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Movimentos sociais e manifestantes de novo na mira do Congresso

PL do deputado Delegado Edson Moreira reinsere “motivações político-ideológicas” e a possibilidade de enquadrar manifestantes na Lei Antiterrorismo

Por Camila Marques e João Ricardo Penteado*

Quando milhões de pessoas tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 para protestar contra a classe política, ninguém imaginava que uma agenda de retrocessos no campo dos direitos civis seria colocada em prática no país, ameaçando direitos como o da liberdade de expressão, de associação e de protesto.

Nos últimos anos, enquanto o Executivo tem patrocinado repressões policiais cada vez mais violentas contra manifestantes e o Judiciário tem se notabilizado por expedir decisões que endossam tais ações (como a que responsabilizou um fotógrafo por ter sido alvo de uma bala de borracha no olho), ao Legislativo tem cabido a tarefa de propor leis restritivas ao direito de protesto.

Segundo monitoramento da ARTIGO 19, há no mínimo 58 projetos de lei no Congresso Nacional que almejam, em menor ou maior grau, criar algum tipo de embaraço a manifestantes. Ao menos 22 deles foram propostos de 2015 para cá. Há projetos que pretendem impor a necessidade de autorização para a realização de protestos, penas mais graves para delitos ocorridos em manifestações e a proibição do uso de máscaras por manifestantes.

Movida sob o pretexto do combate aos black blocs, essa reação “conservadora” dos três Poderes busca suprimir direitos civis fundamentais, configurando um cenário bastante preocupante. No caso do Legislativo, esse ímpeto atingiu seu ápice em fevereiro de 2016, quando da aprovação da emblemática Lei Antiterrorismo.

A criminalização de mobilizações populares

Um fato bastante curioso que se sobressai na história da aprovação da Lei Antiterrorismo é que seu projeto de lei de origem, o PL 2016/2015, não foi concebido por nenhum deputado das alas mais reacionárias do Congresso, como se poderia esperar. Sua autoria foi compartilhada pelos Ministérios da Justiça e da Fazenda, sob a chancela da Presidência República, à época ocupada pela presidenta Dilma Rousseff.

Outro fato curioso diz respeito à participação da principal pasta de assuntos econômicos na iniciativa. A explicação, no entanto, consta na própria justificativa do projeto, que apontava a necessidade de se combater o financiamento ao terrorismo tal qual preconizam “acordos internacionais firmados pelo Brasil, sobretudo em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (Gafi)”.

O Gafi é um organismo internacional multilateral do qual o Brasil faz parte e que recomenda a criminalização do financiamento do terrorismo na legislação de seus países membros. O “castigo” para aqueles que não adotam a medida é receber uma avaliação negativa, um “selo” que sinaliza a investidores que o país não representa um ambiente seguro para negócios.

Sob grande insatisfação de movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, muitos dos quais de sua base de apoio, o Governo Federal conseguiu encaminhar a aprovação da Lei Antiterrorismo apenas meses antes da realização das Olimpíadas no Brasil, indo inclusive muito além das exigências do Gafi.

As críticas à lei se amparam, basicamente, em dois eixos. Do ponto de vista jurídico, a principal é a de que o texto dos artigos e incisos é genérico o suficiente para dar margem a interpretações distorcidas por parte de juízes, que poderiam aplicá-las de forma arbitrária. Outra crítica neste âmbito é a de que todas as ações proibidas pela Lei Antiterrorismo já encontram tipificação legal nos dispositivos da inchada legislação penal brasileira. Além disso, questiona-se também as altas penas que a lei estipula a pessoas que sejam enquadradas no novo crime.

Do ponto de vista político, o grande receio é o de que a lei seja usada para enquadrar movimentos sociais e manifestantes, sobretudo porque alguns precedentes dessa natureza já foram registrados.

Recentemente, quatro militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram condenados por formação de organização criminosa. A decisão, tomada pela Justiça de Goiás em agosto de 2016, configurou a primeira vez que a tipificação foi usada contra o movimento.

Ampliando o escopo para o resto do continente, um caso que se tornou célebre ocorreu no Chile em 2003, quando sete indígenas mapuches foram condenados por terrorismo a penas que variaram entre cinco e dez anos por ações ocorridas em regiões de grande conflito fundiário com ruralistas locais. Em 2014, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu sentença condenando o Estado chileno pelo uso da lei antiterrorismo no episódio, determinando ainda que os indígenas fossem soltos e recebessem reparações.

Diante de todos esses fatos, e da nova conjuntura das ruas surgida a partir de 2013, fica bastante nítida a intenção escusa sob a qual a Lei Antiterrorismo foi criada: a criminalização das mobilizações populares.

Nova ameaça

A intensa pressão de movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil sobre o projeto que criava a Lei Antiterrorismo acabou fazendo com que houvesse algumas modificações no texto sancionado pela Presidência da República.

Algumas delas foram a exclusão do trecho que colocava “motivações político-ideológicas” no rol de motivos que caracterizam uma ação terrorista e a inclusão de um parágrafo que determina que movimentos sociais e manifestantes não poderiam ser alvo da aplicação da lei. De certa maneira, as duas modificações aliviaram um pouco o potencial lesivo da Lei Antiterrorismo aos direitos à liberdade de expressão, de associação e de protesto, ainda que não totalmente.

No entanto, passado pouco mais de um ano da sanção presidencial, um novo projeto de lei ameaça anular esses dois pontos específicos. Proposto pelo deputado Delegado Edson Moreira (PR-MG), o PL 5.065/2016 pretende reinserir “motivações político-ideológicas” no texto da Lei Antiterrorismo e eliminar a ressalva que exclui movimentos sociais e manifestantes de serem enquadrados como terroristas.

O texto está, neste momento, sob apreciação da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, e deve ser submetido a votação em breve. No último dia 30 de maio, uma audiência pública sobre o projeto contou com a participação de representantes da Polícia Federal, da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do Exército, além de membros da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, da Rede Justiça Criminal e da ARTIGO 19. Os três últimos ressaltaram as ameaças aos direitos civis que o PL 5.065/2016 representa caso seja aprovado, o que tornaria o potencial de violação da Lei Antiterrorista ainda maior.

Em um período marcado por retrocessos em diversas áreas, e com uma crise política instalada no centro do poder do país, cujos desdobramentos ainda são motivos de especulação, é de fundamental importância que movimentos sociais, ONGs e demais entidades do campo progressista mantenham o PL 5.065/2016 no radar.

Trata-se de mais um enorme retrocesso em potencial sendo gestado e um recrudescimento ainda maior do ímpeto de criminalização de mobilizações populares, cujas consequências, caso o projeto ganhe vida, podem ser devastadoras para os direitos à liberdade de expressão, de associação e de protesto – e, por consequência, para toda a sociedade brasileira.

*Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19; João Ricardo Penteado é coordenador de comunicação da mesma ONG.

Justiça Federal suspende concessão de rádio dos parlamentares Jader e Elcione Barbalho

Com a decisão, o TRF da 1ª Região fez valer a norma constitucional, que veda que políticos no exercício de mandato sejam proprietários de concessões. Uma vitória histórica da luta pelo controle social da mídia e contra o monopólio dos meios de comunicação.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, suspendeu a concessão da Rádio Clube do Pará (PRC5), de propriedade do senador Jader Barbalho (PMDB-PA) e de sua ex-esposa, a deputada federal Elcione Barbalho (PMDB-PA).

Desde a sexta-feira, dia 9 de junho, a Rádio Clube do Pará está fora do ar, por determinação do TRF1, em caráter de antecipação de tutela. Em caso de descumprimento, será imposta multa pecuniária de R$ 50 mil por dia. A rádio deve ficar fora do ar durante o trâmite do processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF) no Pará, que contesta as concessões de rádio e televisão de posse de políticos detentores de mandato eleitoral, pois estas são vedadas pela Constituição brasileira.

No caso de mantida a liminar e acatadas as razões de mérito, as consequências podem resultar inclusive na perda dos mandatos do senador e da deputada federal, donos da emissora.

A liminar foi concedida em razão do Agravo de Instrumento nº 0012093-34.2017.4.01.0000/PA (processo original nº 0027003-40.2016.4.01.3900), interposto contra decisão proferida pela 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Pará em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União Federal, a Rádio Clube do Pará PRC-5 Ltda., Elcione Therezinha Zahluth Barbalho e Jader Fontenelle Barbalho.

A decisão de suspender a Rádio Clube foi proferida pelo desembargador federal Souza Prudente no dia 31 de maio, acatando, portanto, recurso do MPF que buscou reformar a decisão de 1ª instância da Justiça Federal em Belém, tomada em 2016. A decisão impede a emissora de fazer transmissões.

O senador alegou em sua defesa no processo que seu nome não constava mais no quadro de acionistas da rádio, mas, para o TRF1, a manutenção de outros membros da família no controle societário indica possível manobra para ocultar a identidade dos reais controladores. No lugar do senador figura o nome de uma sobrinha, Giovana Centeno Barbalho.

O MPF ajuizou cinco ações judiciais para cancelar as concessões de radiodifusão que têm como sócios detentores de mandatos eleitorais no Pará e no Amapá. Para a instituição, os deputados federais Elcione Barbalho e Cabuçu Borges (PMDB/AP) e o senador Jader Barbalho violam a legislação ao figurarem no quadro societário das rádios e de uma emissora de televisão.

“O fato de ocupante de cargo eletivo ser sócio de pessoa jurídica que explora radiodifusão constitui afronta à Constituição Federal”, diz o MPF no processo judicial, movido em Belém pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão.

Foram pedidos pelo Ministério Público Federal na ação o cancelamento das concessões de radiodifusão ligadas aos políticos, a condenação da União para que faça nova licitação para tais concessões e a proibição de que eles recebam qualquer outorga futura para exploração dos serviços de radiodifusão.

Além da Rádio Clube do Pará, as outras quatro emissoras de rádio que podem ter a concessão cancelada são a Beija-Flor Radiodifusão, o Sistema Clube do Pará de Comunicação, a Carajás FM e a Belém Radiodifusão, mais a Rede Brasil Amazônia de Televisão. Com exceção da Beija-Flor Radiodifusão, do deputado Cabuçu Borges, as demais emissoras pertencem a Elcione Barbalho e a Jader Barbalho, todas operando no território paraense. Já a rádio de Cabuçu Borges transmite na região sudeste do estado.

O que diz a Constituição

A posse de veículos de radiodifusão por políticos é um fenômeno presente em diversos países em desenvolvimento e identificado no Brasil pela expressão “coronelismo midiático”. Em junho de 2016, a ONG Repórteres Sem Fronteiras destacou Aécio como “coronel” da mídia em um relatório que critica a “parede invisível formada por dinheiro e conflitos de interesse” que afeta a liberdade de informação.

A investigação sobre a propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos foi iniciada pelo MPF em São Paulo, a partir de um levantamento feito em todo o país das concessões de radiodifusão que tinham políticos como sócios. A partir disso, várias ações foram iniciadas em vários estados.

Já existem decisões judiciais em tribunais superiores retirando as concessões das mãos de parlamentares, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal – que também já se manifestou contrário ao controle de políticos sobre veículos de comunicação.

Segundo o artigo 54, inciso I, a, da Constituição Federal, deputados e senadores não podem celebrar ou manter contratos com concessionárias de serviço público, o que inclui as emissoras de rádio e TV.

Já o inciso II, a, do mesmo artigo, veda aos parlamentares serem proprietários, controladores ou diretores de empresas que recebam da União benefícios previstos em lei. Tal regra também impede a participação de congressistas em prestadoras de radiodifusão, visto que tais concessionárias possuem isenção fiscal concedida pela legislação.

A situação revela ainda um claro conflito de interesses, uma vez que cabe ao Congresso Nacional apreciar os atos de concessão e renovação das licenças de emissoras de rádio e TV, além da responsabilidade de fiscalizar o serviço. Dessa forma, há histórico de parlamentares que inclusive já participaram de votações no Congresso aprovando outorgas e renovações de suas próprias empresas.

Assim, segundo o Ministério Público Federal, o cancelamento das concessões citadas visa evitar o tráfico de influência por meio das emissoras e proteger os meios de comunicação da ingerência do poder político.

AGU tenta barrar vitórias judiciais

A Advocacia-Geral da União (AGU) requereu em outubro de 2016 ao ministro Gilmar Mendes, do STF, “medida cautelar incidental” com o objetivo de suspender o andamento de todos os processos e decisões judiciais que tenham relação com a outorga e a renovação de concessões de rádio e televisão mantidas por empresas de parlamentares. A medida pretende conter uma série de vitórias que as entidades do campo da democratização da comunicação estão obtendo nos estados, como, por exemplo, a decisão  por meio de liminar que determinou a interrupção das transmissões da Rádio Metropolitana Santista Ltda (1.240 MHz), de propriedade de Antônio Carlos Bulhões (PRB-SP), em agosto passado.

Em resposta à ação da AGU, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), autor de duas ações no Supremo Tribunal Federal que tratam deste tema, em conjunto com representantes do Intervozes e da Artigo 19, organizações que solicitaram participar das ações como amicus curiae, entregaram ao ministro Gilmar Mendes, relator das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 246 e 379, uma petição solicitando que ele, antes de analisar o pedido da AGU, conceda as medidas liminares solicitadas em ambas as ADPFs.

As arguições ajuizadas no STF estão fundamentadas no fato de que a Constituição é descumprida quando atos do Executivo permitem que políticos com mandato eletivo sejam beneficiados com a outorga de concessões de emissoras de rádio e de televisão. A ADPF 246 foi protocolada em dezembro de 2011, enquanto que a ADPF 379, em dezembro de 2015. Ambas contam com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República e aguardam pela apresentação de voto de Gilmar Mendes.

Coronéis da Mídia

O projeto “Excelências”, vinculado ao Transparência Brasil, aponta que, na atual legislatura na Câmara dos Deputados (2015-2019), 43 deputados são concessionários de serviços de rádio ou TV, o que representa 8,4% do total dos membros da Casa. Proporcionalmente, o Senado Federal é ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 senadores são concessionários – o que representa 23,5% dos membros da Casa. Entre estes senadores, além de Jader Barbalho, figuram nomes como Edison Lobão (PMDB-MA), Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Agripino Maia* (DEM-RN), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Rocha (PSDB-MA).

Os números apresentados pelo projeto “Excelências” revelam que, para além da vinculação juridicamente registrada de políticos com os serviços de radiodifusão, existe ainda casos em que os parlamentares mantêm influência sobre as empresas a partir de “laranjas” ou de parentes que ocupam posições no quadro societário dos veículos de comunicação.

O fato de concessões públicas estarem no poder de políticos resulta em falta de isonomia, em desrespeito ao pluralismo e em uma grave ameaça ao interesse público, pois o sistema brasileiro de regulação da radiodifusão não prevê a existência de um agente independente para deliberar sobre a distribuição do espectro eletromagnético. Deste modo, tal deliberação é realizada por um procedimento licitatório no qual os parlamentares do Congresso Nacional ocupam um papel central, analisando as outorgas realizadas pelo Poder Executivo. Assim, os parlamentares que mantém concessões de rádio e TV são responsáveis por apreciar os atos de outorga e renovação de suas próprias concessões e permissões de radiodifusão.

*Para livrarem-se de possível perda da concessão de radiodifusão, o senador Agripino Maia e seu filho, o deputado Felipe Maia, venderam a participação no Sistema Tropical de Comunicação. Porém, a concessão continua nas mãos de familiares, assim como ocorreu entre a família Barbalho.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação, com informações do Ministério Público Federal no Pará

WhatsApp e Marco Civil da Internet são debatidos em 2º dia de audiência no STF

Institutos defendem direitos do cidadão na internet e o fortalecimento da rede como espaço de democracia

No segundo dia de audiência pública para discutir dispositivos do Marco Civil da Internet e a possibilidade de decisões judiciais impedirem o funcionamento do aplicativo WhatsApp, realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na segunda-feira, dia 5, o representante do Laboratório de Pesquisa em Direito Privado e Internet da Universidade de Brasília (Lapin-UnB), Thiago Guimarães falou sobre técnicas debatidas para eventual quebra de dados sigilosos em mensagens de aplicativos como o WhatsApp.

Thiago Guimarães explanou sobre o chamado ataque man-in-the-midle (MITM, “ataque homem no meio”, em Português) é “provavelmente a alternativa mais interessante do ponto de vista do investigador”. No caso, Thiago referiu-se à modalidade do ataque MITM que cria uma interceptação que permite a um terceiro ator acompanhar as mensagens de forma invisível. Uma outra modalidade desse ataque permite forjar mensagens para forçar uma conversa específica.

No caso de aplicativos de mensagens, a forma de realizar isso é quando um usuário está off-line, porque é nesse momento que há uma troca de chaves. “Para fazer esse ataque, bastaria forçar esse usuário ficar off-line”, relatou.

O especialista advertiu ainda para o risco na utilização do método backdoor (porta dos fundos), em que o próprio desenvolvedor do aplicativo permite a um terceiro ter acesso ao conteúdo criptografado, porém esse tipo de método levanta a questão da confiança quanto ao resguardo dos dados e gera desconfiança do consumidor. Ele frisou que mesmo a Agência Nacional de Segurança Norte-Americana (NSA), considerada uma das intuições mais seguras do mundo, teve ferramentas de investigação e espionagem eletrônicas furtadas, o que torna questionável a possibilidade de se criar um ambiente 100% seguro para armazenar a guarda de chaves-mestras para quebra de criptografia.

Já o coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-Rio, Pablo de Camargo Cerdeira disse que em tese, a criptografia é inquebrável, mas na prática nem sempre isso acontece. “É possível violar implementações criptográficas. Pode haver falhas do programador na implementação, do hardware e do software que estava fazendo a criptografia. Pode acontecer em várias etapas de modo a permitir a quebra do sigilo.

Pablo afirmou que o WhatsApp poderia fazer mudanças no seu software para permitir a interceptação em caso de decisão judicial, mas há impedimentos. “Não existe WhatsApp só no Brasil. A decisão teria de ser global, senão seria ineficaz. Também há conflitos éticos e jurídicos, porque o WhatsApp diz aos seus usuários que a comunicação é 100% segura e criptografada de ponta a ponta”.

Ele ainda reforçou as questões econômicas que estariam na discussão caso o WhatsApp fosse obrigado a entregar seus dados de comunicação, a empresa ficaria em desvantagem com os concorrentes, como Telegram e Signal, pois haveria migração dos usuários para outros aplicativos. “Também é improvável que a falha de segurança fique restrita a um único usuário, o que possibilita os vazamentos e os danos são globais”, destacou.

O coordenador ainda ponderou “Hoje em dia, é impossível ser seguro sem a criptografia. Qualquer violação da criptografia coloca em risco o sigilo”.

Defesa de bloqueio de aplicativos

Do outro lado do debate Alexandre Rodrigues Atheniense, advogado e integrante da Comissão Especial de Direito da Tecnologia e Informação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), afirmou que o Brasil não pode abdicar de sua legislação em prol de empresas estrangeiras. Ele criticou a relutância das empresas internacionais de comunicação digital que atuam no Brasil em cumprirem o que determina a legislação brasileira.

Segundo ele as alegações de empecilhos de ordem técnica, como a criptografia de informações, podem esconder outros interesses. “É necessário que o WhatsApp se adeque ao sistema legal brasileiro para preservar e revelar dados a partir de decisão judicial. Ele tem mecanismos, se quiser, para fazer isso e a criptografia não pode ser uma coisa absoluta, soberana e intocável a ponto de que a legislação brasileira não seja aplicada”, disse.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) representada pelo advogado Alberto Pavie Ribeiro defendeu o bloqueio de aplicativos como Whatsapp para fins de investigação criminal. Segundo ele “o ordenamento jurídico dá sustentação legal e constitucional para as decisões que determinam a suspensão de qualquer meio de comunicação que seja insuscetível da intervenção estatal”. Segundo o palestrante, “isso é necessário e deverá ser no mundo inteiro, sob pena de o estado criminoso se perpetuar de forma absolutamente inaceitável”, reiterou.

Outra entidade que defendeu a mesma tese de bloqueio foi o Instituto dos Advogados de São (Iasp) representado por Paulo Thiago Rodovalho que afirmou ser necessária uma “compatibilização técnica” entre o funcionamento de aplicativos como o WhatsApp e o dever de cumprimento das ordens judiciais de quebra de sigilo de mensagens.

O advogado destacou que a Constituição Federal trabalha com a ideia de equilíbrio entre os direitos. Assim, disse, a livre iniciativa não é um direito absoluto e deve ser conjugada com a responsabilidade social. O mesmo ocorre, argumentou, com o direito à privacidade, que deve ser ponderado com o devido processo legal e a ordem judicial.

Direitos do cidadão devem ser garantidos na internet

Paulo Rená da Silva Santarém, representante do Instituto Beta para Democracia na Internet (Ibidem), reforçou que a internet deve servir como ferramenta para intensificar a democracia e que por sua vez, um Estado Democrático de Direito deve gerar mais acesso à internet.

Rená relatou que não há exemplos de experiências positivas com o bloqueio do WhatsApp, no entanto, ressaltou que foi possível verificar impactos negativos no ecossistema e na infraestrutura de países em que o aplicativo foi bloqueado.

Para ele a possibilidade de controle da criptografia pode causar a fragilização do procedimento e implica necessariamente na fragilização de direitos. “Se a NSA não conseguiu conter vazamentos de sua tecnologia de acessos por backdoor (porta dos fundos), o que nos faz pensar que a Polícia Federal brasileira poderia fazer isso?”, disse lembrando que o protocolo seria realizado por pessoas que podem se torna corruptíveis.

O professor do Núcleo Direito, Incerteza e Tecnologia da Faculdade de Direito da USP, Juliano Souza de Albuquerque Maranhão, garantiu que a legislação nacional não traz qualquer dispositivo que obrigue os provedores a disponibilizar conteúdo produzido por usuários. De acordo com ele, os dispositivos do Marco Civil da Internet falam somente quanto à obrigação de disponibilizar os registros de comunicação, como data e hora de conversas, e não os conteúdos.

Ele destacou três pontos de preocupação que devem ser levados em conta no âmbito dessa discussão. O primeiro deles é quanto a vulnerabilidade. “Qualquer tipo de acesso excepcional torna o programa vulnerável a ataques cibernéticos por meio de terceiros, de tal forma que a criptografia que objetivava a proteção pode perder o sentido”.

Outro ponto é que as formas de acesso excepcionais, especialmente quando são reservadas ao Estado, viabilizam uma vigilância total. “O custo passa a ser zero para uma interceptação, o que significa que todos podem ser interceptados”.

O último ponto é a ineficácia. Ele destaca que o programa de criptografia é independente do serviço provido. Isso significa, segundo ele, que, na hipótese de restrição da criptografia, uma organização criminosa pode utilizar a sua própria criptografia de ponta a ponta para acoplar no programa de troca de mensagens. “O risco é lidarmos com um cenário em que o cidadão comum, que não tem acesso a essa tecnologia, fica vulnerável a ataques cibernéticos. E por outro lado, os criminosos estarão protegidos”, explicou.

Princípio da proporcionalidade

As decisões judiciais que bloquearam o aplicativo WhatsApp não passariam em um teste de proporcionalidade”, foi o que afirmou o advogado Rafael Augusto Ferreira Zanatta do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

De acordo com Zanatta, os casos recentes de bloqueio do WhatsApp pelo Poder Judiciário violaram tanto o princípio da proporcionalidade, que tem por finalidade equilibrar os direitos individuais com os anseios da sociedade, quanto os princípios consumeristas, além de causarem limitação do uso social da rede, um dos pilares do Marco Civil da Internet. “Para o Idec ficou claro que milhões de pessoas foram afetadas e sofreram danos com os bloqueios que aconteceram”, relatando que, atualmente, muitas pessoas dependem do aplicativo em suas relações de empreendedorismo e que as decisões de bloqueio não levaram em consideração as consequências da potencial lesão de direitos causadas a terceiros, consumidores em geral.

Não é uma guerra entre interesses de empresa e soberania nacional” concluiu, citando outras possibilidades de atender aos anseios do Estado em conduzir investigações sem ferir os princípios de defesa do cidadão, como o acesso aos metadados e a possibilidade de busca e apreensão de aparelhos celulares.

Confira aqui como foi o 1º dia de debate.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação com informações do STF

STF discute bloqueio do WhatsApp e Marco Civil da Internet

Cofundador do WhatsApp, Brian Acton reafirmou que a criptografia de ponta a ponta é inviolável, sendo que nem mesmo a empresa tem acesso aos conteúdos das mensagens

O Supremo Tribunal Federal (STF) realizou nos dias 2 e 5 de junho, sexta e segunda-feiras, audiência pública para discutir dispositivos do Marco Civil da Internet e as decisões judiciais que têm impedido por períodos específicos o funcionamento do aplicativo WhatsApp. Na condição de presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia abriu a audiência afirmando que o tema merece um amplo debate devido aos novos conhecimentos e à especificidade do assunto. “Esse tema diz respeito ao direito de informar, aos limites da atuação do juiz e à própria situação de novas formas de atuar na vida digital. Por isso, [há] a necessidade de debater exaustivamente o quanto necessário”, ponderou ela.

Os assuntos debatidos na audiência pública são abordados na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527, que tem na relatoria a ministra Rosa Weber, e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, relatada pelo ministro Edson Fachin. Ambos os magistrados ficaram responsáveis por conduzir a audiência pública nos dois dias de funcionamento.

A ministra Rosa Weber falou sobre a ADI 5527, na qual o Partido da República (PR) questiona dispositivos da norma que preveem sanções a empresas do setor. “A ADI sob a minha relatoria tem como objeto três dispositivos da Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, que veio colocar o Brasil em posição de vanguarda no que rege à proteção dos direitos e à previsão dos deveres dos usuários da rede mundial de computadores”, destacou ela.

Polícia e Ministério Público Federal

A primeira instituição a se manifestar na audiência pública foi a Polícia Federal (PF). Para o delegado Felipe Leal, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) é imprescindível, além de reconhecido internacionalmente. Para ele, os artigos 11 e 13 da lei demonstram um cenário legislativo e jurídico que justificam “a necessidade de que essas empresas de comunicação tenham um registro de dados”. A posição da PF se baseia na avaliação de que não há investigação policial que não se depare com ações criminosas que em algum momento se utilizem de aplicativos de comunicação. “Hoje temos um cenário livre na criminalidade”, afirmou ele.

O perito criminal da PF Ivo de Carvalho Peixinho frisou a importância de que as empresas forneçam metadados para a elucidação de crimes, como os de pornografia infantil ou de pedofilia na internet, já que, na sua avaliação, as empresas dispõem dessas informações, “uma vez que todo tráfego de mensagens passa pelo aplicativo WhatsApp”.

Por sua vez, a coordenadora do Grupo de Apoio no Combate aos Crimes Cibernéticos da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), Neide Cardoso de Oliveira, posicionou-se a favor da improcedência das ações em trâmite no STF que apontam a inconstitucionalidade dos bloqueios judiciais do WhatsApp. Segundo ela, a suspensão temporária de um aplicativo que, de forma “contumaz descumpre a legislação brasileira, não viola os direitos à comunicação e à liberdade de expressão garantidos por outros meios”. Ela argumentou que “os diretos à comunicação e à liberdade de expressão não são absolutos. Eles podem ser modulados para a proteção de outros direitos igualmente importantes, como o direito à vida, à dignidade, à proteção integral da criança, à privacidade, entre outros, que são protegidos em investigações de crimes graves”.

Criptografia e direito à privacidade

Para Fernanda Domingos, integrante do Grupo de Apoio no Combate aos Crimes Cibernéticos, questões envolvendo criptografia e fornecimento de conteúdo de metadados são subjacentes ao descumprimento de decisões judiciais que determinam os bloqueios do WhatsApp. Conforme ela, a empresa afirma usar tecnologia que gera novas chaves de criptografia a cada mensagem enviada, o que tornaria inviável a tentativa de quebra do código. “Não sabemos ao certo se essa tecnologia é empregada mesmo, porque não houve auditoria nos sistemas do WhatsApp, e talvez nem seja possível auditar”.

Vladimir Aras, secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR), argumentou que, “aparentemente, o que se tenta apresentar como um dos valores mais importantes do serviço do WhatsApp é a proteção dos dados pessoais, mas, infelizmente, esses serviços também são utilizados por criminosos”. Para o secretário, não se pode imaginar criar no Brasil, a partir do julgamento das duas ações em trâmite no Supremo, “um paraíso digital, em que criminosos possam cometer infrações penais, violando direitos fundamentais tão importantes quanto o direito à privacidade”.

Vladimir afirmou que instrumentos como o WhatsApp foram criados por homens e, portanto, “podem ser desenhados de forma diferente para que, quando seja necessário, haja a possibilidade que dados possam ser compartilhados, independentemente de cooperação internacional”.

Segurança para todo mundo ou para ninguém

Engenheiro e cofundador do WhatsApp, Brian Acton reafirmou na audiência pública que a criptografia de ponta a ponta usada pelo aplicativo é inviolável, sendo que nem mesmo a empresa tem acesso aos conteúdos das mensagens dos seus usuários. Brian explicou que, com mais de 120 milhões de pessoas usando o WhatsApp atualmente, o Brasil é um dos principais mercados do aplicativo, representando cerca de 10% do total mundial de usuários – algo em torno de 1,2 bilhão de pessoas, todas enviando e recebendo mensagens com criptografia de ponta a ponta.

Na avaliação dele, a criptografia de ponta a ponta faz com que esse 1,2 bilhão de pessoas se comunique sem medo em todo o mundo, razão pela qual o aplicativo teria investido no melhor sistema disponível na atualidade. Brian Acton declarou que as chaves que integram o sistema não podem ser interceptadas e apresentou um diagrama para demonstrar como funciona a criptografia de ponta a ponta em uma conversa. “As chaves relativas a uma conversa são restritas aos interlocutores dessa conversa. Ninguém tem acesso, nem o WhatsApp”, reforçou.

O engenheiro ainda explicou qual seria a única maneira possível de desativar a criptografia do app. “Não há como tirar [a criptografia] para um usuário específico, a não ser que se inutilize o WhatsApp para ele. Ou é seguro para todo mundo ou não é seguro para ninguém”, atestou, dizendo que teria que desativar a criptografia para todos, o que tornaria o WhatsApp vulnerável para que um hacker pudesse ter acesso a bilhões de conversas caso isso ocorresse.

Segundo Brian, já existe uma cooperação da empresa com a polícia em todos os países. “As informações a que o aplicativo tem acesso já são compartilhadas com as autoridades – a lista inclui número telefone, nome de usuário, a data e o horário da última vez em que a pessoa esteve online no app, a primeira vez em que utilizou o serviço, o sistema operacional usado, grupos dos quais participa, entre outras”.

Criptografia protege autoridades

Bruno Magrani, diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Facebook Brasil, também defendeu a importância da criptografia na troca de mensagens. “A criptografia é benéfica e complementar ao trabalho das autoridades, pois permite uma conversa segura entre elas. É uma ferramenta usada por diversos governos em situações de segurança nacional”, reiterou. Para ele, a criptografia faz parte do dia a dia das pessoas quando utilizam o e-mail, fazem compras online e realizam saques em caixas eletrônicos, por exemplo. Ele ainda destacou que a ferramenta também é importante para a economia, pois muitas atividades dependem dela e é um forte diferencial competitivo.

A criptografia é essencial para a defesa da privacidade e da liberdade de expressão e comunicação, porque dá eficácia a esses direitos constitucionais ao permitir a comunicação livre, aberta, sem que terceiros tenham acesso”, assegurou Bruno. O representante do Facebook Brasil afirmou ainda que a cooperação da empresa em investigações policiais, às vezes, é invisível, mas que o Facebook mantém um órgão especialmente voltado para a colaboração com autoridades em todo mundo.

Criptografia é um direito e não uma ameaça

Para Demi Getschko, presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), a criptografia é uma tecnologia de segurança da informação que permite que somente as pontas de um processo comunicacional compreendam as mensagens. “A criptografia é instrumental aos direitos humanos da privacidade e da liberdade de expressão. Ela e outras novas tecnologias de segurança da informação devem ser incentivadas e não restringidas. As plataformas que disponibilizam tecnologias de segurança de informação não devem ser penalizadas pelos usos ilícitos de seus usuários”, enfatizou.

Segundo ele, a internet é uma rede de controle, por isso não há motivo de pânico sobre a violação da privacidade. “Nossa preocupação é evitar que a rede vire um espaço de monitoramento geral de todo o mundo o tempo todo. Privacidade e segurança não são coisas contrapostas, são convergentes”. Demi também esclareceu que a criptografia não inviabiliza a coleta de dados para persecução criminal, pois a internet deixa rastros, tendo outras ferramentas úteis e efetivas para investigações e repressão de crimes. Ele ilustrou que a criptografia da informação possui três eixos: atributos da informação (confidencialidade, integridade e disponibilidade), medidas de segurança (tecnologia, fatores humanos e políticas e práticas) e situação da informação (transmissão, armazenamento e processamento).

Espionagens industrial e política

O último expositor do dia foi o professor Anderson Nascimento, da University of Washington/Tacoma e especialista em criptografia, que afirmou o uso de Signal, ou criptografia forte, é consenso na comunidade científica mundial e “universalmente aceito”. O professor mostrou trecho de uma carta assinada por 150 especialistas de vários países e encaminhada ao então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, defendendo o uso desta tecnologia para a segurança na troca de dados e mensagens.

Segundo Anderson, a criptografia sempre será usada, “não há como impedir isso por decreto”, e os órgãos de segurança pública têm que estar preparados para esse cenário.

Entretanto, mesmo com o uso de dados criptografados em trocas de mensagens, o professor concorda que é possível, no âmbito de investigação criminal, se obter muitas informações sobre investigados a partir de rastros deixados por eles na internet. Dados que poderiam ser armazenados, como as pessoas que conversaram com o suspeito, por quanto tempo, qual endereço de IP foi usado, quantidade de dados transmitidos e localização. Além disso, para ele, seria inviável ao WhatsApp compartilhar suas chaves de criptografia com autoridades policiais, pois o armazenamento de tais informações sigilosas poderia ser comprometido por organizações criminosas ou mesmo por corporações privadas e governos.

Anderson lembrou casos famosos como o da Telecom Itália, que, entre 1996 e 2006, espionou mais de 6 mil pessoas em vários países, entre líderes políticos, magistrados, presidentes de corporações e jornalistas. Citou ainda as interceptações telefônicas ilegais feitas contra o alto escalão do governo da Grécia entre 2004 e 2005, além de outros ataques de hackers. Para ele, não há solução simples, e qualquer que seja a decisão as consequências existirão e serão seríssimas. O professor ainda apresentou um trecho do relatório especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), segundo o qual “a criptografia possibilita que indivíduos exerçam seus direitos, a liberdade de opinião e a expressão na era digital e, como tal, merece nossa proteção”.

O professor ainda apresentou um trecho do relatório especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), segundo o qual “a criptografia possibilita que indivíduos exerçam seus direitos, a liberdade de opinião e a expressão na era digital e, como tal, merece nossa proteção”. E concluiu afirmando que “isso é particularmente importante numa era em que Estados, Nações interferem politicamente no processo democrático de outras Nações”.

O também professor Diego de Freitas Aranha, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), reforçou que inserir uma falha intencional ao protocolo de segurança de aplicativos torna os sistemas menos seguros e mais caros de se manter e banir a criptografia dos sistemas de comunicação é inócuo e ineficaz.

Bloqueio de aplicativos por descumprimento de ordem judicial

A inconstitucionalidade de bloqueios de aplicativos quando fundamentados no descumprimento de ordens judiciais foi tema da explanação feita por Dennys Marcelo Antonialli, representante da Associação InternetLab de Pesquisa em Direito e Tecnologia que observou, no entanto, que nos casos em que a ordem visa atividades ilícitas, o bloqueio é constitucional.

Ele destacou que o InternetLab monitora todos os casos publicamente conhecidos de bloqueios na Internet, desde o primeiro, em 2007, relativo a um vídeo da modelo Daniela Ciccarelli no Youtube. De lá para cá, foram cerca de 11 casos, a maioria proibindo o funcionamento de aplicações com finalidades lícitas, diante do descumprimento de ordem judicial para a entrega de dados.

No entanto sete dos 11 mapeados pelo InternetLab, são o do bloqueio como sanção a aplicações cuja atividade-fim, na avaliação de Dennys, expressam exercício de direitos, como o do Whatsapp.

Já o advogado e pesquisador Ronaldo Lemos, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio) afirmou que juízes de primeiro grau não têm jurisdição para abranger toda a infraestrutura da Internet no país. “A intervenção direta na infraestrutura é prática típica de países autoritários”, frisou.

Lemos lembrou que a Internet tem duas camadas uma de estrutura e outra de conteúdo. Para ele o bloqueio de serviços diretamente na estrutura não encontra qualquer amparo legal nem no Marco Civil nem em outros dispositivos legais.

Destacando que esse tipo de interferência não é compatível com a Constituição e viola vários princípios fundamentais, como o da liberdade de comunicação e expressão, da pessoalidade da pena e da livre iniciativa, além de violar instrumentos internacionais do qual o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos.

O bloqueio de um aplicativo só seria justificado em casos extremos, que envolvessem segurança nacional. Fora dessas situações, nenhuma entidade ou indivíduo pode deter, no Estado Democrático de Direito, o poder de interferir”, reforçou.

Confira aqui como foi o segundo dia do debate.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação, com informações do STF

3ENDC se constitui em espaço para reorganização do campo da comunicação

Encontro encerrou com apresentação da Carta de Brasília que reafirma o princípio da liberdade de expressão e imprensa e o direito à comunicação como fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade democrática

O 3º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação (3ENDC) se encerrou neste domingo, dia 28, cumprindo com seu objetivo central de se constituir em espaço de reorganização dos movimentos e entidades que militam pela democratização da comunicação no país. Organizado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) no Campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB), na capital federal, o encontro teve início na sexta-feira, 26, com o Ato Público em Defesa da Liberdade de Expressão e da Democracia, sendo finalizado no domingo com a conferência Meios de comunicação, regulação e democracia. Logo após, ocorreu a 20ª Plenária Nacional do FNDC, quando foi aprovada a Carta de Brasília.

A conferência de encerramento reuniu as jornalistas Aleida Calleja, coordenadora do Observatório Latino-americano de Regulação, Meios e Convergência (Observacom), do México; Cynthia Ottaviano, professora com atuação na defesa do público no âmbito da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, da Argentina; Renata Mielli, coordenadora-geral do FNDC e secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; além de César Bolaño, pesquisador do campo da Economia Política e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Cynthia Ottaviano iniciou sua fala comparando a semelhança das atuais conjunturas enfrentadas por Brasil e Argentina, caracterizadas pela repressão a paus e gás lacrimogêneo dos protestos populares, pela invasão de escolas e universidades pela polícia e pela pressão imposta a instituições para que divulguem listas de seus colaboradores envolvidos em atos contra as medidas excludentes impostas por seus respectivos governos centrais. Também enfatizou que a comunicação é e será pública, ainda que sua gestão seja privada ou estatal. Ela ressaltou que, contrariamente aos discursos veiculados pela mídia nos dois países, a conspiração contra a democracia não vem de quem luta pela democratização dos meios de comunicação, e sim das próprias empresas privadas de comunicação. “O foco não é a disputa entre regulação e não regulação, porque regulação sempre houve. O que temos que debater é quem regula o agente regulador”, destaca ela, lembrando que uma regulação frouxa favorece os interesses privados, e não os públicos.

Durante sua apresentação, Cynthia mostrou algumas pesquisas de monitoramento de notícias divulgadas pelos meios de comunicação, entre as quais se destacam aquelas de viés policialesco, de narração de crimes contra o patrimônio em detrimento dos crimes contra a vida, e entre as quais há poucas denúncias de excessos por parte dos aparatos policiais. Mostrou ainda pesquisas feitas junto ao público argentino, sobre o que as pessoas querem ver e ouvir na mídia. “As empresas de comunicação sempre repetem que divulgam o que o público quer saber. Mas pesquisas mostram exatamente o contrário: as pessoas quere,m saber mais sobre conteúdos que não recebem destaque na mídia, como informações sobre educação e ciências”. Por fim, ela lembrou o caso do canal argentino de televisão C5N, que utilizou equivocadamente imagens de jovens com armas publicadas no Facebook, que faziam parte de um projeto de produção de um curta-metragem, acusando-os de participarem de uma quadrilha que havia assassinado um policial durante um roubo de carro. Apesar dos apelos dos familiares dos jovens, o canal de televisão só se retratou após o caso ser levado à Justiça.

Resgate da utopia

O professor César Bolaño, de forma bem-humorada, citou uma “certa inveja” que os brasileiros nutrem em relação a alguns aspectos do espírito argentino, até porque o Brasil vive “um processo muito mais dramático” do que aquele de seu país vizinho. Ele respalda sua análise em aspectos como o da presença de opositores do governo de direita de Macri em programas em geral de televisão, entre eles sindicalistas e militantes que tinham acesso aos programas de televisão. “No Brasil, as emissoras de televisão têm seus jornalistas que fazem suas avaliações, julgam e dão seus veredictos. No Brasil, 40 milhões de pessoas participaram os protestos na maior greve geral de sua história, e nenhuma central sindical, por mais moderada que fosse, teve acesso aos programas de TV”.

Neste sentido, Bolaño destaca que os movimentos sociais precisam retomar a luta contra a censura, e demonstrar “a brutal censura imposta neste país pelos próprios meios de comunicação”. Ele reforçou a condição da comunicação de ser apenas meio, já que o fundamental são as estruturas econômicas. Além disso, nossas análises costumam avaliar apenas as comunicações de massa, não indo além em direção a outras formas de comunicação. “temos que ir além da forma mercadoria”, friz ele, citando a comunicação direta e a solidariedade como pistas de alternativas a estas ações de massa. “A comunicação é basicamente organização. A sociedade vai mudar, independente do que a gente faça. Outra mediação é possível. Nem tudo o que é bom se resume ao acesso à tecnologia ou aos bens de consumo. É preciso resgatar a utopia”, sugere ele.

Convergência tecnológica

Já Aleida Calleja pondera que a concentração dos meios de comunicação é uma séria ameaça à democracia. “A apropriação privada da esfera pública não repercute apenas em um poder econômico, mas também político. E o poder destas empresas é tanto que passa por cima dos poderes públicos. Basta dizer que a empresa [transnacional de capital mexicano] Televisa tem até bancada de parlamentares no Legislativo mexicano”, pondera ela, observando que os direitos à informação e à comunicação são direitos-chave, pois abrem as portas para o acesso a outros direitos.

Aleida ressalta que o discurso privado é de que, quanto menos houver interferência do estado, mais se assegura a liberdade de expressão. “Não há melhor lei que a que não existe”, dizem os empresários. “Mas não há direito humano absoluto. A liberdade de expressão também tem seus limites”, enfatiza a jornalista. Para ilustrar, ela lembra que um único conglomerado empresarial domina 80% do mercado de jornais no Peru; que um duopólio divide a propriedade sobre a comunicação no Chile e que apenas uma pessoa possui mais de 200 concessões de TV em toda a América Latina, se utilizando de vários laranjas para isso. “Mas a concentração de hoje sobre a propriedade dos meios de comunicação [no sistemas analógico] é diminuta quando se compara com a concentração em meio digital, relacionada com a convergência tecnológica”, frisa.

É preciso lutar

Por fim, Renata Mielli buscou consolidar sua fala a partir da complementação de seus antecessores na mesa da conferência de encerramento. Inicialmente, lembrou que os governos Lula e Dilma se pautaram por selar acordos com o oligopólio privado de comunicação. “Pode ser importante avar espaços na mídia hegemônica, mas é ainda mais importante construir a mídia alternativa. Portanto, ao mesmo tempo em que devemos combater o oligopólio da mídia, por um lado, devemos também fortalecer a mídia alternativa, de outro”, sintetiza a coordenadora-geral do FNDC.

Nesta linha, Renata enumera as muitas lutas a serem implementadas pelas entidades e movimentos que militam pela democratização e o direito à comunicação: regulação dos serviços sob demanda; defesa da comunicação pública e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC); avançar na Lei do Direito de Resposta, aprovada recentemente no Congresso Nacional; debater as verbas publicitárias destinadas à grande mídia, que acaba revertando na inviabilização da mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros/as; anistia aos radiodifusores privados que não realizaram as respectivas renovações em tempo hábil [concessões estas que deveriam ter sido devolvidas ao estado, para a abertura de novas licitações]; concessões de rádio e TV dadas a empresas que possuem dívidas trabalhistas, e que por isso também deveriam ter sido devolvidas ao estado para novas licitações; inadequações entre o local da concessão dada e o local de operação da emissora, entre outras. “A concessão de rádio e TV integra um processo de licitação. Não se pode fazer lucro vendendo algo que não te pertence. Isso ocorre à revelia da lei”, aponta Renata. “Por tudo isso, a nossa geração está chamada a lutar”, conclui ela.

Carta de Brasília denuncia violações à liberdade de expressão

Ainda na tarde do dia 28 foi realizada a 20ª Plenária Nacional do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) que aprovou a Carta de Brasília. O documento homologa o posicionamento da entidade contra os ataques sistemáticos à liberdade de expressão e de organização no país e em favor das lutas populares contra as reformas trabalhista e previdenciária, entre outras iniciativas do governo de Michel Temer.

A plenária encerrou o 3ENDC, realizado com apoio da Universidade de Brasília (UnB), no campus Darcy Ribeiro, e de várias entidades e organizações do movimento social. O 3ENDC reuniu cerca de 250 participantes credenciados, vindos de todas as regiões do país.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Confira o documento na íntegra:

Carta de Brasília

Os e as participantes do 3° Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação – 3ENDC, reunidos em Brasília de 26 a 28 de maio, reafirmam o princípio da liberdade de expressão e de imprensa e o direito à comunicação como direitos fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática. E reconhecem que para que esses direitos fundamentais sejam exercidos em sua plenitude, é necessário um ambiente de respeito à pluralidade e à diversidade.

Historicamente, o Brasil segue sendo um dos países com maior concentração nas comunicações do mundo. Mas, com o golpe político, jurídico e midiático em curso no país e a instalação de um governo que usurpou o poder após o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, à ausência de pluralidade e diversidade no debate público, se somaram novos e crescentes ataques à liberdade de expressão e de manifestação.

Os ataques têm acontecido não somente com agressões físicas nos protestos, mas também com a demissão de jornalistas e radialistas comprometidos com a ética e a verdade dos fatos. Com a manipulação e seletividade informativa. Com a condenação e detenção de blogueiros e comunicadores comunitários e populares. Com o desmonte do sistema público de radiodifusão. Com a remoção de conteúdos na Internet e a adoção de práticas de vigilância em massa nas redes. Com a restrição à liberdade de expressão nas universidades e escolas. Com a censura à expressão artística e cultural. Com o desrespeito à ética jornalística.

Com o apoio dos grandes meios de comunicação – além do Congresso, do capital financeiro nacional e internacional e do Judiciário, o governo golpista tem imposto um brutal ataque aos direitos da população, com impactos na vida das pessoas que continuarão pelas próximas décadas. A toque de caixa, as reformas trabalhista e da previdência estão sendo votadas no Legislativo. E mudanças significativas no campo da radiodifusão, das telecomunicações e da internet têm sido aprovadas sem que a população em geral sequer seja informada.

Diante de tamanho retrocesso, os movimentos sociais e sindicais, unidos e organizados, tem dado sua resposta nas ruas. Na mesma medida que a repressão do Estado aumenta, também têm crescido as manifestações. Uma nova greve geral se organiza para marcar o repúdio de amplos setores da sociedade ao golpe, aos golpistas, seus vassalos e apoiadores.

Assim, também, o movimento pela democratização da comunicação tem resistido. A Campanha Calar Jamais, lançada pelo FNDC em outubro passado, tem recebido, coletado e sistematicamente denunciado violações à liberdade de expressão no Brasil. No Congresso, o FNDC luta, em parceria com outras redes e articulações da sociedade civil, contra os ataques à internet livre e o desmonte das telecomunicações e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – denunciando, inclusive, deputados e senadores que controlam ilegalmente emissoras de rádio e televisão.

Como defensores de direitos humanos, combatemos as violações à dignidade humana praticada pelos meios de comunicação, em especial o racismo e a violência de gênero nas programações. Acreditamos que o combate ao racismo estruturante e a percepção crítica sobre a branquitude na sociedade brasileira, como impedimento à democratização da comunicação, devem ser pontos focais na promoção de uma comunicação democrática emancipadora.

Reunidos em Brasília com mais de 250 ativistas e militantes, reafirmamos, assim, nosso compromisso com a democracia, com a diversidade e a pluralidade, com a liberdade de expressão e de imprensa, com a luta pela democratização e o direito à comunicação.

Reafirmamos também nossa disposição permanente em construir ações de denúncia, de resistência e de mobilização; de produção de conteúdos contra-hegemônicos; de fortalecimento da comunicação alternativa, pública e comunitária; e de seguir nossa luta histórica por um novo marco regulatório dos meios de comunicação no Brasil que garanta o exercício de todos esses direitos.

A luta por uma comunicação democrática deve estar no centro da disputa pela transformação social, sendo estratégico, para o FNDC, ampliar o diálogo e a articulação com movimentos gerais, como as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. O tema do direito à comunicação não pode se restringir às prioridades dos que atuam neste campo, mas precisa ser pautado sistematicamente nos debates sobre o futuro do país.

Por fim, ao lado de todos e todas aquelas que estão nas ruas para dizer “nenhum direito a menos”, marcharemos contra o arbítrio, o autoritarismo e as desigualdades. Reafirmamos, mais do que nunca, nossa defesa incondicional da democracia, das liberdades, da justiça social e da participação popular, que só serão possíveis se a soberania popular for restabelecida no Brasil.

Por isso, Fora Temer e suas reformas!
Nenhum direito a menos!
Diretas Já!
Calar Jamais!