Liberdade de expressão em pauta no STF: o caso Cristian Góes

Por Paulo Victor Melo*

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda”
Cecília Meireles.

Um dos exemplos mais emblemáticos de cerceamento à liberdade de expressão e manifestação do pensamento no Brasil está prestes a entrar na pauta de discussões do Supremo Tribunal Federal (STF). É o caso que envolve o jornalista Cristian Góes, condenado a sete meses e 16 dias de prisão (revertida em prestação de serviços à comunidade) e ao pagamento de R$ 30 mil de indenização ao desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edson Ulisses.

O motivo da condenação? Cristian Góes, em maio de 2012, escreveu em seu blog na internet um texto ficcional sobre o coronelismo, em que não são citadas pessoas, locais e épocas. Em síntese, um texto em que não há personagens nem ambientes reais.

Esse não foi, porém, o entendimento do desembargador Edson Ulisses. A expressão “jagunço das leis”, utilizada no texto, foi, segundo o magistrado, direcionada a ele. Entendimento semelhante teve a juíza Brígida Declerk que, ainda na fase inicial do processo, decidiu pelo recebimento da denúncia e afirmou que “o texto possui atores definidos e identificados”.

Nem mesmo Kafka seria capaz de imaginar e narrar tamanho absurdo. Apenas por interpretarem que uma expressão generalista (jagunço das leis), utilizada numa crônica ficcional, faz referência a uma determinada pessoa, que não foi citada no texto, magistrados condenaram cível e criminalmente um jornalista.

Mas não para por aí a sequência de absurdos que envolvem este caso. O juiz Aldo de Albuquerque Mello, da 7ª Vara Cível de Aracaju, que condenou o jornalista ao pagamento da indenização por danos morais, chegou a afirmar que “o valor fixado é ínfimo em relação à gravidade da conduta”. Mas qual a conduta grave? Exercer o direito à liberdade de expressão? Manifestar livremente o pensamento?

O mesmo juiz disse que a sentença tinha o objetivo de “educar o agressor”, o que demonstra claramente o caráter político da condenação. Não há dúvidas: o objetivo é, tendo Cristian Góes como um exemplo, ameaçar o jornalismo crítico e reflexivo e fazer com que outros profissionais de comunicação pensem inúmeras vezes antes de escrever qualquer linha sobre o Poder Judiciário. Prova disso é que, ainda na primeira audiência, em janeiro de 2013, o desembargador não aceitou a proposta do jornalista de publicar uma nota de esclarecimento, em que afirmaria que o texto não se referenciava em ninguém.

Além do cerceamento à liberdade de expressão, esse caso demonstra também a seletividade do Poder Judiciário brasileiro. Afinal, enquanto um jornalista independente é condenado por um texto ficcional, membros do Judiciário silenciam frente às inúmeras calúnias, difamações, violações de direitos e destruição de reputações praticadas diariamente pelas redes de televisão e rádio do país.

Qual a conduta grave nesse caso, então? O texto de Cristian ou a sua condenação? Onde está o crime contra a democracia? Na crônica “Eu, o coronel em mim” ou na sentença contra o jornalista?

Ação também no CNJ

Além da ação no STF que contesta as sentenças, o caso também está no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão em que a defesa do jornalista questiona, dentre outras coisas, o fato da condenação criminal ferir o princípio da impessoalidade dos atos administrativos e pede a anulação da portaria que nomeou o juiz Luiz Eduardo para atuar no Juizado Criminal de Aracaju, bem como de todos os atos jurisdicionais proferidos pelo magistrado no período de 1 a 30 de julho de 2013.

Vejamos. O processo criminal movido pelo desembargador contra o jornalista ocorreu no Juizado Especial Criminal de Aracaju, onde a titular era a juíza Brígida Declerk, que presidiu todo o processo, mas não o julgou mesmo já estando pronto, e foi afastada daquele juizado em julho de 2013. Na lista de substituição, publicada pelo Tribunal em abril daquele ano, o juiz que deveria assumir os trabalhos era Cláudio Bahia. Porém, sem qualquer justificativa, o Tribunal de Justiça trocou de juiz e colocou Luiz Eduardo Araújo Portela.

Apenas após três dias do início dessa substituição, o juiz Luiz Eduardo condenou o jornalista à pena de sete meses e 16 dias de detenção. Com um agravante: dentre todos os processos que se encontravam prontos para ser julgados antes da chegada do juiz Luiz Eduardo, o único que foi sentenciado por ele foi justamente o de interesse do desembargador Edson Ulisses, então vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe.

Repercussão

Ainda que tenha sido ignorado pelas grandes emissoras de televisão do Brasil, o caso tem gerado repercussão tanto dentro do país quanto a nível internacional. Diversas entidades da sociedade civil têm se mobilizado na solidariedade e defesa do jornalista, sites e blogs na internet publicam matérias desde o início do processo e organizações de direitos humanos têm se pronunciado e acompanhado o caso.

Pela gravidade que representa para o exercício da liberdade de expressão não apenas no Brasil, o caso já foi objeto de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, de uma reunião na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), fez parte de um dossiê entregue à Relatoria de Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU) e compôs um relatório da Repórteres Sem Fronteiras, organização não governamental sediada na França, que entende o caso como “um desvario judicial e um insulto aos princípios fundamentais da Constituição democrática de 1988”.

Nada disso, porém, foi suficiente para alertar os magistrados sergipanos sobre a medida autoritária e absurda que estavam tomando. Cabe agora aguardar para verificarmos se os ministros do STF confirmarão esta ameaça à liberdade de expressão e à democracia ou se reverterão as sentenças e, assim, honrarão a Constituição Federal e os diversos tratados internacionais ratificados pelo país que garantem o direito à liberdade de expressão.

* Paulo Victor Melo, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

MPF discutirá programas policialescos no DF

A Procuradoria da República no Distrito Federal realizará, no próximo dia 16 (uma segunda-feira), audiência pública para discutir medidas de coibição à violação de direitos humanos promovida por programas policialescos no Distrito Federal. A iniciativa é da procuradora da República Ana Carolina Alves Araújo Roman, que está à frente de inquérito civil instaurado para apurar suspeitas de abusos cometidos por duas emissoras de TV que mantém programação local no Distrito Federal. O evento e deverá reunir representantes dos ministérios da Justiça e das Comunicações, representantes das emissoras de televisão e de entidades da sociedade civil.
Para participar da audiência pública, os interessados devem fazer inscrição prévia pelo e-mail PRDF-GabAA@mpf.mp.br ou via telefone (61) 3313-5494. No ato da inscrição, é preciso fornecer nome completo, a entidade ou órgão público – caso seja vinculado a algum – e ainda se deseja manifestar-se durante o debate. A quantidade total de inscritos dependerá da capacidade do Auditório Pedro Jorge, onde o evento será realizado.
De acordo com as regras previstas no edital, a audiência será iniciada pelo Ministério Público Federal (MPF) que, em 30 minutos, fará uma exposição dos motivos para a realização do evento, bem como os aspectos fáticos e jurídicos que envolvem a questão. Em seguida, deverão falar os representantes dos dois ministérios convidados e das emissoras de TV, sendo que cada um poderá usar a palavra por 15 minutos. A programação prevê, na sequência, manifestações da sociedade – pessoas que fizeram a inscrição prévia (o prazo de cada interferência é de 10 minutos). A última etapa será o fechamento do evento, com conclusões e eventuais encaminhamentos.
Inquérito
De acordo com a procuradora, o órgão acompanhou os programas DF Alerta (TV Brasília), Balanço Geral DF, DF no Ar e DF Record (TV Record) durante 30 dias. “Foi constatado que tais programas transmitem imagens de suspeitos presos em ações da Polícia Civil do Distrito Federal, com a conivência de autoridades policiais e sem autorização dos suspeitos, desrespeitando, assim, os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana”, explica a procuradora.
No edital de convocação da audiência, a procuradora lembra que embora a Constituição Federal (CF) proteja a liberdade de informação jornalística, os programas investigados abusam da liberdade jornalística, ferindo o direito à imagem, à honra e à dignidade de “centenas de pessoas meramente suspeitas ou acusadas pela prática de um ilícito penal”. Ela lembra, ainda, que um dos princípios da radiodifusão estabelecidos na CF (Art. 221) é a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” e o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
A procuradora também lembra que o Decreto 52.795/1963, prevê que as concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão não devem transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico (artigo 28, incisos 11 e 12).

O Ministério das Comunicações vai punir a Band?

Por Bia Barbosa*

Nesta quarta-feira 4, o Intervozes encaminhou mais uma denúncia de violação de direitos humanos praticada pela Rede Bandeirantes ao Departamento de Acompanhamento e Avaliação do Ministério das Comunicações. Desta vez, sobre o caso Alexandre Frota, que alimentou inúmeros debates e manifestações de repúdio na última semana nas redes sociais.

No último dia 25 de fevereiro, o programa Agora É Tarde, apresentado pelo comediante Rafinha Bastos e veiculado todas as noites pela Band, reprisou uma entrevista com Frota, datada de 22 de maio de 2014, na qual o ator revela – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe de santo contra a sua vontade, ou seja, que a teria estuprado. A vítima teria desmaiado durante o crime.

Na entrevista, Frota narra os detalhes do crime entre encenações e gargalhadas do apresentador do talk show e da plateia. O fato, que teria acontecido já há alguns anos, foi descrito da seguinte maneira:

Fui pro terreiro da mulher. (…) A mãe de santo chegou pra mim e falou: “você está carregado, não tem luz própria, eu vou ter que fazer uma limpeza em você”. Aí ela virou, malandro. Eu fiquei olhando e falei: “meu irmão, essa mãe de santo tem um jogo, dá pra pegar, dá pra comer, morô?” (…)

Aí falei pra ela: “eu não acredito nessas paradas que você faz, mas queria te dar um pega. E aí, tem jogo?”. Ela não falou nada. Aí eu virei e botei a mãe de santo de quatro (…) levantei a saia dela e agarrei pela nuca. Botei o boneco pra fora e comecei a sapecar a mãe de santo. Aí estou pegando a mãe de santo e minhas amigas bateram na porta.

Fui mandando, fui mandando, e as mulheres batendo na porta. Brother, eu tava a fim de gozar, e aí eu fiz tanta pressão na nuca da mulher que ela dormiu, ela apagou, igual no ultimate, finalizei. Aí parei e falei: “levanta aí, ô mãe! Ô, filha da… , levanta aí!”. E ela apagou. Aí eu fui lá, abri a porta, as amigas entraram e perguntaram dela. Eu falei: “num sei, ela ficou aí nessa posição já há algum tempo, e não fala nada. Acho que ela teve um troço. Recebeu… está apagada”. Elas perguntaram: “como ela apagou?”. E eu: “eu juro que não sei”.”

O episódio terminou com o apresentador Rafinha Bastos pedindo “uma salva de palmas para essa história maravilhosa”. Assim como o apresentador do programa, a plateia reagiu com risadas e aplausos.

A reprise foi ao ar em fevereiro numa série com os “melhores momentos” do Agora É Tarde, preparatória à nova temporada do programa, que estreou nesta terça, dia 3. A íntegra do programa também está disponível no Youtube, onde já foi assistida por mais de 368 mil pessoas –assista ao final deste texto.

Na representação ao Ministério das Comunicações, o Intervozes destaca uma extensa relação de normas em vigor para a radiodifusão e demais leis do ordenamento jurídico brasileiro e pede a responsabilização da Band pelo ocorrido.

Entre elas, o Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.117/62) que diz que constitui abuso no exercício de liberdade da radiodifusão o emprego dos meios de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive a incitação à desobediência às leis. Também o Decreto Presidencial 52.795/63, que proíbe as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Já a Constituição Federal veda a veiculação de conteúdos que violem os direitos humanos e façam apologia à violência. Seu Art. 221 afirma que a programação das emissoras deve privilegiar “as finalidades educativas, culturais, informativas e artísticas”, assim como “os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

O documento enviado pelo Intervozes ao ministério lembra ainda a lei 7.716/89, que determina pena de reclusão de um a três anos e multa para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial definiu que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”.

Diversos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil também trazem elementos que permitem condenar tal tipo de conteúdo veiculado pela Rede Bandeirantes. A Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (2001) insta os Estados a incentivarem os meios de comunicação para evitarem os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata. E a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) afirma que os Estados-partes concordam em “estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher”.

Reconhecendo o impacto dos meios de comunicação de massa no combate ou perpetuação da violência contra a mulher, a própria Lei Maria da Penha faz menção à importância de se coibir papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar nos meios de comunicação de massa.

Reincidência

O episódio em questão não é violento apenas para a mulher vitimada diretamente na história, mas para todas as mulheres. E não há dúvidas sobre o impacto que conteúdos como este podem ter na naturalização, legitimação e perpetuação da violência contra a mulher em nosso país. Veiculado desde junho de 2011, o Agora É Tarde alcançou, em 2012, segundo o Ibope, a segunda maior audiência da Rede Bandeirantes. O formato do programa, portanto, tem se mostrado lucrativo para a emissora.

Vale lembrar também que não é a primeira vez que o apresentador Rafinha Bastos brinca com a violência contra as mulheres na grade da Band. Em 2011, ao comentar a gravidez da cantora Wanessa Camargo, durante edição do CQC, ele disse que “comeria ela e o bebê” ao mesmo tempo. Bastos também foi chamado a depor sobre a declaração feita em sua peça de teatro de que mulher feia devia ver o estupro como “oportunidade” e não “crime”.

Questionados sobre o ocorrido, Rafinha uma vez mais argumentou que tudo não passa de piada. Já Alexandre Frota, declarou ao Portal IG que “a mãe de santo é fictícia, por isso não menciono nome porque não existe. A história fez parte do meu stand up, no ano passado. É uma história contada em forma de piada, com humor”. “Não vou me desculpar de nada porque nada fiz de errado. Temos liberdade de criar e roteirizar, e é isso. Repeito as mulheres, sou muito bem casado e essa onda é falta do que fazer”, acrescentou.

É impressionante que, num país onde uma mulher é estuprada a cada 12 segundos, seja considerado possível rir de narrativas como esta. Mais impressionante ainda que uma concessionária de serviço público continue autorizada a levar ao ar cenas lamentáveis e criminosas como esta. Neste caso, a Band não apenas veiculou o programa como o retransmitiu em busca de maior audiência, praticando, com isso, uma dupla violência contra os direitos das mulheres.

Em 2013, a mesma Band foi multada em mais de R$ 12 mil por exibir na programação de sua retransmissora na Bahia e também em cadeia nacional uma “entrevista” com um jovem suspeito de estupro. O caso, que também ganhou repercussão nacional, consistiu na humilhação de um suspeito pela repórter Mirella Cunha. Durante a “entrevista”, realizada no programa Brasil Urgente, o rapaz, detido em uma delegacia, negou a acusação que lhe era feita pela repórter e argumentou que um exame pericial poderia inocentá-lo. Não soube, porém, precisar o nome do procedimento, o que bastou para que a repórter zombasse do detido, ridicularizando-o num claro exemplo de linchamento público via TV. A ampla repercussão do episódio levou o Ministério das Comunicações a multar a TV Bandeirantes, que recorreu da sanção aplicada. Por conta dessa estratégia da empresa, o processo administrativo até hoje não é público.

Agora, a Band volta a violar direitos humanos em busca de aumentar sua audiência. Em função da reincidência e com base na legislação em vigor, o Intervozes pediu a aplicação da pena de suspensão do Agora É Tarde pelo ministério. Esperamos que, desta vez, a punição aplicada pelo órgão seja efetiva a ponto de impedir que violências como esta continuem sendo praticadas – em nome do lucro e a despeito de suas brutais consequências – por uma concessionária do serviço público de radiodifusão.

*Bia Barbosa é jornalista, especialista em Direitos Humanos, mestra em Políticas Públicas e integrante da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Eduardo Cunha entrega comunicação da Câmara para bancada evangélica

Por Mayrá Lima*

Considerado o inimigo n.º 1 um do Marco Civil da Internet na Câmara Federal, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atual presidente da Casa legislativa, protagoniza agora outra medida polêmica na área da comunicação. De acordo com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), é dada como certa a indicação do deputado Cleber Verde (PRB-MA) para gerir todo o sistema de comunicação da Câmara – composto por uma emissora de TV, uma de rádio, um jornal impresso, o site da Câmara e toda a estrutura de relações públicas da Casa.

Cleber Verde é membro da chamada bancada evangélica. Vem do Partido Republicano Brasileiro, que possui ligação com a Igreja Universal do Reino de Deus, e foi um dos apoiadores de Cunha, também integrante da bancada formada por parlamentares orientados por dogmas religiosos.

A nomeação de Verde faz parte de uma série de mudanças nas chefias da Câmara. A disputa de cargos pela bancada neste processo visa dificultar a aprovação de leis que contrariem os interesses dos evangélicos, como o projeto de criminalização da homofobia e os de descriminalização do aborto, ou que ampliem o conceito de família, com a inclusão em leis de direitos aos casais homossexuais.

É a primeira vez, desde que a Câmara dos Deputados instituiu um sistema próprio de comunicação, que ocorre este nível de ingerência política em sua estrutura, historicamente dirigida por profissionais de carreira – ainda que a indicação fosse feita pela Mesa Diretora.

Com a estrutura de chefia ocupada por servidores, mesmo que não garantida, conseguia-se uma espécie de equilíbrio entre as forças políticas ali presentes, já que os funcionários da Câmara não podem sofrer pressões político-partidárias na execução de suas funções.

Ao ser indagado pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) sobre a medida, durante reunião do Colégio de Líderes na semana passada, Cunha justificou a entrega da Secretaria de Comunicação ao PRB de uma forma, no mínimo, inusitada. Segundo ele, “esta é a Câmara dos Deputados e não a Câmara dos Servidores”. Para o novo presidente, eleito com os votos de mais da metade da nova legislatura, “não faz sentido a TV Câmara, por exemplo, apresentar, aos domingos, programa sobre chorinho para concorrer com o Domingão do Faustão”.

Ainda que o cargo de Cleber Verde não interfira, diretamente, na tramitação de projetos de lei, seu papel será definidor na maneira de como a Câmara passará a divulgar e cobrir jornalisticamente debates que interessam politicamente à bancada evangélica.

O risco não pára por aí. Segundo Jean Wyllys, Cunha ainda pretende contratar uma pessoa de fora do quadro concursado da Casa para comandar a programação da TV Câmara. Este profissional, denunciou o deputado em uma rede social, seria um dos diretores da Rede Record, também ligada à Igreja Universal. Tal jornalista assumiria um cargo Comissionado de Natureza Especial, cuja faixa salarial chegaria a 16 mil reais.

É importante lembrar que a TV Câmara, ainda que com dificuldades de transmissão em sinal aberto, é uma das emissoras com maior audiência entre o conjunto das legislativas. Em março do ano passado, conseguiu ter mais pontos no Ibope que canais como Sony, ESPN, GNT e até mesmo a HBO.

Mesmo com a missão de divulgar, prestar contas e atribuir transparência aos atos legislativos dos deputados federais, o sistema de comunicação da Câmara dos Deputados conseguiu, nos últimos anos, imprimir uma lógica de prestação de serviços públicos e até mesmo educativos à sua programação geral e cobertura jornalística. Tanto que é no campo público que a TV Câmara se autodescreve quando buscamos informações sobre a TV.

Além do conteúdo essencialmente jornalístico, a emissora veicula um número importante de debates que não se vêem costumeiramente nos canais comerciais e uma programação cultural que prioriza a produção nacional, além de dispor de um acervo considerável de filmes documentais produzidos por seu corpo de funcionários. A diversidade e pluralidade de conteúdos e materiais que atendem a diversos públicos é justamente um dos principais diferenciais da comunicação da Câmara. E, o melhor, sem a vinculação à propaganda comercial que condicione sua produção.

Ao contrário do que entende o deputado Eduardo Cunha, a régua para a medição da qualidade do sistema de comunicação da Câmara nunca pode ser a mesma de uma emissora privada, pois tem objetivos e compromissos de caráter público, construídos pelo próprio legislativo, incomparáveis com os canais comerciais. Caráter este que atende ao propósito de dar visibilidade à extensão do que acontece na sociedade, que é mais ampla e complexa que o lugar do pronto atendimento de seus representantes – no caso, o conjunto dos deputados.

Ao entregar todo sistema para um representante da bancada evangélica, Cunha não só atenta contra a laicidade da comunicação da Câmara como também ameaça a produção artística e cultural que tem na TV e na Rádio Câmara um potencial distribuidor que ameniza o cerco imposto pela mídia comercial à diversidade necessária a este setor.

* Mayrá Lima é jornalista, mestra em Ciências Sociais e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Privacidade na internet: chega de andarmos todos nus

Por Marina Cardoso*

A Prefeitura de São Paulo implementou o bilhete único mensal. Para usá-lo, o cidadão deve fazer um cadastro com seus dados pessoais e foto no site da empresa de transporte, e então receber um cartão pessoal e intransferível. Ao mesmo tempo, e silenciosamente, são instaladas câmeras nas catracas dos ônibus da cidade, de forma a garantir a identificação e controle dos passageiros. À primeira vista, este é um projeto de transporte público, mas suas implicações adentram outro campo: o do direito à privacidade.

Por ser um cartão pessoal, usado em trens, metrô e ônibus, o bilhete único pode mapear os hábitos dos cidadãos – o que pode ser um excelente instrumento para o planejamento do transporte público, desde que estruturados os sistemas adequados. Mas, ao mesmo tempo, pode se tornar o instrumento perfeito para a vigilância massiva. Com ele, é possível, por exemplo, desenhar quem encontra quem na cidade, onde e em quais horas do dia. E, no entanto, apesar desse potencial todo, após o cadastro para utilização do bilhete único mensal, não há no site da SPTrans qualquer menção à política de privacidade ou explicação e pedido de concordância do cidadão para uso de seus dados.

Não cabe aqui o debate sobre modelo de transporte. Mas este é um excelente exemplo de como, e rapidamente, as informações sobre os cidadãos/ãs e consumidores/as estarão estruturadas, em bancos de dados, de forma a permitir seu cruzamento por sistemas chamados de “big data” ou “business inteligence” (BI) com finalidades as mais diversas, sem que estejamos sob controle desse processo.

No entanto, precisamos ter em conta que as tecnologias não são necessariamente boas ou ruins quanto aos seus fins. O seu uso será definido pelos interesses predominantes na sociedade. Foi isso que aconteceu com qualquer tecnologia já desenvolvida pelo ser humano – seja o avião, que serve para transporte ou bombardeio, ou a explosão atômica, que gera energia ou destrói cidades.

Assim, neste momento, grandes companhias de tecnologia da informação (TI) contratam e pagam, muito bem, “evangelizadores” do big data para apregoar os benefícios de implantação dessa tecnologia. Cabe apontar que há, de fato, grande potencial para o uso de informações estruturadas para o bem, seja para identificar padrões de adoecimento, seja para o planejamento de políticas de transporte ou para a oferta de melhores serviços.

Por outro lado, entidades da sociedade civil começam a questionar se tal capacidade técnica servirá para reforçar a segregação e exclusão econômica e social nas quais é calcada nossa sociedade. Perderão os pobres e as minorias oprimidas?

Considerando a tendência de dados de saúde digitalizados e em rede (há diversos projetos públicos e privados nesse sentido), o que acontece se um empregador consegue ter acesso à ficha médica dos candidatos? Aqueles que têm doença crônica, serão tratados de forma igual em um processo de seleção?

Malkia Cyrill, do Center for Media Justice, importante figura no debate de comunicação e parte do movimento negro dos Estados Unidos – tradicionalmente alvo de vigilância e controle por parte das forças de Estado –, é categórica ao afirmar: “qualquer sistema deve ser avaliado não pela intenção do proponente, mas pelos resultados reais” que proporciona. Assim, não importa que a vigilância massiva, via acesso a dados pessoais, seja perpetrada em nome da segurança nacional. O fato é que ela viola o direito à privacidade de toda uma comunidade, e os resultados do ponto de vista da segurança são pífios.

Todas essas problematizações devem ser feitas neste momento pelos brasileiros. Aqui, no país do homem cordial, como definiu Sergio Buarque de Hollanda, nunca se aprovou uma lei de proteção de dados pessoais. Estamos vulneráveis tal como deve se sentir uma pessoa nua, a caminhar pelas ruas de uma grande cidade.

Ainda não temos proteção suficiente, por exemplo, se uma empresa ou a Receita Federal compartilhar nossos dados ou se o governo deixar vazar o perfil socioeconômico dos beneficiários do Bolsa Família. Os dados, de alguma forma bizarra, poderão parar em CDs, vendidos em cantos escondidos da Santa Efigênia, em São Paulo.

O aumento da digitalização, dos negócios a partir de dados pessoais e das nuvens web combinado com a ausência de proteção formam o cenário do terror. Sem qualquer regulação, as chances de uso tenebroso das novas tecnologias aumentam vertiginosamente. A balança pesa para o lado errado.

Projeto de lei em consulta pública

A boa notícia é que o governo federal, em especial o Ministério da Justiça, compreendeu que, no atual cenário, é urgente avançar na garantia à privacidade. Depois de cerca de cinco anos de desenvolvimento interno, um anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais foi finalmente colocado em consulta pública na web, seguindo o excelente exemplo da construção do Marco Civil da Internet, aprovado no ano passado.

O anteprojeto prevê que as pessoas sejam informadas de forma clara e ostensiva, no momento mesmo da coleta, sobre como seus dados serão utilizados e processados. Será exigido consentimento por escrito para a coleta. Os dados não poderão ser utilizados para outros fins e a negativa de coleta de dados não pode impedir o acesso a produto ou serviço, ao menos que eles sejam essenciais para sua efetivação. Ou seja, o projeto de lei dá poder ao cidadão para controlar seus dados pessoais. Será proibido ainda formar bancos de dados que possam levar à discriminação de usuários, algo fundamental.

Além disso, o anteprojeto prevê que os órgãos públicos ficam proibidos de transferir dados pessoais para entidades privadas, exceto em casos de execução terceirizada ou mediante concessão e permissão de atividade pública que o exija, e exclusivamente para fim específico e determinado. Trata-se de uma proposta importante, especialmente depois da bizarra tentativa de acordo do Tribunal Superior Eleitoral com a Serasa, em 2013, que previa repasse de dados cadastrais de 141 milhões de eleitores brasileiros para a empresa. Em troca, a Serasa forneceria mil certificados digitais ao TSE.

O anteprojeto ainda prevê a regulação, fiscalização e acompanhamento dos dados pessoais por órgão específico, de forma a defender os interesses dos cidadãos e consumidores. E, ainda, cuidados a serem tomados por quem manipula bancos de dados e sanções no caso de desrespeito às normas.

A proposta do Ministério da Justiça, inspirada no modelo europeu de lei de proteção de dados, é um avanço gigantesco para a garantia de direitos no Brasil. No entanto, alguns pontos ainda precisam ser bem debatidos e, nesse sentido, vale à pena a atenção em relação a dois termos utilizados: metadados e dados anonimizados. O uso de termos pseudotécnicos tem sido um artifício para flexibilizar as regras de coleta, uso e compartilhamento de dados pessoais por empresas e governos e, assim, pesar a balança novamente para o lado errado.

O metadado é aquele que traz informações sobre uma comunicação, mas sem revelar seu conteúdo e, por isso, defendem alguns, são dados menos sensíveis ou críticos. Ora, muitas vezes saber para quem se ligou, a que horas e para quem se ligou na sequência pode ser incrivelmente revelador. Digamos que uma pessoa faça ligações para um serviço de atendimento a suicidas e fique na linha por um longo período; ou então que uma pessoa ligue para um serviço de auxílio a indivíduos soropositivos. Caso qualquer uma dessas informações venha a público, pode haver graves implicações na vida pessoal, profissional e até nos serviços que pode contratar. Será que essa pessoa conseguirá contratar um financiamento bancário nos próximos dois anos?

Outra armadilha contra a qual devemos nos precaver é o da “anonimização de dados”. Atualmente, é quase impossível coletar dados que não dêem uma indicação quase precisa de quem é o cidadão/cidadã. As pesquisas apontam que a partir de dois ou três dados e mais algumas buscas na Internet uma pessoa ou dado deixa de ser anônimo.

Estamos no caminho certo e será uma grande vitória dos defensores dos direitos humanos e dos direitos dos consumidores se uma lei de proteção de dados pessoais, tal como a proposta pelo Ministério da Justiça, for aprovada. Não deixemos que algumas palavrinhas nos levem ao erro.

* Marina Cardoso é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.