Intervozes denuncia Veja ao MPF por violação de direitos

Coletivo Brasil de Comunicação Social entrou com representação junto à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo contra a Revista Veja que, na edição lançada no início desta semana, enfoca a maioridade penal e atenta contra o Estatuto da Criança e do Adolescente ao permitir a identificação dos/as adolescentes expostos na matéria de capa. Além disso, o conteúdo ignora o princípio de presunção de inocência apresentando os “envolvidos” numa situação de conflito com a lei como culpados antes mesmo de serem julgados.

Logo na capa, a revista apresenta fotos embaçadas de quadro adolescentes suspeitos de terem participado de estupro e tentativa de homicídio em Castelo do Piauí, no interior do Estado. Acompanham as fotos, as iniciais dos nomes de todos eles seguidas da frase: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram e mataram. Vão ficar impunes?”.

No interior da publicação, as fotos e as iniciais dos nomes dos adolescentes também são apresentadas, possibilitando a fácil identificação dos mesmos. O título sugere impunidade: “Justiça só para maiores”. A chamada da matéria antecipa o julgamento e a condenação: “Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”

No entendimento do Intervozes, a revista violou direitos em pelo menos dois aspectos. Primeiro, apesar da distorção nas fotos e do uso de iniciais, há clara identificação dos adolescentes que podem estar em conflito com a lei, o que é vedado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o parágrafo único do artigo 143 da norma: “Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência”. Já o parágrafo primeiro do Artigo 247 aponta que será punido quem exibir “total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente”. O parágrafo subsequente destaca que “Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação”.

Outra violação presente nas reportagens é o julgamento antecipado. Os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no Piauí são tratados não como suspeitos, mas como culpados, conforme apontam os trechos citados. A Constituição Federal estabelece, no Artigo 5°, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) estabelece, ao tratar, em seu Artigo 5, do Direito à Integridade Pessoal, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Ignorando tais normas e princípios do nosso ordenamento jurídico, a matéria de VEJA julga e condena, ela própria, os adolescentes.

A publicação das matérias se dá no momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que teve tramitação aprovada pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara em março deste ano. O relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana. A revista trata a norma vigente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”. A mudança no ECA é apontada como “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”.

Para o Intervozes, o conteúdo veiculado pela VEJA está em desacordo com dispositivos legais adotados no Brasil, além dos padrões internacionais que buscam assegurar a efetivação de tais direitos. Nesta perspectiva, o Coletivo aciona a justiça na esperança de que a Editora Abril seja responsabilizada e que a ação seja exemplar no sentido de salvaguardar o respeito aos direitos humanos nos meios de comunicação.

Juca Ferreira: “A TV aberta no Brasil é de uma pobreza absoluta”

O ministro da Cultura Juca Ferreira faz uma avaliação bastante crítica quando o assunto é a atuação da grande mídia no país. Na segunda parte da entrevista concedida à Fórum, ele afirma que a concentração de poder dos meios de comunicação gera um monopólio de opiniões bastante nocivo à democracia. Segundo Ferreira, a baixa qualidade da programação televisiva seria outro problema e isso pode ser percebido pelo afastamento dos espectadores, sobretudo os mais jovens.

O ministro fala ainda sobre a necessidade de enfrentar a corrupção no Brasil, disseminada em diferentes áreas e partidos políticos. Para ele, a imprensa deveria ter, nesse caso, uma participação mais efetiva e menos “oportunista”. “A sociedade brasileira está precisando de uma comunicação que retrate essa complexidade do país e possibilite que a gente dê um passo adiante”, sentencia.

As manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff também foram debatidas durante a conversa, que abordou, entre outros assuntos, os próximos passos do ministério, os direitos autorais em tempos de internet e o movimento pernambucano Ocupe Estelita.

Confira abaixo.

Fórum – O senhor é simpático à ideia de incorporar, nesse novo momento do ministério, a mídia independente. Poderia falar um pouco sobre isso?

Juca Ferreira – Apoio plenamente. Acho que a gente precisa ampliar. Não simpatizo com a ideia de “controle social”. Acho que são palavras dúbias que podem ter uma conotação muito negativa. Acho que é democratizar a mídia, colocar possibilidade de muitas opiniões em torno de todas as questões que são relevantes para a sociedade. Sou a favor de qualificação do ambiente da comunicação, que é pobre.

A TV aberta no Brasil é de uma pobreza absoluta. E as novas gerações, inclusive, a estão abandonando. Eu vejo pelos meus filhos. Tenho um de quatro anos e um de catorze. Eles quase não veem televisão. O de catorze só liga quando o Real Madrid está jogando ou quando o Corinthians está jogando, que são os dois times da afetividade dele. Ele vai do Netflix em diante. Não se interessa, não tem mais conexão, não tem o que oferecer. O pequeno só assiste TV a cabo e Netflix. Na TV a cabo, é [o desenho] “Peppa Pig” e outros, “Peixonauta”…

Fórum – Sobre a questão do midialivrismo, que é uma quebra de paradigmas muito forte, até porque no Brasil nós temos uma concentração total dos meios de comunicação tradicionais…

Ferreira – E um monopólio de opiniões impressionante! Editorializam a notícia de uma forma tão grande…

Fórum – Que acaba virando uma verdade absoluta.

Ferreira – É. Uma vez, eu tive vontade de escrever para aquele jornalista que conduz o Observatório da Imprensa, Alberto Dines, que é uma pessoa inteligente, íntegra. Queria que ele acrescentasse um elemento naquele programa dele, que seria “os que são entrevistados”. Tem o público leitor e os que fazem a comunicação. Mas pessoas como eu têm muito a dizer porque [jornalistas] mentem, sobredeterminam nossas opiniões, esquartejam trechos de uma opinião para poder dar um significado diferente, editorializam. Vêm apenas na conversa coletar aspas para confirmar uma tese anterior, acrescentam palavras tipo “admite”, criando um clima de suspeição em relação ao que a gente faz. É um desastre.

Eu, inclusive, não tenho grandes estímulos para conversar com a grande mídia. Vou dar um exemplo. Quando eu percebi que havia a possibilidade de a Dilma me chamar para ser ministro da Cultura, mesmo sem saber se seria… Eu fui chamado no dia 29 de dezembro, mas havia a possibilidade, à medida em que me chamou para coordenar a parte da cultura da campanha. Eu comecei a preparar o meu discurso.
Era um discurso programático.

Aí, um dos grandes jornais, um dos que mais vendem no Brasil, pediu uma entrevista à tarde. Eu fiz o discurso de manhã. Eu pensei que iam questionar, criticar. Ignoraram o discurso e fizeram duas perguntas sobre futricas: por que eu tinha trazido dois – depois passaram a três – jovens do Fora do Eixo, que é uma rede social, uma organização que eles querem execrar porque são muito críticos e tinha participado de um programa na TV Cultura que teve uma grande repercussão de críticas aos limites da comunicação no Brasil. E a possível futrica entre eu e Marta [Suplicy]. Não tinha interesse nenhum pelo destino da cultura brasileira. Tinha uma oportunidade enorme. Então, quer dizer, isso é decepcionante.

Eu perguntei à jornalista: “A senhora não tem interesse por nenhum tema cultural?”. Isso é imprensa marrom. É o que antigamente chamavam de imprensa marrom, uma imprensa que não lida com a realidade, não procura construir. Façam uma crítica. Criem a possibilidade de eu responder à crítica, mas o interesse é futrica. E isso é para quê? Para emoldurar negativamente algo que cresceu com a expectativa social alta, que é, no caso, a minha gestão aqui. É muito ruim para a sociedade em um momento em que o Brasil está diante de perplexidades. A democracia mostra limites.

Produziram essa grande distribuição de renda no Brasil que, por mais precária que seja, é uma mudança de paradigmas na sociedade brasileira porque, até então, a desigualdade, uma das maiores do mundo, era considerada natural. Cometeram erros, erros que estão evidentes. Então, é preciso discutir tudo isso.

É preciso abrir o leque para compreender o fenômeno da corrupção, que não é o fenômeno de uma família política ou de um partido, mas na verdade é o modus operandi da sociedade brasileira, que vai desde o indivíduo, o cidadão individual diante do guarda de trânsito, até a CBF. Na verdade, a sociedade brasileira incorporou a corrupção quase como um mecanismo legítimo e é exercitado praticamente…

Fórum – Por todas as áreas.

Ferreira – Por todas as áreas. Dentro da política, por todas as famílias políticas. E já há muito tempo. Então, o tratamento parcial impede de a gente chegar a uma solução. Quantos “carnavais éticos” a gente já viveu nos últimos anos? Eu me lembro em torno dos “anões do orçamento”, que deu a impressão que a gente ia dar um salto. Mas o tratamento é sempre com um foco muito restrito. E os demais se aproveitam para execrar aqueles que foram pegos com a boca na botija.

E também para manterem seu modus operandi como é. Depois veio o Collor, depois veio… Eu até me esqueço, mas tiveram uns dez “carnavais éticos” que passam essa sensação para a sociedade de que há, de fato, uma tentativa de superar esse nível de corrupção. Mas, na verdade, é um manuseio da corrupção para fins políticos menores. A verdade é essa. Não há, de fato, um compromisso.

E a mídia teria uma responsabilidade grande, se abrisse o leque e mostrasse exatamente que é um modo de operar as coisas públicas generalizado. Eu sinto que a mídia está devendo ao país. A mídia participou como apoio ao regime militar. Hoje, os editoriais fingem que foram contra. Fazem uma correção de rumos que tem uma dose de oportunismo porque não assumem os erros que cometeram. Vá em uma dessas emissoras e peça para ver editoriais de seus jornais no dia do Ato Institucional Nº 5.

Fórum – Na internet, inclusive, já circulam alguns desses editoriais.

Ferreira – É só ver os seus editoriais. E, depois, estão corroendo a democracia diariamente, desconstruindo o país. A negatividade é o tônus desses meios de comunicação. Então, os jornalistas que se rebelam e buscam construir – mesmo que de uma forma ainda romântica, sem perspectiva de afirmação – certamente vão encontrar o caminho porque, quando as coisas têm que acontecer, nada impede que aconteçam. E a sociedade brasileira está precisando de uma comunicação que retrate essa complexidade do país e possibilite que a gente dê um passo adiante.

Fórum – O senhor vê, por exemplo, a influência dessa mídia tradicional nos protestos a favor do impeachment?

Ferreira – Claro. Eles são força auxiliar. Eles mobilizam, constroem legitimidade, eles dizem quem pode governar e quem não pode governar. Eles transformam em heróis pessoas que, quando você bota a lupa, percebe que é mais corrupto que os que estão sendo criticados. Esse negócio da CBF, se o Romário levar às últimas consequências a CPI que está montando, isso vai dar o que falar. Isso vai até a dimensão política do manuseio do futebol, que é um dos patrimônios imateriais da sociedade brasileira, e que é manipulado até a última gota.

Manipulado para enriquecimento e que impede que, no país do futebol, floresça um futebol profissional e de qualidade.

Depois que eu saí do ministério, fui trabalhar na Espanha. Morei dois anos lá. E a Espanha não era um país do futebol. Eu não vou dizer que a Espanha era um país de pernas de pau, mas era um país de segundo nível na constelação. E eles começaram, prenderam os corruptos, desenvolveram uma política para o futebol de base, profissionalizaram no sentido completo da palavra, possibilitando que, de fato, florescessem times com estruturas mais profissionais. Qualificaram os jogadores, os contratos. Não adianta três ou quatro virarem estrelas e ganharem fortuna e o resto rapidamente se tornar peças obsoletas, sem nenhuma condição de sobrevivência.

O Brasil precisa fazer algo, mas vai ter que destampar completamente. Romário está se propondo a isso, mas acho que ele tem que ter apoio da sociedade no sentido de levar às últimas consequências e não repetir esse tipo de “carnaval ético” que a gente tem feito com outros temas.

Fórum – E, voltando à imprensa, não é só, especificamente, a questão das manifestações, mas toda uma onda conservadora que está vindo com força.

Ferreira – E foi aí que se mostrou a maior fragilidade porque foram com muita sede ao pote. Tentaram desconstruir a relevância do que foi construído pelo presidente Lula e, ao fazer isso, se associaram imediatamente a setores golpistas da sociedade, que querem a ditadura militar de volta, setores racistas, setores que execram a emancipação da mulher, setores que pregam a violência, o extermínio, a justiça pelas próprias mãos, a intolerância religiosa.

Quer dizer, o que esse movimento conservador – que a imprensa manipula e manuseia diariamente – revelou para o país é o que é inaceitável. É inaceitável pelas mulheres, é inaceitável pelos negros, é inaceitável pela juventude, já que querem rebaixar a maioridade penal para culpabilizar a juventude pelo nível de violência do país.

É inaceitável sob o ponto de vista das conquistas dos direitos individuais. Eles são contra até bicicletas nas cidades! Então, quer dizer, esse Brasil que eles querem, foi bom até que tenha vindo à tona porque está possibilitando que as pessoas reajam. E, mesmo tendo críticas aos erros que foram cometidos nesses 12 anos, erros de política econômica, erros na área da corrupção, erros na área de não ter desenvolvido políticas para qualificar o Estado e seus serviços…

Mas, mesmo assim, a grande maioria do país não quer retroceder, não quer ir para a Idade Média, nem para o período da ditadura militar. Não quer jogar na lata do lixo as conquistas pela igualdade das mulheres, nem do combate ao racismo. Pelo contrário, a sociedade quer ir adiante. E aí é que eles revelaram a debilidade deles. Por trás de todo o discurso moralista, na verdade vem uma ameaça a todas as conquistas do povo brasileiro e isso, em algum momento, a sociedade já começou a reagir. E acho que o ponto de reversão virá por aí, com ou sem os partidos.

Fórum – E essa questão acaba fortalecendo a formação de um Congresso que já é muito conservador. Aliás, o mais conservador desde 1964. E pudemos ver isso na discussão em torno da reforma política.

Ferreira – A reforma política é um aspecto importante do momento em que a gente está vivendo. A redemocratização no Brasil já tem uma experiência que é preciso ser analisada e ser criticada; que as forças políticas criem mecanismos para que a sociedade produza a superação dos limites e produza uma democracia mais densa, com um nível maior de representatividade, com a qualidade melhor do sistema representativo, com níveis de participação mais ampla.

Acho que quem defende e quem compreende a importância do Estado para uma sociedade democrática e para o Brasil avançar, não pode usar o Estado como motivo de guerra. O Estado precisa ser valorizado. Precisamos construir um Estado democrático no Brasil com mecanismos, com instituições fortes. Não é militarmente forte. Forte é com alto grau de legitimidade, com capacidade de oferecer serviços de qualidade, saúde de qualidade, educação de qualidade. Incrementar políticas culturais importantes. Então, a gente está diante, está em um momento de perplexidade, mas está em um momento de muita possibilidade de construir o futuro do Brasil.

O Brasil é a sétima economia do mundo. É um país que tem recursos naturais, que tem uma infraestrutura econômica instalada, temos uma capacidade criativa reconhecida no mundo inteiro. Então, não há porque ficar pessimista. A gente está enfrentando um problema, foram cometidos erros, é preciso que se assuma diante da sociedade com toda a transparência. E que a gente consiga alavancar um programa de continuidade das transformações na sociedade brasileira.

Esse programa reacionário que está aí tem que ser execrado. Estão molestando pessoas que estão lendo Carta Capital, por exemplo, no avião.

Fórum – Ou porque estão usando qualquer camisa vermelha.

Ferreira – Correram atrás de um cachorro porque tinha um coletezinho de cor vermelha. Isso se assemelha muito aos momentos que antecederam o Fascismo e o Nazismo. São irracionalidades sociais, são os medos, o ódio; a intolerância religiosa faz parte desse pacote reacionário.

É preciso que o Brasil transforme em valor fundamental essa liberdade de crença ou de não crença. É um país reconhecido no mundo inteiro com essas possibilidades de convivência de credos diferentes, e há uma construção de um ódio, uma intolerância, uma demonização de certas religiões, principalmente as de matriz africana. Então, é preciso que a sociedade reaja. E todo cidadão tem que se engajar na construção desse Brasil que a gente quer.

Fórum – Ministro, nós abrimos a entrevista para sugestões de alguns leitores e blogueiros. E a titular do blogue Voz em Rede, Lidiane de Souza Monteiro, do Recife, quer saber a sua opinião sobre o movimento e a luta pelo tombamento do cais José Estelita.

Ferreira – Olha, eu fui procurado pelo movimento, pelo prefeito, e eu vou ampliar o meu diálogo porque é o seguinte… O cais Estelita, a área em questão, não é relevante sob o ponto de vista de patrimônio histórico-cultural. E não é relevante do ponto de vista do patrimônio ferroviário.

Por mais simpatia que eu tenha com a luta, eu não me proponho a colocar, a vulgarizar o IPHAN [Instituto Patrimônio Histórico Artístico Nacional], para dar um parecer que não seja correto dentro do que a legislação prevê. Agora, ali é relevante sob o ponto de vista de reserva para a cidade retomar um processo de planejamento e de contenção da especulação imobiliária. Isso a legislação prevê. Aquela área também é importante como patrimônio paisagístico.

Mas o ordenamento e o uso do solo é uma questão de âmbito local. E é preciso que as instituições locais ouçam a população. A cidadania está indignada com a possibilidade de aprovação daquele projeto e o que eles demandam, em última instância, é de que aquilo é uma área estratégica, talvez uma das últimas. Não uma área restrita, onde vai ser levado o projeto, mas uma área mais ampla, que já tem outros projetos imobiliários.

Então, o ministério está fazendo estudos técnicos. Dentro de pouco tempo, nós vamos nos posicionar. Agora, minha posição pessoal é de muita simpatia pelo movimento. No Brasil inteiro estão explodindo manifestações. Já tivemos um nível de manifestação sobre a mobilidade urbana, que é produto desse crescimento desordenado e pela opção do carro individual como meio de transporte. Temos manifestações contra a baixa qualidade dos serviços de saúde. Temos uma consciência social e acredito que precisamos melhorar o padrão, hoje, da educação no Brasil. Então, as políticas públicas estão sendo criticadas pela população e há uma demanda pela melhor qualidade.

Agora, nós estamos vivendo uma demanda de políticas urbanas. Com maior profundidade, enfrentando os problemas da cidade. Tem décadas. Se não me engano, no primeiro censo da década de 1960, só 20% da população brasileira viviam em algum tipo de cidade. Houve uma migração e hoje nós temos mais de 80% vivendo em cidades. E esse crescimento, esse inchaço da sociedade brasileira, não foi acompanhado de políticas públicas no sentido de minorar os impactos ambientais, sociais e urbanísticos, com raras exceções. A especulação imobiliária e a ocupação desordenada do solo se instalou.

Então, temos quase uma inviabilidade dessas cidades brasileiras. São Paulo, Rio, Recife, quase todas as cidades. Até cidades planejadas como Brasília e Belo Horizonte sofrem o impacto desse crescimento desordenado, acompanhado às vezes de falta absoluta de presença do poder público, no sentido de regular e de racionalizar esse crescimento em um nível do possível, pelo menos.

E esses movimentos por uma correção de rumos, sob o ponto de vista das cidades, é fundamental para o futuro do Brasil. Eu tenho muita simpatia não só por ele, mas por outros movimentos urbanos que estão se produzindo nas grandes cidades brasileiras e que, de alguma maneira, as instituições democráticas têm que ouvir, dialogar, não pode ignorar. A tendência em Recife é que as instituições ignoram essa demanda. Tratam como se fosse algo exótico, esdrúxulo e externo às suas funções.

É bom lembrar que, na democracia, o poder é exercido em nome do povo, pelo povo e para o povo. Então, não há como escapar de se relacionar. É importante que se considere a força desses movimentos, antes que a gente gere um impasse e uma descrença absoluta na democracia por parte da população brasileira. Eu, pessoalmente, vejo com muito bons olhos.

Eu não posso é transferir para cá a decisão porque existe o pacto federativo, existe a responsabilidade do município. A Constituição de 1988 nivelou a responsabilidade e a importância das três instâncias: federal, estadual e municipal. E essa instância do ordenamento e uso do solo é do âmbito dos poderes locais, da prefeitura, da câmara de vereadores, de outras instituições que compõem a estrutura do Estado.
E acho que é preciso assumir a responsabilidade de dialogar e de dar uma resposta à demanda do movimento em torno do cais Estelita.

Fórum – Para encerrar, qual sua avaliação desses primeiros meses de gestão?

Ferreira – Eu encontrei um ministério enfraquecido. Um medo de assinar, por exemplo. Então, a transferência para os artistas e para a área cultural de responsabilidades onde não há uma clareza aritmética, em que se pede a devolução de dinheiro, misturando quem fez corretamente as coisas com quem não fez. Eu disse à presidenta, na primeira reunião que eu tive com ela, que tinha encontrado um ministério enfraquecido e que ia fazer todo o esforço para recuperar padrões de qualidade no exercício do trabalho aqui dentro das nossas funções. Mas acreditava que em três meses e meio ou quatro a gente teria recuperado.

Estamos construindo isso, a realidade interna já é outra. Nós estamos requalificando as políticas porque o significado da minha volta, em parte, é para retomar políticas, programas e projetos que foram enfraquecidos ou abandonados. Mas em parte eu tenho que reconstituir porque a realidade anda, o Brasil anda muito rápido. Muita coisa já não é a mesma da minha época. Por exemplo, quando nós chegamos ao ministério, pouco mais de 1 milhão de brasileiros tinham acesso a internet. Hoje, mais de 53% dos brasileiros estão conectados.

Então, só isso aí já mostra. Os próprios Pontos de Cultura já exigiam da gente uma modernização. Contamos hoje com a lei do Cultura Viva, que nós regulamentamos. Em todos os aspectos, nós temos que trabalhar daqui para a frente. Recuperar o que de positivo foi abandonado, mas principalmente formular. Nós estamos formulando as políticas. Acabamos de fechar o primeiro ciclo do planejamento estratégico para os próximos dez anos. Estamos detalhando agora o Plano Plurianual e mecanismos de planejamento. Estamos nos preparando para o orçamento para o ano para formular os projetos porque, no primeiro ano, você herda um orçamento e um planejamento feito no governo anterior. Eu sou muito insatisfeito com o que eu herdei, mas isso não é uma discussão relevante. Na verdade, relevante é o que a gente está fazendo.

Fórum – É possível adiantar para nós o que vem pela frente?

Ferreira – Assim, de novidades, primeiro é a política para as artes. Eu já fiz a autocrítica no próprio discurso de posse. Nós conseguimos ampliar o conceito de cultura, dar um atendimento a uma área sociocultural importante no país. Chegamos até os povos indígenas, que, estranhamente no Brasil, a cultura dos povos indígenas não era considerada como parte do trabalho do Ministério da Cultura. Então, constituímos um alargamento do conceito e da dimensão da intervenção do ministério, mas as artes ficaram secundarizadas.

A gente quer recuperar a Funarte e as políticas para as artes. Que políticas para a música são importantes? Qual o papel do Estado junto à música? Na área da economia da música, que está destroçada pela crise da indústria fonográfica, pelo próprio desenvolvimento tecnológico.

Precisamos regular a internet para que eles paguem direito autoral. Na área da música, temos muitas tarefas. Na área do teatro também; na área da dança, na área do circo. Vamos revitalizar as políticas. Vamos fazer um processo aberto. Estou prevendo que, de julho até o fim do ano, nós vamos estar concentrados nisso. Essa vai ser uma das novidades. Sair com um programa e com uma perspectiva de trabalhar as artes e o papel do Estado dentro disso, que dê conta dos desafios do século XXI nessa área.

Na área de cultura digital, vamos retomar o papel que nós temos. Inclusive, já estamos planejando intervenções nos fóruns mundiais, na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), na Unesco, defendendo que a Convenção de Proteção da Diversidade, que nós fomos quando éramos daqui. Gilberto Gil foi o principal articulador para viabilizar essa convenção porque ela já era uma proposta de muitos anos e o governo americano conseguia impedir a sua aprovação. E nós fizemos uma articulação com a África, com os países latinoamericanos, com os países asiáticos, e esse reconhecimento é internacional. Gil vai ser homenageado nas celebrações dos dez anos da Convenção. Nós vamos retomar, atualizando a convenção.

Se nós não regulamentarmos democraticamente a internet, garantindo a sua neutralidade, garantindo regras para a intervenção, essas megaempresas que a operam… Vai se estabelecer uma ordem colonial aí de novo tipo, uma ordem colonial digital. Nós tivemos um incidente agora porque o Facebook censurou uma foto do Estado brasileiro. E eu achei que era um erro, podia ter sido uma questão de automaticidade nessa censura. Liguei e eles disseram: “Não, nós estamos submetidos ao tribunal da Califórnia. Nós não nos submetemos à legislação local.

Depois, publicamente, ele corrigiu um pouco o que disse para mim, mas na verdade eles se comportam de uma maneira imperial. Eles é que dizem o que pode e o que não pode, trazendo para o Brasil o puritanismo americano. Não pode aparecer os seios de uma pessoa. Ele chegou a me dizer que se for um seio canceroso, em uma campanha contra o câncer, se for corpo mutilado por uma violência, pode. Quer dizer, a gente já tem muito problema no Brasil para importar o puritanismo americano. Basta.

Então, a diversidade cultural demanda um olhar sobre a internet que possibilite que os povos sejam protagonistas das opções e que a internet expresse isso. Foi um desrespeito aos indígenas. Se para o indígena aparecer na internet precisa se travestir de não-indígena, isso é um etnocídio simbólico de dimensões importantes. É um desafio. Tem uma parte da nossa pauta que eu chamo de “a pauta do século XXI”. O século XXI traz uma série de questões na área da Cultura.

Essa da proteção da diversidade, de exercício dessa diversidade fundamental para a soberania, para o desenvolvimento, e inclusive porque em alguns aspectos nós somos superiores, por exemplo, à sociedade americana. Lá, o moralismo chega a tal ponto que tem criança de nove anos processada criminalmente porque encostou na fila da merenda na menina à frente dele. Isso é um caso real.

Então, quer dizer, a gente não pode importar as mazelas e as dificuldades de outro povo, em uma mentalidade, como dizia Nelson Rodrigues, de vira-lata. A gente tem que ter consciência da importância de nós construirmos e termos uma determinação. Isso não é com xenofobia, nem com isolamento, mas, pelo contrário, com regras civilizadas das relações culturais no mundo. E o Brasil tem uma importância.

O Marco Civil repercute no mundo inteiro. O Marco Civil da Internet. É preciso desdobrá-lo, garantindo essa neutralidade, garantir que não haja privatização de estruturas. Eu não vejo com bons olhos a proposta que o Facebook fez para o governo brasileiro. Aquilo ali é um bombom que eles dão para garantir essa privatização dentro da estrutura da internet. A gente não pode cair nessa cilada.

Nós somos vistos coma admiração e respeito inclusive pelos países europeus que deflagraram processos semelhantes a partir do Marco Civil e do discurso da presidenta Dilma na ONU sobre a espionagem, sobre a necessidade de preservar a internet como um espaço público importante da humanidade. A gente não pode retroceder e aceitar espelhinho que venham nos oferecer aqui para manter uma ordem colonial digital. Então, eu não vejo com bons olhos a proposta.

Acho que a gente tem que avançar em outra direção, na direção da afirmação de algo que o Brasil está preparado para fazer. Nós somos um dos países mais conectados do mundo. E já com uma experiência, um discernimento da importância pública dessa esfera, que é preciso tratar.

E, nas áreas das artes, os pontos de cultura vão ser revalorizados. Estamos dando um novo tratamento, mais amplo. Vamos regulamentar o que é Pontão de Cultura, que estava meio solto o conceito. Ou seja, em todas as áreas, nós estamos construindo. O planejamento estratégico nós estamos fechando agora. Não sei se você reparou, nós revitalizamos a comunicação no ministério. A gente não pode ficar dependendo da honestidade de um jornalista ou de outro na relação com a sociedade.

A gente precisa criar mecanismos também de relação direta. Então, aí entra a mídia livre, os jornalistas que estão buscando criar o embrião de uma nova comunicação no Brasil, mas nós também temos que ter uma inteligência, uma leveza, uma agilidade na área da comunicação. E a gente está construindo isso. Já dá para sentir que a gente trata a comunicação como uma das políticas culturais e não como algo auxiliar, como uma linha auxiliar.

Fórum – E sobre os direitos autorais?

Sobre os direitos autorais, estamos numa luta para garantir os direitos em um ambiente criado pela internet, pela digitalização. Ninguém quer pagar os direitos autorais para os artistas brasileiros. Proporcionalmente, é o maior desequilíbrio da balança de pagamentos. O Brasil paga todos os direitos autorais estrangeiros e não recebe quase nenhum. Os artistas estão sendo prejudicados e a maior economia, a maior escala de direito autoral é no mundo digital.

E aí não há direito autoral no ambiente digital e no século XXI sem o Estado regulador que obrigue que se realize. Nós vamos falar com os artistas. Eu já fiz reunião com o Procure Saber e com o GAP (Grupo de Apoio Parlamentar), são as duas maiores estruturas representativas dos músicos. A gente quer ampliar isso para que possa ir, inclusive, para os fóruns internacionais fundamentados numa legislação brasileira. Eu tenho procurado trabalhar com o Congresso – o Senado e a Câmara – e vamos avançar. E a mudança na Lei Rouanet também, que é fundamental.

Entrevista concedida a Maíra Streit, publicada no Portal Fórum – www.revistaforum.com.br

FNDC discute comunicação com Ministério da Cultura

Representantes do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) se reuniram com o ministro Juca Ferreira, da Cultura, nesta terça (16/6), para apresentar agenda do movimento pela democratização da comunicação. Após breve apresentação do Fórum, que reúne mais de 300 organizações da sociedade civil, o grupo pontuou questões comuns às agendas da comunicação e da cultura e reivindicou ao ministro que atue junto ao governo para articular um espaço de diálogo permanente com esse setor da sociedade. O FNDC também solicitou atuação da pasta em ações de fortalecimento da comunicação pública e falou sobre a necessidade de articular o Canal da Cultura, previsto no Decreto 5.820/06.

Entre os vários pontos comuns entre as agendas da comunicação e da cultura, o Plano Nacional de Cultura (PNC) trata de três deles: a Meta 23, que prevê 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento no país, compartilhados entre o governo federal, as Unidades da Federação (UF) e os municípios integrantes do Sistema Nacional de Cultura (SNC); a Meta 43, que prevê um núcleo de produção digital audiovisual em cada estado, e a Meta 45, que estabelece benefícios a 450 grupos, comunidades ou coletivos para ações de comunicação.

Sobre a Meta 23, o Ministério da Cultura (MinC) deverá lançar o edital Pontos de Mídia Livre no início de julho, e não mais na próxima segunda-feira (22/6), como havia nos informado inicialmente o ministro. Os pontos são uma forma de descentralizar a produção da comunicação. “As mídias alternativas empoderam a população na medida em que possibilitam que ela produza seus próprios conteúdos. Por isso vemos com otimismo esse novo edital que o MinC lançará nos próximos dias”, observou Orlando Guilhon secretário de Organização do FNDC.

Canal da Cultura

O FNDC também expôs ao ministro a preocupação em relação ao modelo do Canal da Cultura, previsto no Decreto 5.820/06 (define o padrão de TV digital no Brasil e estabeleceu diretrizes para a transição do sistema analógico). Bia Barbosa, secretária de Comunicação do Fórum, afirmou que a sociedade espera que seja um canal “de fato público”. “Ainda existe uma confusão entre o que seriam os sistemas público e estatal de radiodifusão. Prova disso é o modelo no qual foi concebido o Canal da Educação, lançado no mês passado, que terá programação produzida por entes estatais, como o Ministério da Educação e as secretarias municipais e estaduais de Educação”.

Sobre esse ponto, especificamente, o assessor especial do ministro, Adriano de Angelis, afirmou que o MinC vem construindo os eixos do canal de forma a garantir que o canal seja regulamentado como público, com participação da sociedade.

Diálogo permanente

A coordenadora-geral do Fórum, Rosane Bertotti, explicou a Ferreira que a entidade vem atuando fortemente junto a outros ministros, como Ricardo Berzoini (Comunicações), Edinho Silva (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República) e Miguel Rosseto (Secretaria-Geral da Presidência da República), para buscar a construção de uma mesa de diálogo permanente. “Nossa principal agenda é a construção de um novo marco regulatório para o setor da comunicação, mas não é a única. A comunicação envolve vários setores do governo e requer iniciativas que independem de regulação geral, e temos acúmulo e propostas para propô-las e discuti-las, por isso consideramos estratégico o estabelecimento desse canal de comunicação, inclusive com a presença do MinC”, ressaltou Rosane.

Bia Barbosa reforçou a reivindicação lembrando ao ministro que a política pública de comunicação é demasiadamente fragmentada no Brasil.

Fortalecimento da comunicação pública

O FNDC também falou sobre a necessidade de maior compromisso com o fortalecimento das emissoras do campo público de comunicação, pontuando a necessidade do MinC intensificar sua presença no Conselho Deliberativo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), inclusive cobrando da Presidência da República a nomeação de cinco conselheiros eleitos há mais de um ano. Na conversa, também se falou sobre a necessidade de mudança nos critérios de distribuição das verbas oficiais de publicidade para garantir maior pluralidade e diversidade na mídia brasileira.

Retomada de diálogo com o MinC

A reunião com o ministro representou a retomada do diálogo entre o movimento, que tem como principal pauta a construção de um novo marco regulatório para a comunicação, e o MinC, que nas duas últimas gestões não mostrou interesse em fazer uma interlocução com esse setor da sociedade. Rosane Bertotti explicou a Ferreira que a entidade reúne mais de 300 organizações e que ao longo dos últimos 20 anos vem atuando na busca de uma política de comunicação capaz de garantir o direito humano à comunicação para todos os brasileiros, além de apresenta-lo o projeto Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica (Lei da Mídia Democrática).

Também foi entregue ao ministro uma cópia da Carta de Belo Horizonte, aprovada durante o 2º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação, em abril; e a Plataforma pelo Fortalecimento da Comunicação Pública no Brasil. Além de Rosane Bertotti, Bia Barbosa e Orlando Guilhon, também participaram da audiência o secretário-executivo do Fórum, Pedro Rafael Vilela, e os assessores especiais do ministro Adriano de Angelis e Gabriel Portela.

Escrito por Elizângela Araújo
para o FNDC

Populismo penal e midiático pela redução da maioridade penal na revista Veja

*Helena Martins

No momento em que o Congresso Nacional discute propostas de alteração da maioridade penal, especialmente a proposta de emenda constitucional (PEC) 171/93, cujo relatório da Comissão Especial criada para analisar a medida possivelmente será votado nesta semana, a revista Veja usa um caso extremamente chocante – tortura e estupro de quatro adolescentes no Piauí, que inclusive culminaram com a morte de uma delas – para praticar mais uma vez o populismo midiático em defesa da redução da maioridade penal.

Ao longo das páginas do chamado “Especial Maioridade Penal”, a revista apresenta a proposta de redução como única saída possível para responder a casos como esse. Para não deixar que a memória traia os leitores, por pelo menos três vezes julga antecipadamente os quatro adolescentes acusados de, ao lado de um adulto, terem praticado aquelas violações.

“Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”, diz um trecho da matéria. Em outro, ela indica a pena que o adulto poderá obter caso seja condenado. No caso dos adolescentes, nem sequer essa ponderação é feita. O tiro é direto: “Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários”.

A prática constitui clara violação de direito, pois o julgamento não é de responsabilidade da revista e sim do Poder Judiciário, que  acompanha o caso com atenção no Piauí e em âmbito nacional. No entanto, ao longo de toda a publicação, os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no estado são tratados não como suspeitos, mas como culpados, inclusive com suposta fama de praticarem atos violentos, embora a fonte de tal acusação não seja citada.

E essa violação não é a única cometida. A identificação de adolescentes que podem estar em conflito com a lei é proibida pelo Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), mesmo que total ou parcialmente – como faz a revista, que usa fotos borradas e iniciais dos nomes dos acusados.

Isso fere não só o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas também a Constituição Federal e pactos internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica. Isto motivou a denúncia feita pelo Intervozes à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo na terça-feira 16.

No pedido, o coletivo requer que sejam tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da Editora Abril, que edita a revista Veja. A violação de direitos fundamentais – prática recorrente na imprensa brasileira – não pode ser naturalizada.

Aqueles e aquelas que defendem a proteção integral de crianças e adolescentes, tal qual estabelece a Constituição Federal, não podem desconsiderar ainda o alcance dessas violações. Apenas esta última edição de Veja teve 1.100.983 exemplares impressos. Neles, o que se vê é o uso de um jornalismo pautado pela espetacularização das notícias, pelo tratamento descontextualizado de dados e pesquisas, isso com o objetivo não de promover o debate sobre um tema de interesse público junto à sociedade, mas sim de impor a sua visão de mundo aos leitores.

Tanto é que, ao longo de toda a matéria, intitulada sugestivamente de “Justiça só para maiores”, não se vê uma única contraposição à tese da redução da maioridade penal como resposta ao problema da segurança que atinge o Brasil. Não há a problematização do que ainda não foi executado do ECA, o que poderia contribuir para a promoção de direitos em nosso País.

Ao contrário, o ECA é apontado pelos jornalistas que assinam a reportagem como “um dos mais lenientes conjuntos de leis do mundo destinados a lidar com menores infratores”. Segundo eles, a mudança no estatuto é a “única esperança de que se chegue a uma abordagem efetiva dessa tragédia. Enquanto isso, as Daniellys continuarão a ser estupradas, mortas a pedradas, jogadas de precipícios, sob o olhar leniente da Justiça”.

Ao praticar populismo penal, apresentando a privação de liberdade em um sistema penal falido, a revista priva a sociedade de ter acesso a uma informação plural, contextualizada e completa. Ela ignora, por exemplo, o fato de o Brasil ocupar hoje o patamar de terceiro País com a maior população carcerária – posição que galgou, sobretudo, nos últimos dez anos, quanto também vimos o crescimento da violência, o que deixa claro que a saída proposta é absolutamente equivocada.

A revista também ignora o fato de que as instituições do sistema socioeducativo, embora possuam muitos problemas, como superlotação, dificuldades para garantir acesso à saúde e educação e mesmo violência, ainda assim conseguem números de reincidência menores que os constatados no caso das pessoas que passaram por presídios. Aliás, a crítica ao sistema penal aparece, no especial da Veja, em uma matéria com tom opinativo que não dialoga com as demais.

Esse tipo de ausência tem impactos claros. O crescimento do punitivismo se expressa com o frequente aumento de penas, com novos crimes tornados hediondos, sem que ao menos haja uma problematização sobre os impactos dessa política. E, o que é absolutamente grave, sobre os grupos sociais que são os atingidos por ela.

A edição em questão é mais uma vez elucidativa desse mecanismo perverso. Ao indicar os adolescentes como praticantes de crimes bárbaros – embora em apenas um trecho da reportagem citada pondere que apenas 2,5% dos internos na Fundação Casa praticaram crimes considerados hediondos – constrói a imagem de que esses são os sujeitos perigosos que devem ser excluídos, extirpados do convívio social. Talvez por práticas como essa é que o verdadeiro extermínio de jovens negros no País cause espanto nas pesquisas, mas pouca comoção e engajamento da sociedade.

Não é o debate franco de ideias que interessa aos grupos de comunicação hegemônicos. Como mostrou a pesquisa A mídia brasileira e as regras de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei, elaborada pela ANDI – Comunicação e Direitos, ao valer-se de casos de grande apelo midiático, os veículos nacionais indicam a redução da idade penal como principal mudança para conflitos que envolvem aqueles sujeitos.

A pesquisa comprova ser esse um noticiário reducionista, que alimenta a sensação de que a solução para a problemática é simples, negligencia o debate sobre o sistema socioeducativo e catalisa o medo coletivo.

O que mais uma vez fica claro é que não há como lutarmos por direitos sem enfrentarmos o tema da comunicação, já que a mídia se tornou um dos principais espaços de construção de sentidos e de hegemonia na sociedade contemporânea. Se nós duvidamos disso, os grupos dominantes não perdem tempo com essa questão e se organizam para usar todo o aparato que têm para impor sua visão de mundo, mesmo que para isso tenham que infringir leis.

Urge, portanto, estranharmos o que aí está, criticarmos abertamente, exigirmos um jornalismo responsável e buscarmos outras narrativas que tenham o objetivo não de ludibriar a população, mas de realmente informá-la.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.  

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O acesso à informação no Judiciário

Realizado no último dia 9, o seminário “Independência e Transparência no Judiciário” reuniu juristas, jornalistas, estudantes e representantes de organizações da sociedade civil para tratar de aspectos do funcionamento do sistema judiciário brasileiro. Entre os temas debatidos estavam o controle ideológico nos tribunais, o panorama da transparência do Judiciário e sua relação com a imprensa. O evento foi organizado pela AJD (Associação Juízes pela Democracia), ARTIGO 19, Colab-USP, Conectas Direitos Humanos, IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Centro Acadêmico XI de Agosto e o curso Gestão de Políticas Públicas da USP.

A diretora-executiva da ARTIGO 19, Paula Martins, falou na mesa “Contexto de transparência e acesso à informação no Judiciário” para apresentar as conclusões do relatório “Monitoramento da Lei de Acesso à Informação em 2014”. O estudo analisou os níveis de transparência de 51 órgãos públicos da esfera federal – entre os quais, 11 órgãos da Justiça (que engloba órgãos do Judiciário + Ministério Público).

Apesar de os dados, de uma forma geral, mostrarem uma ligeira melhora em relação a pesquisas de anos anteriores, os órgãos da Justiça seguiram apresentando o pior desempenho quando comparado com os do Executivo e Legislativo. “Ainda que tenhamos observado avanços principalmente no quesito da Transparência Ativa (que avalia o comportamento do órgão em publicizar informações públicas de forma proativa), 63,6% dos órgãos de Justiça analisados não cumpriram dois ou mais critérios da Lei de Acesso à Informação (LAI). Além disso, 63,7% não possuem serviços de acesso físico à informação e alguns ainda não possuem SICs (Serviço de Informação ao Cidadão) eletrônicos”, afirmou Martins.

A falta de regulamentação da LAI em tribunais e a linguagem das respostas também foram apontados como problemas pela diretora da ARTIGO 19. “Ainda hoje, há muitos órgãos de Justiça dizendo que não podem responder porque a LAI não foi regulamentada dentro daquele tribunal. Outro problema foi que, em linhas gerais, nós tivemos várias respostas com linguagem inacessível, com um jargão jurídico muito forte.”

Falando em nome da Secretaria da Reforma Judiciária, órgão ligado ao Ministério da Justiça, Gabriela Gonçalves destacou os avanços ocorridos dentro do Executivo Federal após a implementação da LAI. “Antes, o sigilo a regra. Hoje não é mais; agora o acesso a informação é que é a regra e o sigilo passou ser a exceção. A LAI mudou o paradigma, a maneira como as pessoas trabalham e se relacionam com a informação no Executivo Federal”, opinou.

Para a servidora pública, quanto mais permeável ao controle os órgãos públicos forem, mais as pessoas participam da administração pública, fortalecendo o conceito de “accountability” (responsabilização). “A LAI teve um resultado impressionante no Executivo Federal e esperamos que os outros poderes o alcancem.”

Já Jorge Marchado, do COLAB (Colaboratório de Desenvolvimento e Participação), da USP, apresentou os resultados da pesquisa “Diálogos sobre Justiça – estudo sobre desafios da transparência no sistema de justiça brasileiro”, realizada em parceria com a Fundação Getúlio Vargas e a ARTIGO 19.

Segundo o estudo, que aplicou um questionário com 135 itens sobre o quesito Transparência Ativa, os órgãos militares se saíram como os menos transparentes. “Os piores resultados foram do Ministério Público Militar e do Superior Tribunal Militar. O Ministério Público Federal e o Ministério do Trabalho também deixaram a desejar”, apontou.

Machado lembrou ainda que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) foi o órgão que melhor se saiu na pesquisa. E concluiu sugerindo a realização de uma consulta pública para a nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), que está em fase de discussão, e a realização de uma conferência nacional. “Já tivemos conferências de diversos temas, como a de sáude, a do idoso, a da comunidade LGBT. Por que não fazer uma conferência nacional de Justiça?”

Fonte: Artigo 19