Por Rafael Diniz e Thiago Novaes*
Há muitos anos se fala na necessidade de democratização dos meios de comunicação no Brasil. Os Direitos Humanos (Art. XIX), de 1948, o Pacto de San José da Costa Rica (Art. XIII), de 1969 e o Art. 5, inciso IX de nossa Constituição Federal, de 1988, são em geral invocados para se argumentar em defesa da Liberdade de Expressão, princípio fundamental para o pleno exercício da cidadania em qualquer democracia.
A era analógica da comunicação, no entanto, especialmente no caso do rádio e da televisão, limitou o acesso das pessoas ao espectro radioelétrico por considerá-lo finito, dando primazia a transmissões com maior “qualidade”, confundindo o papel de gestor do Estado com o de proprietário. O resultado deste desvirtuamento foi, historicamente, a criação de dificuldades para permitir o acesso de grupos e pessoas ao campo da comunicação social, notadamente sem fins de lucro, ao invés de garanti-lo.
Partindo da premissa da representação – confirmando uma pretensa limitação técnica –, e não da participação direta de qualquer pessoa ao uso do espectro, a luta pela democratização dos meios se tornou uma bandeira política cujas conquistas podem ser celebradas no que tange aos conteúdos que circulam socialmente, desde emissões comerciais ou de serviços públicos, enfrentando muita resistência no Congresso brasileiro para uma mudança estrutural, que realizasse uma democratização real do acesso à produção, circulação e recepção do discurso social em disputa.
Mas que novo contexto emerge com a digitalização dos meios de comunicação?
A primeira transmissão oficial de TV Digital no Brasil ocorreu em 2 de dezembro de 2007, com um padrão que foi definido após anos de pesquisa, baseado no sistema japonês ISDB-T com modificações nacionais, sendo a principal delas a incorporação do suporte à interatividade através do middleware Ginga.
Mais de 7 anos depois, no dia 15 de maio de 2015, foi decidido pelo grupo responsável pela migração para TV Digital no Brasil, o GIRED (Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV), que serão distribuídos aproximadamente 14 milhões de conversores interativos de TV Digital para os inscritos no programa Bolsa Família, de forma que pessoas de baixa renda não fiquem sem o serviço de TV aberta – visto que entre 2016 e 2018 as emissões de TV analógica serão gradualmente desligadas.
O sistema de TV Digital brasileiro, graças ao Ginga, permite a interatividade, o que significa que a emissora pode enviar aplicações interativas ao televisor do telespectador, com conteúdo de vídeo não-linear e interativo, possibilitando que as pessoas, de forma não mais passiva, atuem diretamente sobre a programação. Além disso, caso o televisor ou dispositivo de recepção, como um celular com TV ou um conversor digital, tenha conexão com a Internet, é possível que se possa também enviar e receber informações via rede de Internet, possibilitando a interação com outros teleparticipantes, e não mais meros espectadores, sintonizados no mesmo canal. É o que se chama de TV integrada broadcast/broadband (IBB-TV), onde a convergência da TV com a Internet se faz presente.
Atualmente, existem mais de 15 milhões de aparelhos de TV vendidos com suporte ao Ginga. No entanto, as emissoras de TV brasileiras pouco têm utilizado a interatividade, desperdiçando todo o potencial de inclusão social e de democracia participativa que o Ginga permite. Mesmo quando alguma aplicação interativa é transmitida, somente os sinais de algumas capitais a veiculam, visto que muitas retransmissoras e afiliadas não possuem equipamento para retransmissão e geração de aplicações interativas. Sendo um recurso de baixo custo e acessível, espera-se que, muito em breve, os radiodifusores brasileiros tornem essas potencialidades uma realidade.
A instalação de cerca de 14 milhões de conversores de TV Digital nas casas de famílias de baixa renda irá impulsionar sobremaneira uma adesão massiva aos serviços interativos. Dotadas de conversores digitais, que deveriam ser chamados, na verdade, de centrais de mídia, essas famílias poderão continuar a assistir à programação da TV aberta terrestre (como é o caso dos cadastrados do Bolsa Família), passando a contarem também com as possibilidades que a TV Digital Interativa oferece.
Ausência: WiFi e plano de conexão
A grande ausência, no entanto, na entrega dos conversores, é a falta de um plano para conectar esses receptores à Internet. Os cidadãos contemplados pelo receptor com acesso à Internet poderão se valer da interatividade plena da TV Digital, ou seja, com capacidade de não somente receber conteúdo interativo, mas também de enviá-los. No entanto, a compatibilidade dos conversores com modems 3G/4G sugere que, caso o usuário do conversor opte por ter acesso à Internet, ele terá que comprar o modem e um plano de acesso de alguma operadora de telefonia, o que implica em impeditivos de custeio.
O conversor que será distribuído foi desenhado para garantir que, com uma boa configuração, atenda a um novo perfil de receptores dentro das normas do SBTVD, o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre. Esse novo perfil, com denominação C, está definido em emendas a normas ABNT 15606, que estão em análise pelo Fórum do SBTVD. A proposta do perfil C estabelece 512MB de memória RAM, 2GB de memória para armazenamento de aplicações, e prevê que o receptor tenha suporte à execução de um segundo vídeo, ativado por aplicações interativas, e voltado primordialmente para garantir acessibilidade para deficientes auditivos, com aplicativos utilizando Libras, por exemplo.
Para conectividade, o conversor disporá de uma conexão para cabo de rede, e duas portas USB que deverão suportar modem 3G/4G, e bluetooth, onde poderão se conectar teclados sem fio. Outra grande ausência na configuração do receptor, no entanto, é a falta de conectividade WiFi: dado o avanço de projetos do governo como o Cidades Digitais e o Banda Larga para Todos, não vemos sentido em se deixar o WiFi de fora do conversor, em favor do suporte a modem que se conecta a redes de telefonia 3G/4G, que tradicionalmente oferecem um serviço caro e de baixa qualidade. O Ministério da Comunicações, para ser coerente com os próprios projetos, deveria ao menos exigir a presença dos drivers para adaptadores WiFi USB no conversor, uma tecnologia barata que garantiria o acesso e o compartilhamento de conexão à Internet de forma inteligente.
Outro ponto problemático é a execução de aplicativos Ginga a partir de um pendrive USB. O aplicativo terá permissões extremamente limitadas de acesso: por exemplo, o controle remoto não poderá ser utilizado pela aplicação. Somente aplicativos provenientes de emissoras, que serão assinados digitalmente, poderão ser executados e acessar a todos os recursos do Ginga. Esse fato impede que desenvolvedores independentes possam testar uma aplicação interativa diretamente no Ginga do conversor. Uma possível solução seria o governo apresentar um serviço de assinatura digital para certificação de aplicações independentes, ou que o receptor tenha simplesmente uma opção para desativar a verificação de assinaturas (algo como um tipo de preferência de “Modo Desenvolvedor”).
Notamos ainda que nada vem sendo discutido sobre a conformidade dos receptores de TV Digital com as normas do SBTVD, que definem o Ginga e os perfis de receptor. Para esses 14 milhões de conversores serem utilizados em sua plenitude, eles têm de ser 100% aderente às normas, tanto a do Ginga como a do perfil de receptores, no caso aderente ao perfil C. Atualmente, somente uma empresa é responsável pela maior parte do mercado de middleware no Brasil, e devido à ausência de um procedimento de testes de conformidade de receptor no Brasil, existe um risco muito grande de a empresa ganhadora do edital instalar um Ginga incompleto e com extensões proprietárias, e não padronizadas, tal como uma loja exclusiva de venda de aplicativos. Dentre as formas de se resolver o problema, o Fórum do SBTVD poderia estabelecer uma suíte de testes e procedimentos de conformidade; outra seria o conversor vir somente com software livre, o que permitiria, além de uma ampla auditoria, a possibilidade de evolução do software do conversor por qualquer interessado. O sistema operacional utilizado nas caixinhas conversoras, o Linux, é livre.
Centrais de mídia
A despeito dos pequenos problemas que esses 14 milhões de conversores ainda apresentam para o desenvolvimento de uma interatividade plena, em sintonia com o ambiente convergente e voltado para o exercício do direito humano à comunicação, a presença dessas centrais de mídia na casa das pessoas abre imensas possibilidades aos radiodifusores, sejam eles públicos ou comerciais. Emissoras públicas têm agora a possibilidade de iniciarem, por exemplo, projetos de democracia participativa, enquanto as emissoras comerciais poderão reinventar seus anúncios de modo a envolver a audiência com conteúdos interativos imersivos. Com a entrada de novos canais utilizando até 5 programas em multiprogramação, como o Canal da Cidadania e o Canal da Educação, vários tipos de aplicações interativas poderão ser testadas e implementadas utilizando o espectro, e serem transmitidas livre e gratuitamente pelo ar.
Após mais de 7 anos desde a primeira transmissão digital de TV no Brasil, consideramos que a decisão acertada pelo perfil C de conversores a serem distribuídos para a população de baixa renda representa uma verdadeira reinauguração da TV Digital no país, superando finalmente uma proposta de manutenção de uma configuração de TV Digital que não passava da simples atualização tecnológica da TV analógica. Passando agora a funcionar efetivamente como uma plataforma de comunicação multimídia interativa, tal como estabelecida pelo decreto presidencial que instituiu o SBTVD, a tecnologia digital de TV se apresenta muito mais atrativa para garantir a transição do sistema analógico, e, voltada para o acesso cidadão a serviços básicos de informação, promete ajudar a instaurar uma nova geração de tecnologias socialmente justas e economicamente relevantes.
Uma tamanha abertura pretende impulsionar ao mesmo tempo a inovação, dado o caráter livre das tecnologias envolvidas, sugerindo também uma mudança de comportamento, onde passamos de uma relação tradicionalmente passiva diante do meio televisivo para uma outra, muito mais participativa, integrada, interativa. Agora que isso tudo é possível, o que queremos dessa nova tecnologia para o futuro das novas gerações? Vamos todos, afinal, e para começar, teleparticipar?!
* Rafael Diniz é mestrando em Informática pela PUC-Rio e Thiago Novaes é doutorando em Antropologia Social na Universidade de Brasília.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.