“A comunicação é estruturante para o avanço e a consolidação da democracia brasileira”

Que história sobre o Semiárido é mostrada na TV? Como os povos do campo, as mulheres e os jovens negros são representados pela grande mídia? Por que a mídia não se interessa em temas como agroecologia, segurança alimentar e reforma agrária?

Para entender melhor essas questões é necessário compreender como funciona o sistema de comunicação do País, um dos mais concentrados do mundo. Para falar sobre esse e outros assuntos, como o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática, a Assessoria de Comunicação da ASA (ASACom) conversou com a agricultora, coordenadora do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação (FNDC) e secretária nacional de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Rosane Bertotti.

De acordo com Rosane, “a comunicação é estruturante para o avanço da democracia brasileira”, mas os setores que controlam a mídia tentam barrar o debate da regulação afirmando que se trata de censura. Esse é um dos mitos que precisam ser desconstruídos para que a discussão avance. Confira a entrevista completa.

ASACom – Qual é a avaliação do FNDC sobre o 2º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação (ENDC), realizado em abril deste ano, em Belo Horizonte (MG)?

Rosane Bertotti – O Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação (ENDC) foi histórico. Provavelmente, desde a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) que um evento sobre democratização da mídia não reunia um conjunto tão representativo de organizações da sociedade civil e ativistas interessados em discutir essa pauta que é estruturante para o avanço e a consolidação da democracia brasileira. A construção de uma sociedade efetivamente democrática só se realiza se houver liberdade de expressão para todos e todas, o que pressupõe a garantia do direito à comunicação. Reafirmamos, no ENDC, que o Brasil precisa enfrentar o desafio de atualizar os instrumentos de regulação democrática dos meios de comunicação e que parte importante da sociedade está disposta a intensificar as ações de pressão e mobilização social para que isso aconteça, para que esse debate seja colocado na ordem do dia.

ASACom- Além da Constituição Federal, quais os principais marcos legais que existem no Brasil relacionados à comunicação e a liberdade de expressão e qual a análise do FNDC sobre eles?

Rosane Bertotti – Podemos dizer que o conjunto de normas e leis que estão em vigor sobre comunicação forma um emaranhado de dispositivos dispersos e ineficazes para os desafios da atualidade. A principal lei de comunicação ainda é o Código Brasileiro de Telecomunicações (1962), que tem mais de 50 anos. Além de não ser um instrumento capaz de cumprir os preceitos constitucionais para o setor, essa lei não dialoga em nada com as transformações tecnológicas em curso na contemporaneidade e que estão modificando radicalmente o sistema de comunicações. Ao contrário de países democráticos como Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Espanha e Argentina, o Brasil pode ser caracterizado hoje por uma brutal concentração dos meios de comunicação, tanto na radiodifusão quanto nos veículos impressos. A internet tem cumprido importante papel no sentido de multiplicar as vozes em circulação na esfera midiática, mas neste espaço também atuam os grandes conglomerados de mídia, reforçando a concentração econômica do setor. Ao mesmo tempo, carecemos de mecanismos transparentes e democráticos para a concessão de outorgas de radiodifusão e não há no país uma política que garanta a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação, como previsto na Constituição Federal. A ausência de um campo público de comunicação robusto aumenta o poder de mercado do setor privado/comercial, enquanto canais comunitários seguem à margem do sistema midiático. Dispositivos de fomento à produção nacional, regional e independente estão restritos hoje ao Serviço de Acesso Condicionado (TV por assinatura), a partir da Lei 12.485/2011. Na TV aberta, prevalece a concentração da produção no eixo Rio/São Paulo, a maior parte dos canais já tem mais produção estrangeira que nacional, crescem os casos de sublocação das grades de programação e de transferência de concessões de forma irregular e sem qualquer debate público. A ausência de mecanismos para o direito de resposta nos meios de comunicação também cria um ambiente de violação dos direitos humanos e de restrição à liberdade de expressão de indivíduos e grupos sociais.

ASACom – A sociedade civil organizou um Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática que apresenta um novo marco regulatório para os serviços de radiodifusão e Televisão. Qual o balanço dessa iniciativa?

Rosane Bertotti – O Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática é uma proposta concreta de diversas organizações e ativistas pela liberdade de expressão, frente à inércia do governo em enfrentar esse debate. Ele é baseado nas diretrizes aprovadas na Conferência Nacional de Comunicação e visa transformar o quadro de concentração e pouquíssima diversidade nos meios de comunicação, principalmente rádio e televisão, além de ampliar e fortalecer a radiodifusão pública e comunitária, bem como garantir maior transparência e participação social na definição das políticas públicas de comunicação do país.

ASACom – Quais as estratégias do FNDC para capilarizar o projeto de lei da mídia democrática? De que forma entidades e cidadãos comuns podem participar dessa iniciativa?

Rosane Bertotti – O projeto precisa da adesão de 1,5 millhão de eleitores em todo o país para poder ser apresentado ao Congresso Nacional. Trata-se de um desafio gigantesco e que depende de uma ampla e permanente mobilização popular. A campanha mantêm um site (www.paraexpressaraliberdade.org.br) com todas informações sobre o projeto, inclusive materiais de divulgação, mobilização e coleta de assinaturas. É fundamental replicar esses conteúdos nas escolas, associações, sindicatos, nos mais diversos espaços e comunidades. Precisamos mostrar para a população que comunicação é direito e que, assim como na saúde, com direito a remédio, médico e posto de saúde, na comunicação é preciso um sistema de mídia com diversidade de conteúdo e pluralidade de fontes de informação. As pessoas interessadas e as entidades podem se engajar na campanha divulgando nossos materiais (disponíveis para download no site). Tão ou mais importante do que isso é ajudar a mobilizar e construir a luta pela democratização da comunicação a partir dos Comitês do FNDC em diversos estados e todas as regiões do país, que reúnem entidades, movimentos e ativistas que debatem e organizam ações para avançar nessa agenda.

ASACom- Na sua avaliação, qual é o principal desafio hoje para que o debate sobre a regulação da mídia avance no Brasil?

Rosane Bertotti – O principal desafio é superar o obstáculo da censura promovida pela própria mídia contra esse debate. Por temer perder os privilégios, o oligopólio da comunicação no Brasil desencoraja e interdita qualquer debate nessa direção, taxando como censura. Ora, censura é não permitir o debate. Nesse contexto, o governo precisa entender que a regulação da comunicação é uma agenda da democracia, que interessa a toda sociedade. Se a democracia precisa de mídia, a mídia também precisa de democracia. Os países que são democracias consolidadas regulam a mídia justamente para garantir diversidade e pluralidade. Superar a interdição ao debate é crucial nesse processo.

ASACom – Na América Latina, países como o Uruguai (2014) e a Argentina (2009) aprovaram recentemente suas leis de regulação da mídia. Que aprendizados e lições o Brasil pode tirar do processo de luta pela democratização da comunicação nesses dois países?

Rosane Bertotti – O primeiro é que não se pode ter medo de fazer esse enfrentamento. Uruguai e Argentina, principalmente este último, conviveram ao longo de décadas com sistemas de comunicação oligopolizados, que influenciavam e ainda influenciam os processos políticos desses países. Além disso, não há conquista desse tipo sem grande pressão popular. A democratização da comunicação precisa estar no centro da agenda da luta social em nosso país e o governo precisa reagir a essa pressão garantindo o ambiente para o debate e construção de um novo marco legal para o setor.

ASACom- Quais as articulações e debates sobre a democratização da comunicação que estão sendo feitos nas áreas rurais?

Rosane Bertotti – O FNDC seja por meio de seus comitês, entidades parceiras ou mesmo espaços institucionais, busca intervir na discussão sobre democratização da comunicação em todo o país. No caso da zona rural e mesmo regiões do interior, há um grande desafio de ampliar o acesso aos próprios meios de comunicação, com abertura de novos canais de rádio e televisão, ampliação das emissoras comunitárias e fortalecimento da radiodifusão pública. É preciso garantir que populações indígenas, quilombolas, assentamentos de trabalhadores rurais, entre outras comunidades constituam seus próprios meios de comunicação, adequados às suas realidades. A atual legislação, no caso de rádio comunitária, é bastante restritiva para atender áreas rurais isoladas, pois limita a potência e exige uma burocracia infernal.

ASACom- No Semiárido brasileiro muitas rádios comunitárias atuam como instrumentos e estratégias políticas para transformação e organização popular, no entanto, enfrentam desafios desde a concessão até a estruturação. O FNDC tem alguma reivindicação sobre as rádios comunitárias que se localizam no campo?

Rosane Bertotti – O FNDC, em conjunto com dezenas de outras organizações, tem participando dos fóruns de debate sobre as emissoras comunitárias de todo o país. Em novembro de 2014, fomos signatários da Plataforma para o Fortalecimento da Comunicação Pública, que incluiu uma série de proposta para o setor de rádios comunitárias. O diagnóstico é que a legislação própria da radiodifusão comunitária (Lei 9612/1998) precisa ser revista, pois historicamente limita a potência e o alcance e não prever um modelo de financiamento, além de impedir a formação de redes e colocar imposições desiguais em relação às rádios comerciais. Some-se a isso a criminalização prevista na legislação de atividades de transmissão não autorizadas, que atinge parte importante desses comunicadores. Um levantamento realizado pela ONG Artigo 19 apontou que em 2012 havia 2.113 processos penais contra rádios comunitárias.

Entrevista concedida a Gleiceani Nogueira, publicada no portal da ASA – www.asabrasil.org.br

Empresas podem boicotar TV Digital Interativa do Brasil

Por Rafael Diniz e Thiago Novaes*

Há cerca de dois meses, foi publicado neste blog o artigo “A Reinvenção da TV Digital no Brasil“, de nossa autoria. Ali, levantamos as grandes potencialidades da adoção do perfil C de novos receptores para TV Digital, a serem distribuídos para 14 milhões de domicílios beneficiados pelo Bolsa Família.

Trata-se de uma oportunidade ímpar de realizar boa parte das premissas estabelecidas pelo Decreto Presidencial 4.901, de 26 de novembro de 2003, que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital e de enfatizar uma plataforma de comunicação sob seus aspectos de cidadania, voltada para a população menos favorecida, com acessos a novos serviços, mais conteúdos, e com interatividade.

Esses conversores poderão colocar o Brasil como primeiro país no mundo a levar a internet para sua população de baixa renda através da TV Digital, permitindo a chamada “interatividade plena” na casa das pessoas. Tal medida pode permitir incluir digitalmente uma expressiva parcela da população que necessita de mais acesso à informação, e que não dispõe deste acesso por outros meios. Esta é uma decisão política que já foi tomada, e que contou com o apoio do atual ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini.

Entretanto, as decisões do ente responsável pela migração da TV analógica para o Sistema Brasileiro de TV Digital (o SBTVD) estão em permanente disputa. Presidido por Rodrigo Zerbone, Conselheiro da Anatel, o Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (Gired) é formado por representantes de empresas privadas de televisão e por operadoras de telefonia, sem qualquer representação da sociedade civil.

Nesta sexta-feira, dia 31, o Gired decidirá as especificações do conversor de TV Digital que será distribuído para aproximadamente um quarto da população brasileira. Os interesses tanto da indústria de receptores, que visa maximizar o lucro e deixar o conversor o mais simples possível, quanto os das empresas de radiodifusão comercial, que querem a maior parte dos bilhões de reais da verba para a migração alocada para propaganda, coincidem com os das empresas de telecom, que pressionam para que o processo de migração aconteça no cronograma, de forma que a banda dos 700 MHz seja liberada para uso em telefonia móvel o mais rápido possível.

Neste contexto, a sociedade civil brasileira, que não tem voz no Gired, e representantes do governo e de emissoras públicas de comunicação já começam a ver o pior no fim do túnel.

Existe a chance deste lobby fortíssimo de empresas conseguir derrubar o suporte à interatividade plena no conversor. Se isso ocorrer, contrariaremos o que foi aprovado para os conversores de TV Digital a serem distribuídos e o que vem sendo sustentado politicamente por membros do Poder Executivo brasileiro, como Berzoini e o secretário de Comunicações Eletrônicas, Emiliano José.

Um requisito para a interatividade plena é o acesso à Internet. No entanto, representantes da indústria dizem que as normas do SBTVD, assim como a especificação do conversor, não são factíveis.

Dentre as demandas da sociedade civil estão a inclusão de drivers (software que permite a ativação de um dispositivo) para modems 3G/4G e adaptadores WiFi com porta USB. O lobby das empresas, no entanto, afirma que esta inclusão é difícil e que não seria factível para instalação nos receptores. Pois bem, os conversores rodam Linux, e o Linux já possui uma infinidade de drivers para esses dispositivos. Como pode ser difícil a simples adição dos drivers que já acompanham o Linux no firmware do conversor?

A norma brasileira que trata do receptor (ABNT 15604) é clara no que tange à interatividade plena. No capítulo 15 da norma, intitulado “Comunicação interativa (bidirecional) – Canal de interatividade”, consta explicitamente que o receptor deverá suportar a instalação de novos drivers. Para um fabricante de modem ou adaptador WiFi, a questão da geração de um driver compatível com o conversor depende do acesso ao código fonte exato do Linux que está em uso no aparelho.

Isso não deveria ser um problema, pois como o Linux é software livre, licenciado pela GPL v2 (GNU Public License), a empresa que irá produzir o conversor é obrigada a liberar esse código fonte. No entanto, ao que parece, o lobby das empresas parece ignorar esse fato, agindo em desrespeito às licenças e na contramão do discurso de inclusão digital defendido pelo Ministério das Comunicações.

O mínimo que o fabricante do conversor deverá prover é um kit de desenvolvimento para a produção de drivers que permita que adaptadores 3G/4G e WiFi de hoje, e os que forem lançados no futuro, possam ser suportados pelo conversor de TV Digital. O ideal seria que todo o código fonte do receptor fosse liberado, de forma que evoluções independentes do software do receptor pudessem ser desenvolvidas.

Considerando o imenso potencial de desenvolvimento social que a TV Digital Interativa permite à população brasileira, previsto igualmente no decreto 4.901 que instituiu o SBTVD, é fundamental que Berzoini, seus secretários e conselheiros da Anatel, em especial o sr. Rodrigo Zerbone, que preside o Gired, façam valer a decisão da presença da interatividade plena nos receptores, e sigam na íntegra as normas do SBTVD.

*Rafael Diniz é mestre em informática pela PUC-Rio e Thiago Novaes é doutorando em Antropologia na UnB.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital. 

“Telesur permite que América Latina seja contada de outra maneira”

No 10º aniversário da cadeia multiestatal Telesur, sua presidenta, Patricia Villegas, esmiúça, nesta entrevista, o significado histórico dessa inédita experiência, que marcou a ferro e fogo o campo comunicacional na América Latina e Caribe. Villegas analisa também o cenário midiático na região, caracterizado pela disputa de sentidos frente às grandes corporações, e destaca a transcendência de “colocar as câmeras no lugar onde estão as vitimas e não os vitimadores”.

Quais são os principais aportes que tem feito a Telesur nesses 10 anos?

Creio que a Telesur colocou, novamente, no cenário público uma discussão muito importante, que é o direito à informação, ou a informação como um direito. Vínhamos de uma América Latina e Caribe agredida pela década neoliberal, os direitos fundamentais haviam sido privatizados, e assim como a saúde ou a educação são direitos, a informação também é. E o fato de que a Telesur considere sua audiência não como consumidores, mas como usuários é uma mudança que corresponde a essa visão.

Outro tema não menor é que, na América Latina, em meio a um forte desinvestimento por parte dos governos neoliberais, tinha sido entregue aos meios públicos, fundamentalmente, o trabalho de contar a cultura, o folclore, mas havia desaparecido a notícia, a informação, a opinião. Isto havia sido entregue aos meios privados.

Esses dois elementos são fundamentais dentro do que a Telesur instala no cenário midiático continental nestes 10 anos. Depois, há outra quantidade de coisas já a partir do concreto. Por exemplo, que os profissionais da Telesur contam com as mesmas ferramentas tecnológicas que nos meios privados. O desinvestimento nos meios públicos tinha gerado uma grande diferença nas possibilidades de contar. A Telesur reverte esta tendência, nós podemos contar nossas historias tendo as mesmas oportunidades tecnológicas que os meios privados.

Que aspectos resgatam de experiências anteriores de comunicação contra-hegemônica e que gerou a irrupção da Telesur na região?

Em uma entrevista que fizemos com o comandante Chávez [ex-presidente venezuelano Hugo Chávez], em outubro de 2005, no início da Telesur, ele me disse: “estou muito feliz, Patricia. É muito lindo ver a concretização de um sonho, de um sonho de muita gente antes que você, inclusive, de muita gente antes de mim”. Obviamente, que a Telesur tem alguns antecedentes, de uma comunicação diferente, uma comunicação que põe as câmeras no lugar onde estão as vítimas e não os vitimadores, há enormes antecedentes disso.

De alguma maneira, a irrupção da Telesur, que é filha dos processos de transformação na América Latina e Caribe, permite que a região seja contada de outra maneira. Durante o golpe de Estado em Honduras, por exemplo, o relato teria sido outro se as câmeras da Telesur não tivessem estado lá, ao vivo. Não era necessário nem sequer interpretar o que estava acontecendo, era questão de subir um sinal e mostrá-lo, ter a coragem e a capacidade técnica de fazer isso. Não é que acreditamos que temos a verdade revelada nem se trata de fazer coberturas espetaculares, mas de estar ali, do lado das vítimas, no lugar donde se origina a história, contando o que está acontecendo. Eu me pergunto, por exemplo, o que teria ocorrido durante o Plano Condor se existissem emissoras como a Telesur?

Então, isso muda o cenário dos meios na América Latina, há propostas e estratégias comunicacionais que surgiram após o nascimento de Telesur e depois de ver que nós íamos construindo esse outro relato, o dessa América Latina que estava mudando e que estava sendo ameaçada, como continua estando hoje.

A Telesur, ademais, reivindica o jornalismo a partir do local, por isso temos a maior rede de colaboradores e correspondentes do que qualquer agência de notícias nesta parte do mundo. Tem a ver com a concepção, com a gênese do projeto, o que, além disso, nos permite estar na ofensiva e não na reação do relato.

Como analisas o mapa comunicacional atual na América Latina e a correlação de forças frente às grandes corporações midiáticas? Qual é a estratégia da Telesur para enfrontar essa “batalha”?

Certamente, que os grandes monopólios continuam tendendo à hegemonia e o desequilíbrio segue sendo enorme. Dez anos são muitos para a vida dos seres humanos, mas para um projeto de transformação, que tem que deixar para trás séculos de exclusão e de pobreza, são muito poucos. Obviamente, que o cenário dos meios na América Latina continua sendo hegemônico para os monopólios econômicos, mas há 10 anos não existiam meios públicos como os que existem agora na Bolívia, no Equador ou na Argentina. Há uma consolidação de meios públicos. A sociedade tem direito de estar informada e a única possibilidade de que isso seja real é que o Estado participe disso, como com tantos outros direitos que temos conquistado.

Obviamente, o panorama não é de triunfo para nós, mas, hoje, ocupamos um lugar. Quando você tem que contar a história da América Latina e Caribe, hoje, necessariamente, tens que ver a Telesur, como tens que ler o Nodal. Mas a Telesur ou o Nodal são possíveis porque, hoje, em boa parte dos nossos países, há uma “insegurança” sobre os meios – como diz Ignacio Ramonet –, as pessoas duvidam do que estão dizendo os meios privados, inclusive duvidam do que dizem os meios públicos, o que é muito bom, e consulta distintas fontes. Isso não acontecia há 10 anos.

Em diferentes conjunturas políticas, a direita midiática continental demonstra ter mecanismos muito eficazes de articulação em defesa dos seus interesses. Que leitura tens dos processos de integração a partir dos meios públicos e populares, e qual é o aporte que vem fazendo a Telesur nesse caminho?

Nós não nos dedicamos muito a ver o que está fazendo a concorrência, não queremos ser a reação a nada, mas fazer nossa própria aposta. Mas a batalha está aí, certamente, é uma batalha enorme e, hoje, as batalhas, em boa medida, são vividas nos meios. Nestes 10 anos, conseguimos apoiar a criação de outros meios, fazemos aliança com canais de outros continentes, como o Rússia Today o Al-Mayadeen. Fazemos parte de diversas redes, trabalhamos com os movimentos sociais da Alba [Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América], fazemos oficinas para jornalistas comunitários, articulamos com as televisões públicas, por exemplo, com o programa “De Zurda” [algo como “De esquerda”, em português] durante o Mundial que era transmitido simultaneamente pela TV Pública argentina. Também temos convênios com emissoras regionais, comunitárias, universitárias, construímos uma enorme rede, que nos permite multiplicar a mensagem.

É certo que a direita tem muita habilidade para publicizar suas ações e, sem dúvida, ainda tem a hegemonia comunicacional, sempre acredito que podemos fazer muito mais e é uma das tarefas nas quais temos que seguir crescendo.

Qual é o projeto em que a Telesur vem colocando mais energias nesta etapa?

Nosso projeto mais importante, neste momento, é a Telesur em inglês, que está completando um ano. Nosso caminho é converter a Telesur em uma plataforma multilingue, já estamos produzindo 29 programas em inglês, há uma grande produção de conteúdos em um idioma que é transcendental. A ideia é poder contar a todos que falam inglês o que está ocorrendo na América Latina, que tenha outra fonte de informação, mas também dar uma visão alternativa a partir do Norte, que as pessoas do Norte possam ver suas histórias contadas de outra forma. Este é o grande desafio atual da Telesur. E, depois, temos em mente a Telesur em árabe.

Que coisas teriam mudado ou teriam sido de outra maneira se não existisse a Telesur?

Creio que o caso mais emblemático é o que eu comentei sobre Honduras. Também durante a tentativa de golpe no Equador, em 2010, lá os meios falavam de una “revolta policial”, quando vivíamos, inclusive, uma tentativa de assassinato do presidente Rafael Correa. E lá estavam as câmeras da Telesur para mostrar os tiros sobre o carro de Correa. O que nos permite construir outro relato não tem a ver tanto com interpretar a realidade, mas com poder mostrá-la ao vivo. Não é só o que tivesse sido diferente, mas quem contou, como o coronel não tem quem escreva… Quem teria contado isso?

Outra situação emblemática foi em Trípoli [Líbia], que, supostamente, estava sendo bombardeada pela aviação de Gaddafi [Muammar Al-Gaddafi, ex-presidente da Líbia]. Quando nossas equipes chegaram lá não havia nenhum rastro disso, eu mesma havia sido vítima da desinformação dominante. E isso foi desmontado pela Telesur. Então, há histórias em que o relato oficial e popular teria sido de outra maneira se não tivessem as câmeras da Telesur. Creio que esse é o aporte maravilhoso deste projeto.

Qual você acredita que será a marca que deixará a Telesur na história da comunicação?

É uma pergunta difícil porque eu tenho uma relação muito amorosa com a Telesur, aprendi a ser uma cidadã latino-americana e caribenha trabalhando nesse projeto. Sinto-me colombiana de nascimento e corre em mim sangue colombiano nas veias, mas me sinto também argentina, boliviana, profundamente venezuelana… Creio que temos conseguido que as audiências sintam que através de experiências como a Telesur lhes permite ter o registro de um novo direito, o direito à informação, à comunicação. Isso é o mais transcendente: hoje, as pessoas estão vendo e lendo os meios de outra maneira.

Entrevista concedida a Gerardo Szalkowicz, publicada em Marcha, reproduzida da Adital – www.adital.com.br

Democratização da comunicação: o que aprender com nossos vizinhos?

Por André Pasti*, de Quito

Não há democracia genuína sem democratizar os meios de comunicação. A afirmação, feita pelo sociólogo argentino Atilio Borón nesta quinta-feira (23/7), vai mais longe: para ele, é necessário favorecer o surgimento efetivo de mais “vozes” na mídia a partir dos povos, para evitar que se substitua a atual “ditadura da informação dos grandes monopólios privados” por uma nova “ditadura de tecnocratas do Estado”, ainda que sejam bem-intencionados e com o “coração de esquerda”. Borón fez a palestra de encerramento do primeiro Congresso Internacional “Comunicação e Integração Latino-Americana desde e para o sul”, realizado esta semana em Quito, em comemoração aos dez anos da Telesur, completados nesta sexta-feira.

Ainda que a oligopolização da mídia seja uma situação histórica e estrutural na região, desde a década passada há uma urgência ainda maior pela democratização de fato. Isso porque surge, segundo vários participantes do evento, um novo tipo de golpe de Estado no continente: o golpe midiático.

Os meios de comunicação na América Latina se converteram em partidos políticos orgânicos, articulando politicamente a direita, concordam Borón e Ignacio Ramonet, jornalista e professor espanhol que fez a conferência de abertura do congresso.

Para Ramonet, a maior batalha enfrentada na América Latina atualmente é a batalha midiática. Ambos lembraram dos casos de Honduras (2009), do Paraguai (2012) e de ataques mais recentes contra governos do Brasil e da Argentina.

O foco do evento foi o intercâmbio de experiências sobre a formulação das políticas de comunicação na América Latina e sobre a luta em defesa da comunicação como um direito humano. Para o Brasil, esse diálogo é muito importante.

O país vive, conforme o colombiano Omar Rincón, uma situação de extremos: tem a melhor lei de internet (o Marco Civil) e a pior situação de regulação da “velha mídia”. A avaliação é repetida por Osvaldo León, do México, para quem o Brasil está “na retaguarda da democratização dos meios” no continente.

Se agora estamos na retaguarda, há que se avaliar os aprendizados possíveis com políticas que vêm sido realizadas nos últimos anos em países como Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela. O Equador, anfitrião do evento, já conta com muitas experiências a compartilhar.

Em 2013, o país aprovou sua lei orgânica de comunicação, sob muitos protestos do empresariado midiático. Não é por menos: a lei combate os oligopólios do setor, estabelecendo um limite rígido à propriedade cruzada – apenas uma licença de rádio AM, FM e de TV por pessoa física ou jurídica. Além disso, a nova norma prevê uma distribuição proporcional dos espectros de radiofrequência, com reserva para a comunicação comunitária (34%), estatal (33%) e para a mídia comercial (33%).

A nova regulação prevê, ainda, a descentralização da publicidade oficial – uma das principais formas de financiamento da mídia de pequeno porte. Há, também, medidas para incentivar a produção audiovisual nacional e produção independente local.

Para a comunicação comunitária, algumas “ações afirmativas” estão previstas na nova legislação, como crédito preferencial para a criação desses meios e para a compra de equipamentos, isenções de impostos para a importação de aparelhos e acesso à capacitação para a gestão técnica, administrativa e de comunicação.

Para garantir a aplicação da lei, foi criado um Conselho de Regulação e Desenvolvimento da Informação e da Comunicação (CORDICOM), com participação social. Para fiscalizar e promover o direito à comunicação, criou-se uma Superintendência da Informação e da Comunicação (SUPERCOM). Esse arcabouço institucional contrasta com o do Brasil – onde o sentido das instituições ligadas à comunicação não é a defesa da democratização da palavra e os conselhos estão longe de representar a população.

O país avançou, também, na comunicação estatal. Surgiu a agência de notícias Andes, além TV e rádio públicas e um jornal impresso, El Telégrafo, separados dos veículos governamentais já existentes – como El Ciudadano.

A programação educativa da rede pública, inspirada na dinâmica dos canais estatais argentinos, é concebida pelo Ministério de Educação, mas produzida em parceria com empresas audiovisuais do país e orientada pelo pluralismo. Isso contribui para a promoção de novos agentes comunicativos, que poderão atuar para além dos canais estatais. Já a da mídia governamental se concentra de fato nas ações do Poder Executivo.

O reconhecimento do direito à comunicação e da necessidade de promover ativamente a liberdade de expressão dos que nunca tiveram voz são alguns dos aprendizados dos processos – ainda bastante recentes – de democratização da comunicação no Equador.

Iniciativas de integração no continente

Desde o golpe de Estado frustrado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, orquestrado pelos oligopólios de mídia do país, ficou notória a necessidade de criar meios que permitissem a circulação de outras informações e outros sentidos. A iniciativa mais significativa foi o surgimento, três anos depois, do canal Telesur.

A Telesur é um canal multinacional de iniciativa do governo venezuelano em conjunto com governos de Cuba, Uruguai e Argentina, e com a participação posterior de Bolívia, Equador e Nicarágua. Ignacio Ramonet considera o maior mérito da Telesur a apresentação de outra visões sobre os acontecimentos da América Latina e do mundo.

O conteúdo do canal não se restringe aos países-membros: os conflitos militares com as FARC, na Colômbia, o ataque à Líbia pela OTAN, o golpe em Honduras e a crise financeira da Grécia são exemplos de coberturas importantes . Além do décimo aniversário, a Telesur celebrou, nesse dia 24 de julho, um ano de produção de conteúdos em inglês.

Outra importante iniciativa de integração da comunicação é a União Latino-Americana de Agências de Notícias (ULAN). A entidade, que surgiu em 2011, reúne todas as agências de notícias estatais ou públicas existentes nesses territórios: Agencia Venezolana de Noticias, Prensa Latina (Cuba), Agencia Andina (Perú), Agencia Boliviana de Información, Agência Brasil (da Empresa Brasil de Comunicação, EBC), Notimex (México), Agencia Guatemalteca de Noticias, Agencia de Información Paraguay, Andes (Equador) e Télam (Argentina).

Seu principal objetivo seria “promover a democratização da comunicação na América Latina e contribuir para a integração regional dos povos”. Este ano, a ULAN lançou o portal de notícias Ansur.am, reunindo informações de todas as agências.

Os países da América Latina devem atentar para a importância estratégica da comunicação para a integração regional. Criar iniciativas que façam circular outros discursos e outros sentidos é vital para contrapor a violência exercida pela monopolização da informação. É vital estabelecer um diálogo permanente entre os agentes que defendem essa pauta na América Latina, para o fortalecimento das iniciativas em defesa do direito à comunicação.

O congresso em Quito representou um importante momento desse diálogo. Sua próxima edição, prevista para julho do próximo ano, também no Equador, terá como tema a comunicação popular e a participação social – importante desafio para o avanço da agenda da democratização dos meios de comunicação.

* André Pasti é geógrafo, mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas e doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

EBC: comunicação pública ou governamental?

Há um mês, a repórter Cristiana Lobo, da GloboNews, informou, “em primeira mão”, a notícia, ainda não confirmada pelo Palácio do Planalto nem publicamente pela diretoria da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), de que haverá mudanças na “comunicação do governo”.

A jornalista anunciou que Nelson Breve, atual diretor presidente da EBC, deve voltar a coordenar a Secretaria de Imprensa da Presidência da República; que o atual secretário de Imprensa, Olímpio Cruz, passará a dirigir a programação da EBC; e que Américo Martins, atual diretor geral da EBC, será o novo diretor-presidente da empresa.

Ainda segundo o “off” dado pela GloboNews, as mudanças não ficarão apenas nos cargos de diretoria. Há fontes dentro da EBC que confirmam que mais gente da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) está sendo cotada para aterrissar (ou flutuar) na comunicação pública.

Mantém-se, assim, a já conhecida dança das cadeiras entre o órgão responsável pela comunicação governamental e a direção da empresa pública de comunicação – como já ocorreu com o (ainda) atual presidente da EBC Nelson Breve; com o antigo diretor geral Eduardo Castro; com o atual vice-presidente, Sylvio de Andrade; a atual secretária executiva Regina Silvério; e tantos outros antigos e atuais diretores, assessores e superintendentes da EBC, que fizeram o mesmo caminho, passando pela mestra catraca.

Assim, uma vez mais, a Secom contribui para consolidar a já tão questionada, deslegitimada e promíscua relação entre comunicação pública e governo, num modelo em que não há espaço para o florescimento de uma real e imprescindível autonomia da empresa pública frente ao Planalto.

Tal autonomia, vale lembrar, está legalmente escrita nas primeiras linhas da lei de criação da EBC, que ratifica a separação entre os poderes público e estatal de comunicação previstos na Constituição brasileira. Ela é base para o sucesso e pleno funcionamento de emissoras públicas em todo o mundo. Basta olhar os clássicos exemplos da inglesa BBC ou dos canais da France Télévisions: governo de um lado, comunicação pública de outro, em respeito aos cidadãos e ao interesse público (e não de governo) que deve reger tais espaços.

É sabido que a Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008, dá ao Palácio o direito de nomear a presidência da EBC. Não se questiona a legalidade destas decisões, mas sim sua legitimidade e pertinência. E, ainda, a forma como o Palácio do Planalto, uma vez mais, opta por fazer mudanças na EBC: sem qualquer consulta aos funcionários da empresa, sem qualquer diálogo com a sociedade, e dando o “furo de reportagem” nas mãos da imprensa comercial.

A Secom conhece a importância de mecanismos de gestão da EBC, como seu Conselho Curador, que poderia ser acionado para tornar mais participativas e democráticas as escolhas feitas para a empresa. Entretanto, parece ter optado, mais uma vez, pelo automatismo da dança das cadeiras.

Fica ainda mais difícil compreender a decisão do governo em mudar a direção da EBC antes mesmo do término da gestão Nelson Breve, previsto para novembro, quando o próprio Conselho Curador da EBC convocou, para o próximo mês de agosto, um seminário para discutir justamente o modelo institucional da empresa. Em vez de aproveitar o espaço para debater coletivamente um perfil para a ocupação dos cargos da maior empresa de comunicação pública do País, o processo corre seu já tradicional rumo, na contramão de um projeto de comunicação pública autônoma, nunca antes assumido nestas dimensões por qualquer governo no Brasil, e que poderia hoje ser visto como um legado das últimas gestões para a democracia do País.

Não se trata de criticar os nomes escolhidos nessa sucessão. O atual diretor-geral da EBC, Américo Martins, cotado para a presidência, está inclusive entre os poucos diretores da empresa que tem experiência em comunicação pública e que não vieram da Secom ou de outros órgãos do governo.

Mas mudanças superficiais, como quem passa um verniz ou reboco, pouco atenderão aos desafios colocados para a EBC. Não adianta mudar a cabeça e ter uma calda pesada, amarrada, dura e espinhosa. Não dá para fazer comunicação pública sem um formato de gestão verdadeiramente pública.

E é porque defendemos, desde o início, que processos democráticos e participativos são fundamentais para o êxito da EBC que acreditamos que este projeto pode – e vai – dar certo. É só querer.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.