TV Digital: mais uma chance perdida de promover a democracia

*Por Gésio Passos e Gustavo Gindre

Cerca de 14 milhões de conversores de TV digital serão distribuídos gratuitamente para beneficiários de programas de transferência de renda (como o Bolsa Família), que provavelmente ainda não possuem aparelhos de TV capazes de captar o sinal digital.

Não se trata, como pode parecer, de alguma benesse, mas de uma necessidade econômica de radiodifusores (desejosos de encerrar suas transmissões analógicas) e, principalmente, das operadoras de telefonia celular (que precisam de parte do espectro atualmente alocado para o UHF para vender serviços de 4G). E para que o sinal analógico possa ser desligado, o Governo Federal definiu que mais de 93% dos brasileiros devem estar aptos a captar o sinal digital. Daí a necessidade de distribuir os conversores para as camadas mais pobres.

O governo tem argumentado que há um ganho nesse processo, na medida em que todos os conversores terão embarcados o middleware brasileiro Ginga. Ele funciona como uma espécie de sistema operacional, onde aplicativos são instalados e utilizados nas TVs. Seria uma forma de garantir a tal interatividade prevista na implantação da TV aberta digital, mas que até hoje continua sendo mera esperança.

Mas será mesmo que ter o Ginga nos conversores resolve o problema? Na verdade, a definição do modelo de conversor foi fruto de uma intensa batalha dentro do Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (GIRED). O Grupo era constituído pela Anatel e pelas empresas de telefonia e de radiodifusão. Ao final, saiu vencedora a posição de radiodifusores e operadoras de telefonia celular, a despeito da versão que o governo se esforça em contar.

As teles terão que pagar a conta desses conversores (para poderem usar o espectro de 4G), mas não estavam interessadas em gastar muito. Os radiodifusores sempre deixaram claro que veem a interatividade como um inimigo capaz de lhe impor evasão de audiência e risco de perda de anunciantes. Quanto mais unidirecional for a TV, maior controle o radiodifusor tem da audiência. Foi assim que a interatividade acabou “esquecida” na implantação da TV digital, em 2006, e ocorre agora da mesma forma.

Os defensores da proposta do GIRED argumentam que há apenas “pequenos problemas” a serem resolvidos. Mas, quais seriam, então, esses pequenos problemas?

Em primeiro lugar, os conversores não virão com um modem para acesso à internet instalado e tampouco com conexão wi-fi. Ou seja, o beneficiário do Bolsa Família terá que comprar um modem 3G/4G das operadoras de telefonia celular e contratar um plano de internet, ou pagar por um serviço de banda larga fixo. A Pesquisa de Mídia Brasileira de 2015, da Secretária de Comunicação da Presidência da República, mostra que 78% da população brasileira que recebe menos de 1 salário mínimo não tem acesso à internet. Imaginar que essa parcela da população passará a assinar os serviços de internet apenas para conectar a TV Digital é de uma ingenuidade sem tamanho. Ainda mais quando o Plano Nacional de Banda Larga naufraga no país.

Mas, não é apenas esse o problema. O cidadão que conseguir transpor essa evidente barreira de renda se verá diante do fato de que apenas aplicativos autorizados pelas emissoras poderão rodar neste conversor. Trata-se, portanto, de uma interatividade confinada em ambiente totalmente controlado pelas emissoras de televisão. Você pensou em Internet? Esqueça!

O que estamos assistindo agora é mais um capítulo da implantação da TV digital aberta no país sob controle total das principais redes de televisão, particularmente a Globo. Foram eles que garantiram que não haveria multiprogramação e operador de rede (e com isso sabotaram uma das principais vantagens da TV digital, que é a compressão do sinal para entrada de novas emissoras). Foram eles que evitaram a interatividade com medo de terem que disputar a audiência também com novos aplicativos. E são eles agora que garantem um simulacro de interatividade, sob os olhares complacentes do Governo Federal. Diga-se de passagem, os fabricantes de aparelhos de TV também ficaram muito felizes por não terem concorrentes para os aplicativos de suas smarTVs.

Mesmo propostas, como o projeto “Brasil 4D”, desenvolvido pela Empresa Brasil de Comunicação, estão em xeque. O projeto oferece serviços de governo eletrônico pela TV Digital. No entanto, sem uma interatividade plena, possibilidades como a marcação de consultas no SUS e o acesso a benefícios do INSS não serão possíveis. Restará a possibilidade de acesso a informações gerais sobre programas de governo, que já podem ser acessadas pela internet e em aplicativos móveis, sem uma interação que beneficie os cidadãos.

Infelizmente, a despeito da propaganda que você terá contato, a distribuição destes conversores não passa de mais uma chance perdida para a efetiva democratização da TV aberta no Brasil. Não há nada o que comemorar.

* Gésio Passos e Gustavo Gindre são integrantes do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Propriedade Intelectual

Propriedade intelectual é o conjunto de direitos e normas relativos à proteção do trabalho intelectual humano. Divide-se em duas grandes categorias: o direito autoral e a propriedade industrial.

No primeiro ramo, incluem-se os direitos detidos por autores de obras literárias, artísticas (música, cinema, artes plásticas etc.) e científicas, além de softwares, bem como os dos titulares dos chamados “direitos conexos”, relativos aos artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e empresas de radiodifusão.

Já a propriedade industrial reúne, no âmbito da lei que a regulamenta, invenções, desenhos industriais, marcas de produto e de serviço, além da repressão à concorrência desleal e às falsas indicações geográficas.

Atualmente, as indústrias da comunicação, da cultura e do entretenimento estão diretamente vinculadas ao regime de propriedade intelectual, uma vez que a produção de conteúdo é necessariamente regulada pelas normas do direito de autor. Portanto, ao se criar qualquer conteúdo original veiculado em meios de comunicação e outros suportes, sua obra é automaticamente protegida pela lei de direitos autorais (Lei 9.610/98). Além disso, muitas das tecnologias para transmissão e exibição de conteúdo podem ser objeto de concessão de patentes e, portanto, são regidas pela lei de propriedade industrial (Lei 9.279/96).

A propriedade intelectual tornou-se, portanto, matéria indispensável para avaliar o cenário das comunicações e, em especial, do direito à comunicação.

Nunca na história da humanidade foi possível ter acesso a tão grande variedade de informações e obras artísticas, com tanta rapidez e qualidade. No entanto, as possibilidades geradas pelo avanço tecnológico não se refletem nas condutas legalmente permitidas. Com isso, abre-se um abismo entre a legislação e o mundo real.

Se, por um lado, as novas tecnologias permitem a livre circulação de informação e o acesso ao conhecimento, por outro, a enorme concentração de propriedade dos veículos de comunicação, somada ao caráter draconiano da lei de direitos autorais configuram funis e obstáculos que impedem a democratização da comunicação e o exercício do direito à comunicação.

O campo da propriedade industrial (concessão de patentes de invenções, por exemplo) interfere também no cenário da comunicação, no que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico da área, envolvendo digitalização do rádio e da TV, criação de equipamentos analógicos. Trata-se de pagamento de royalties, desenvolvimento industrial e criação de know-how, produção de conhecimento nacional etc.

 

Luta pela democratização da comunicação ganha força na Paraíba

Por Mabel Dias*

A luta pela democratização da comunicação precisa integrar, de maneira sistemática, a agenda de ações dos movimentos sociais do Brasil. Não é responsabilidade apenas das/os comunicadores fazer esse debate, mas sim de toda a sociedade, pois todas e todos somos afetadas/os quando o sistema de comunicação serve apenas aos interesses privados. Nesse sentido, é fundamental ampliarmos iniciativas como a criação de observatórios e de grupos de leitura crítica da mídia com estudantes do ensino fundamental, médio e nas universidades, públicas e privadas, e, claro, a organização de coletivos e a mobilização da sociedade em prol de uma mudança significativa nos meios de comunicação brasileiros.

Na Paraíba, uma série de atividades realizadas no último período ampliou a luta por um novo marco regulatório das comunicações. Na capital João Pessoa, foi realizado o I Encontro de Blogueiras/os e Ativistas Digitais, organizado pela ANID, em parceria com o comitê local do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC – PB) e diversas entidades. O encontro contou com a presença de integrantes de movimentos sociais, blogueiras do país e inclusive de um dos elaboradores da Ley de Medios da Argentina, Sérgio Salinas.

A Ley de Medios, construída por 300 grupos oriundos dos movimentos sociais, sindicais e até religiosos, foi aprovada em 2012 e consiste basicamente em diminuir a concentração dos meios de comunicações. A lei, por exemplo, reduz o número de concessões de rádio e televisão que cada grupo pode controlar. Explicando a importância da medida, Salinas destacou que “É preciso reconhecer que quem administra a comunicação é o Estado, não importa o governo que seja, é uma concessão pública, e nós, a sociedade somos os donos dela”.

Neste momento, 82 licenças para canais digitais abertos estão sendo discutidas pela população e o Congresso argentino. Isso vai garantir que a produção nacional de outras cidades, além de Buenos Aires, possa ter visibilidade e, consequentemente, o trabalho de artistas e técnicos locais.  A Ley de Medios na Argentina estabelece ainda estímulo à programação de qualidade, promoção de direitos humanos na mídia e serviços de utilidade pública, bem como uma cota de exibição de produções nacionais.

Outros dois eventos relacionados à regulação e democratização da comunicação também movimentaram a Paraíba na última semana de maio. O primeiro foi realizado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no âmbito da 3ª Semana Integrada de Comunicação (SIC). Na sequência, foi a vez das/dos estudantes do Coletivo Enecos (Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social) de Campina Grande promoverem o debate “Por que regulamentar a mídia? – A democratização em pauta”, que contou com representantes da academia e do movimento social e sindical.

Por meio dessas atividades, além de tratar de um tema ainda pouco conhecido da população brasileira e paraibana, mas fundamental para a consolidação da democracia e da liberdade de expressão, os coletivos locais mandaram o recado para a presidenta Dilma Rousseff, já que ela, ao assumir o cargo de Presidenta da República, sinalizou que iria começar, pelo menos, a regulação econômica da mídia. Até o momento, não houve avanços concretos nessa agenda.

Em países democráticos, a liberdade de expressão é algo fundamental e só pode ser garantida com a distribuição igualitária dos meios de comunicação e o impedimento do monopólio e do oligopólio, por isso a necessária afirmação da comunicação como um direito de todos e todas. Antes que os críticos de plantão venham dizer que isso é censura e que o que vemos, lemos e ouvimos é reflexo da liberdade de expressão, digo que se assemelha mais a uma liberdade de opressão. Afinal, diante da imensa diversidade brasileira, pouco mais de dez famílias e algumas igrejas controlam os meios de comunicação, sem contar com a opinião e participação da população.

Bons ventos para uma mídia democrática sopram na Paraíba. Não deixemos que eles parem de soprar e nos movimentar.

* Mabel Dias é jornalista, comunicadora popular e integrante do Intervozes

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A reinvenção da TV Digital no Brasil

Por Rafael Diniz e Thiago Novaes*

Há muitos anos se fala na necessidade de democratização dos meios de comunicação no Brasil. Os Direitos Humanos (Art. XIX), de 1948, o Pacto de San José da Costa Rica (Art. XIII), de 1969 e o Art. 5, inciso IX de nossa Constituição Federal, de 1988, são em geral invocados para se argumentar em defesa da Liberdade de Expressão, princípio fundamental para o pleno exercício da cidadania em qualquer democracia.

A era analógica da comunicação, no entanto, especialmente no caso do rádio e da televisão, limitou o acesso das pessoas ao espectro radioelétrico por considerá-lo finito, dando primazia a transmissões com maior “qualidade”, confundindo o papel de gestor do Estado com o de proprietário. O resultado deste desvirtuamento foi, historicamente, a criação de dificuldades para permitir o acesso de grupos e pessoas ao campo da comunicação social, notadamente sem fins de lucro, ao invés de garanti-lo.

Partindo da premissa da representação – confirmando uma pretensa limitação técnica –, e não da participação direta de qualquer pessoa ao uso do espectro, a luta pela democratização dos meios se tornou uma bandeira política cujas conquistas podem ser celebradas no que tange aos conteúdos que circulam socialmente, desde emissões comerciais ou de serviços públicos, enfrentando muita resistência no Congresso brasileiro para uma mudança estrutural, que realizasse uma democratização real do acesso à produção, circulação e recepção do discurso social em disputa.

Mas que novo contexto emerge com a digitalização dos meios de comunicação?

A primeira transmissão oficial de TV Digital no Brasil ocorreu em 2 de dezembro de 2007, com um padrão que foi definido após anos de pesquisa, baseado no sistema japonês ISDB-T com modificações nacionais, sendo a principal delas a incorporação do suporte à interatividade através do middleware Ginga.

Mais de 7 anos depois, no dia 15 de maio de 2015, foi decidido pelo grupo responsável pela migração para TV Digital no Brasil, o GIRED (Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV), que serão distribuídos aproximadamente 14 milhões de conversores interativos de TV Digital para os inscritos no programa Bolsa Família, de forma que pessoas de baixa renda não fiquem sem o serviço de TV aberta – visto que entre 2016 e 2018 as emissões de TV analógica serão gradualmente desligadas.

O sistema de TV Digital brasileiro, graças ao Ginga, permite a interatividade, o que significa que a emissora pode enviar aplicações interativas ao televisor do telespectador, com conteúdo de vídeo não-linear e interativo, possibilitando que as pessoas, de forma não mais passiva, atuem diretamente sobre a programação. Além disso, caso o televisor ou dispositivo de recepção, como um celular com TV ou um conversor digital, tenha conexão com a Internet, é possível que se possa também enviar e receber informações via rede de Internet, possibilitando a interação com outros teleparticipantes, e não mais meros espectadores, sintonizados no mesmo canal. É o que se chama de TV integrada broadcast/broadband (IBB-TV), onde a convergência da TV com a Internet se faz presente.

Atualmente, existem mais de 15 milhões de aparelhos de TV vendidos com suporte ao Ginga. No entanto, as emissoras de TV brasileiras pouco têm utilizado a interatividade, desperdiçando todo o potencial de inclusão social e de democracia participativa que o Ginga permite. Mesmo quando alguma aplicação interativa é transmitida, somente os sinais de algumas capitais a veiculam, visto que muitas retransmissoras e afiliadas não possuem equipamento para retransmissão e geração de aplicações interativas. Sendo um recurso de baixo custo e acessível, espera-se que, muito em breve, os radiodifusores brasileiros tornem essas potencialidades uma realidade.

A instalação de cerca de 14 milhões de conversores de TV Digital nas casas de famílias de baixa renda irá impulsionar sobremaneira uma adesão massiva aos serviços interativos. Dotadas de conversores digitais, que deveriam ser chamados, na verdade, de centrais de mídia, essas famílias poderão continuar a assistir à programação da TV aberta terrestre (como é o caso dos cadastrados do Bolsa Família), passando a contarem também com as possibilidades que a TV Digital Interativa oferece.

Ausência: WiFi e plano de conexão

A grande ausência, no entanto, na entrega dos conversores, é a falta de um plano para conectar esses receptores à Internet. Os cidadãos contemplados pelo receptor com acesso à Internet poderão se valer da interatividade plena da TV Digital, ou seja, com capacidade de não somente receber conteúdo interativo, mas também de enviá-los. No entanto, a compatibilidade dos conversores com modems 3G/4G sugere que, caso o usuário do conversor opte por ter acesso à Internet, ele terá que comprar o modem e um plano de acesso de alguma operadora de telefonia, o que implica em impeditivos de custeio.

O conversor que será distribuído foi desenhado para garantir que, com uma boa configuração, atenda a um novo perfil de receptores dentro das normas do SBTVD, o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre. Esse novo perfil, com denominação C, está definido em emendas a normas ABNT 15606, que estão em análise pelo Fórum do SBTVD. A proposta do perfil C estabelece 512MB de memória RAM, 2GB de memória para armazenamento de aplicações, e prevê que o receptor tenha suporte à execução de um segundo vídeo, ativado por aplicações interativas, e voltado primordialmente para garantir acessibilidade para deficientes auditivos, com aplicativos utilizando Libras, por exemplo.

Para conectividade, o conversor disporá de uma conexão para cabo de rede, e duas portas USB que deverão suportar modem 3G/4G, e bluetooth, onde poderão se conectar teclados sem fio. Outra grande ausência na configuração do receptor, no entanto, é a falta de conectividade WiFi: dado o avanço de projetos do governo como o Cidades Digitais e o Banda Larga para Todos, não vemos sentido em se deixar o WiFi de fora do conversor, em favor do suporte a modem que se conecta a redes de telefonia 3G/4G, que tradicionalmente oferecem um serviço caro e de baixa qualidade. O Ministério da Comunicações, para ser coerente com os próprios projetos, deveria ao menos exigir a presença dos drivers para adaptadores WiFi USB no conversor, uma tecnologia barata que garantiria o acesso e o compartilhamento de conexão à Internet de forma inteligente.

Outro ponto problemático é a execução de aplicativos Ginga a partir de um pendrive USB. O aplicativo terá permissões extremamente limitadas de acesso: por exemplo, o controle remoto não poderá ser utilizado pela aplicação. Somente aplicativos provenientes de emissoras, que serão assinados digitalmente, poderão ser executados e acessar a todos os recursos do Ginga. Esse fato impede que desenvolvedores independentes possam testar uma aplicação interativa diretamente no Ginga do conversor. Uma possível solução seria o governo apresentar um serviço de assinatura digital para certificação de aplicações independentes, ou que o receptor tenha simplesmente uma opção para desativar a verificação de assinaturas (algo como um tipo de preferência de “Modo Desenvolvedor”).

Notamos ainda que nada vem sendo discutido sobre a conformidade dos receptores de TV Digital com as normas do SBTVD, que definem o Ginga e os perfis de receptor. Para esses 14 milhões de conversores serem utilizados em sua plenitude, eles têm de ser 100% aderente às normas, tanto a do Ginga como a do perfil de receptores, no caso aderente ao perfil C. Atualmente, somente uma empresa é responsável pela maior parte do mercado de middleware no Brasil, e devido à ausência de um procedimento de testes de conformidade de receptor no Brasil, existe um risco muito grande de a empresa ganhadora do edital instalar um Ginga incompleto e com extensões proprietárias, e não padronizadas, tal como uma loja exclusiva de venda de aplicativos. Dentre as formas de se resolver o problema, o Fórum do SBTVD poderia estabelecer uma suíte de testes e procedimentos de conformidade; outra seria o conversor vir somente com software livre, o que permitiria, além de uma ampla auditoria, a possibilidade de evolução do software do conversor por qualquer interessado. O sistema operacional utilizado nas caixinhas conversoras, o Linux, é livre.

Centrais de mídia

A despeito dos pequenos problemas que esses 14 milhões de conversores ainda apresentam para o desenvolvimento de uma interatividade plena, em sintonia com o ambiente convergente e voltado para o exercício do direito humano à comunicação, a presença dessas centrais de mídia na casa das pessoas abre imensas possibilidades aos radiodifusores, sejam eles públicos ou comerciais. Emissoras públicas têm agora a possibilidade de iniciarem, por exemplo, projetos de democracia participativa, enquanto as emissoras comerciais poderão reinventar seus anúncios de modo a envolver a audiência com conteúdos interativos imersivos. Com a entrada de novos canais utilizando até 5 programas em multiprogramação, como o Canal da Cidadania e o Canal da Educação, vários tipos de aplicações interativas poderão ser testadas e implementadas utilizando o espectro, e serem transmitidas livre e gratuitamente pelo ar.

Após mais de 7 anos desde a primeira transmissão digital de TV no Brasil, consideramos que a decisão acertada pelo perfil C de conversores a serem distribuídos para a população de baixa renda representa uma verdadeira reinauguração da TV Digital no país, superando finalmente uma proposta de manutenção de uma configuração de TV Digital que não passava da simples atualização tecnológica da TV analógica. Passando agora a funcionar efetivamente como uma plataforma de comunicação multimídia interativa, tal como estabelecida pelo decreto presidencial que instituiu o SBTVD, a tecnologia digital de TV se apresenta muito mais atrativa para garantir a transição do sistema analógico, e, voltada para o acesso cidadão a serviços básicos de informação, promete ajudar a instaurar uma nova geração de tecnologias socialmente justas e economicamente relevantes.

Uma tamanha abertura pretende impulsionar ao mesmo tempo a inovação, dado o caráter livre das tecnologias envolvidas, sugerindo também uma mudança de comportamento, onde passamos de uma relação tradicionalmente passiva diante do meio televisivo para uma outra, muito mais participativa, integrada, interativa. Agora que isso tudo é possível, o que queremos dessa nova tecnologia para o futuro das novas gerações? Vamos todos, afinal, e para começar, teleparticipar?!

* Rafael Diniz é mestrando em Informática pela PUC-Rio e Thiago Novaes é doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Vai sair o Canal da Educação. Mas não era um canal público?

Por Veridiana Alimonti*

No último dia 14 de maio, foi lançado o Canal da Educação, um dos canais públicos previstos no Decreto 5.820/2006, que definiu o padrão de TV digital no Brasil e estabeleceu diretrizes para a transição do sistema analógico. A Portaria que regulamenta o canal (2.098/2015) foi assinada entre Ministério da Educação e Ministério das Comunicações. Contudo, o que deveria ser concebido como um canal público parece inaugurar outro capítulo de confusões com o sistema estatal na televisão brasileira.

A previsão de novos canais públicos foi uma das poucas boas notícias que vieram com o decreto da TV digital. A definição do padrão japonês, ainda que com o Ginga brasileiro, e a consignação às emissoras existentes de uma faixa adicional do espectro com tamanho que, na tecnologia digital, permitiria a transmissão de bem mais do que uma programação, marcaram a escolha do governo federal pela alta definição em detrimento de maior pluralidade na televisão. Apesar disso, o decreto de 2006 estabeleceu a criação de ao menos quatro novos canais digitais: do Poder Executivo, da Cidadania, da Cultura e da Educação.

Embora a exploração desses canais tenha sido atribuída ao Poder Público federal, desde aquele momento os canais da Cidadania, da Cultura e da Educação foram compreendidos como parte do sistema público de radiodifusão. Isso está explícito numa portaria de 2009 que reserva canais digitais para o que passou a ser chamado de Serviço de Televisão Pública Digital. A portaria veio depois da edição da Lei 11.652/2008, que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e instituiu princípios e objetivos à radiodifusão pública.

Qual o problema, afinal?

A recente regulamentação do Canal da Educação indica que tanto sua gestão quanto a definição de sua programação serão essencialmente estatais – como ocorre hoje com os canais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Portaria Interministerial que o regulamenta estabelece que o canal será consignado ao Ministério da Educação, com a difusão de até cinco faixas diferentes de programação no sistema digital. O conteúdo de todas elas, ainda não está definido mas se sabe que uma das faixas será voltada para a educação básica, com a exibição de programação da TV Escola, produzida diretamente pelo MEC, e de secretarias estaduais e municipais de educação. Outra faixa terá como prioridade o ensino superior, cuja programação será gerada principalmente por universidades e centros de formação federais, que nem sempre gozam de autonomia em relação à administração pública.

Ainda não há definição sobre o uso das demais faixas, mas tal tendência é preocupante quando consideramos o que deveria ser entendido como uma televisão pública. Num sistema como o previsto pela Constituição brasileira, que divide a comunicação entre estatal, pública e privada, a comunicação pública não é aquela feita diretamente pelo Estado, mas pela sociedade, com diversidade e autonomia na sua gestão. A participação social e a independência em relação ao Estado estão no cerne dessa definição.

Não à toa, a Lei 11.652/2008 consagrou como princípios da radiodifusão pública, mesmo quando prestada por órgãos ligados ao Poder Executivo:

– a autonomia em relação ao governo federal para definir sua produção, programação e distribuição de conteúdo;
– e a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.

A portaria que regulamenta o Canal da Educação prevê a criação de uma Ouvidoria e de um Conselho, de natureza consultiva, para o canal. Ele deve ter participação do governo federal, do Poder Legislativo e de representantes da sociedade civil. Ainda que estas sejam garantias formais importantes, em si elas não asseguram a efetividade do canal como veículo da sociedade. Tudo dependerá de como serão definidas suas instâncias de gestão, de como serão escolhidos os integrantes da Ouvidoria e do Conselho e de como será decidida a sua produção e programação.

Nesse sentido, o Canal da Cidadania, também previsto no decreto da TV Digital, já regulamentado e em fase mais avançada de consignação de canais, apresenta um modelo mais interessante. Ele está igualmente planejado para se dividir em diferentes faixas de programação. Parte delas será destinada à veiculação das atividades dos Poderes Públicos municipal e estadual, podendo incluir, ainda, uma faixa para União e serviços de governo eletrônico. Todavia, já foi definido que duas de suas faixas serão destinada à veiculação de programas produzidos pela comunidade do município ou que tratem de questões relativas à realidade local. A responsabilidade por essa operação será de associações comunitárias definidas em processo seletivo.

No caso do Canal da Educação, a destinação de suas faixas adicionais ainda não está definida. Nada se fala também quanto ao aproveitamento desse espaço para potencializar iniciativas importantes de comunicação já em funcionamento, como o Canal Saúde, emissora de TV do Sistema Público de Saúde (SUS), acessível por antena parabólica digital. Enquanto iniciativas como essa são desprezadas nos planos dos canais dito públicos, as emissoras comerciais investem em transmitir esse tipo de informação, como se vê na faixa matinal da Rede Globo.

O exemplo reforça a necessidade de se discutir com a sociedade os rumos do Canal da Educação. Sua concepção até agora ficou restrita a órgãos de governo, como as secretarias de educação e associações ligadas à direção das instituições de ensino, não havendo um debate mais amplo sobre o tema dentro do próprio campo da educação.

Financiamento

Outra questão colocada é o financiamento do Canal. Na faixa de educação superior, por exemplo, quais os recursos disponíveis para as universidades públicas federais produzirem a programação considerando os inúmeros problemas de repasse de recursos do MEC para a manutenção das instituições federais?

A questão do financiamento não para por aí. Ela atinge os canais públicos de maneira geral. Atualmente, a infraestrutura para a migração para a transmissão digital representa um pesado investimento na instalação de antenas e torres por todo o país. O governo federal chegou a dar os primeiros passos para a construção de uma infraestrutura única de transmissão para a televisão pública digital, o chamado de Operador de Rede. Porém, o projeto foi abandonado – em princípio por falta de recursos – e não há notícias de que algo semelhante venha a ser desenvolvido. Isso compromete seriamente a qualidade e a penetração dos canais públicos no sistema digital.

O Canal da Educação é, portanto, apenas mais um intrincado capítulo da novela que é a consolidação de um sistema público de radiodifusão no país. Nela, sucedem-se momentos críticos que envolvem a ausência de um projeto coordenado para a comunicação pública, a recorrente confusão entre sistema estatal e público, e entraves e desafios ligados ao financiamento. Em verdade, esses problemas refletem algo anterior e mais profundo – a histórica indefinição do que seria o sistema público brasileiro e o fato de sua consolidação nunca ter realmente entrado na ordem do dia das políticas de comunicação do país.

Sem dúvida, o lançamento do Canal da Educação é uma boa nova em termos da veiculação de programações voltadas à formação crítica do indivíduo, para sua qualificação para o trabalho e para a universalização dos direitos à educação, à informação, à comunicação e à cultura. No entanto, ele só cumprirá o seu papel se estiver fundamentado nos parâmetros centrais da comunicação pública: efetiva participação social e autonomia de gestão e de recursos. Será melhor se pudermos escrever o roteiro do que ainda vem pela frente com mais e mais diversas mãos.

* Veridiana Alimonti é advogada e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.