime que estão cometendo.
*Marina Pita é jornalista e compõe o Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social