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Após mais de 50 anos de luta, rádio Frei Caneca inicia transmissão

Uma espera de mais de cinco décadas pela instalação e funcionamento de uma emissora pública de rádio no Recife parece finalmente ter chegado ao fim. A rádio Frei Caneca iniciou a transmissão do seu sinal, ainda em caráter experimental, na frequência 101,5 FM no dia 30 de junho deste ano. Foi um longo ciclo de lutas, que incluiu diversas tentativas de localização, projetos de engenharia de telecomunicação e processos licitatórios.

A rádio Frei Caneca foi idealizada pelo vereador Liberato Costa Júnior, autor de um projeto apresentado e aprovadona Câmara de Vereadores do Recife em 1960, virando lei municipal. O objetivo era estabelecer uma emissora pública de rádio que atendesse às necessidades da população em termos de informação e de compartilhamento cultural.

Porém, por muito tempo a lei não foi levada adiante. Por décadas, artistas, produtores, agentes, militantes e incentivadores do setor cultural e da democratização da comunicação pressionaram a prefeitura pelo cumprimento da lei e a instalação da Frei Caneca FM.

Ainda hoje não há uma grade de programação fixada nem datas estimadas para o lançamento oficial da rádio. A prefeitura do Recife divulgou nota em julho informando apenas que o fluxo de atividades para conclusão do processo de implementação seguirá propostas discutidas entre a Fundação de Cultura da Cidade e a sociedade civil.

Mesmo assim, é possível perceber que a rádio já tem uma proposta desenhada para a sua gestão. Segundo Patrick Torquato, gerente de Música da prefeitura do Recife, em entrevista para o jornal Diário de Pernambuco, a Frei Caneca se propõe a apresentar um formato mais plural que saia da lógica musical anglo-americana, se constituindo em uma proposta com eixo centrado no aspecto educativo. “Como ferramenta educativa, a emissora não vai propagar músicas que ‘objetifiquem’ a mulher ou incentivem a sexualização infantil, por exemplo. A grade será definida por equipe de programação, sob orientação democrática da sociedade. Será plural, diversa, representativa”, relatou Torquato na entrevista.

Projeto em andamento

O documento com as propostas de trabalho da emissora pública, formulado há dois anos, deve ser homologado nos próximos dias. Entre as principais proposições, estão: produção de 90 minutos diários de conteúdo jornalístico, sendo metade do tempo dedicado a temas locais; três horas semanais de programação voltada ao público infantil e infanto-juvenil; garantia de que pelo menos 30% do espaço na grade de programação musical seja ocupado por artistas pernambucanos.

O projeto de estruturação da emissora prevê, além da ocupação de sede própria, a contratação de funcionários por meio de concurso público e a formação de um conselho gestor (com seis representantes da sociedade civil, um representante dos servidores da emissora e quatro representantes do governo) com funções fiscalizadoras e propositivas.

A sociedade civil organizada trabalha para que a proposta de formação de um conselho gestor seja efetivamente colocada em prática, pois acreditam que, para ser uma emissora realmente pública, sua gestão deve ser compartilhada. “Vamos acompanhar o processo final de implementação e se o formato atende aos anseios da comunidade cultural”, garantiu Eduardo de Matos, representante do Sindicato dos Músicos de Pernambuco, em entrevista para a mesma matéria do Diário de Pernambuco.

Para a defesa das propostas da sociedade civil, foram convocados o Conselho Municipal de Políticas Culturais, FOPECOM, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC/PE), Centro Luiz Freire, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Central Única das Favelas (CUFA), Centro Acadêmico de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Sindicado dos Radialistas de Pernambuco, Sindicado dos Jornalistas de Pernambuco, Fórum da Música de Pernambuco, Sindicato dos Músicos, Quilombo Malunguinho e Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação, entre outras entidades.

A partir destas entidades, será formado o colegiado responsável pela escolha dos membros da sociedade – inscritos voluntariamente como candidatos aos cargos – aptos a compor o conselho gestor da rádio Frei Caneca. O mesmo colegiado elegerá, entre um mínimo de oito nomes indicados pelo governo, quatro representantes do poder público para o conselho. Até o fim do primeiro ano de funcionamento da rádio, um concurso público deve ser realizado, a fim de que pelo menos 40% do efetivo da emissora seja contratado até o 13º mês de atividades.

Veja todas as propostas

– Produzir, no mínimo, 90 minutos diários de jornalismo (radiojornalismo; radio documentário; jornal noticioso; boletins de notícias; revista generalista, desde que possua reportagens e entrevistas), sendo um mínimo de 50% deste conteúdo de abrangência local, independentemente de veiculação na Voz do Brasil;

– Garantir o mínimo de três horas semanais de programas voltados para os públicos infantil e infanto-juvenil, com ênfase em conteúdos locais e regionais;

– Incentivar e promover rotas e bens turísticos da Região Metropolitana do Recife;

– Promover conteúdos educativos que contemplem literatura, música, geografia, história, ecologia, saúde, meio ambiente, matemática, filosofia, introdução às artes e outras áreas do saber, espalhados na programação como inter-programas curtos e em programas específicos semanais;

– Realizar eventos culturais com cobrança de ingressos com a finalidade de estimular o mercado cultural da cidade;

– Desenvolver parcerias com emissoras de rádio comunitárias;

– Gerir loja física ou virtual para a venda de produtos ligados à emissora (discos, lembranças, souvenires) com produtos oriundos de SIC/Municipal, Funcultura e outros meios de incentivo;

– Produzir coletâneas musicais, como a gravação de músicas instrumentais executadas por instrumentistas pernambucanas, dada a escassez de material gravado por mulheres no segmento;

– Promover campanhas de combate à homofobia, ao machismo, ao preconceito.

Idealizador faleceu antes de ouvir a rádio no ar

Liberato, decano da Câmara Municipal do Recife, morreu em 13 de janeiro de 2016, aos 97 anos, sem ouvir a rádio pela qual tanto lutou.

Durante mais de 50 anos, foram feitas várias promessas e previsões para o início das atividades da rádio, e todos os anos ele destinava recursos para ver o projeto sair do papel.

A Frei Caneca FM é primeira emissora pública da história do Brasil a entrar no ar com participação popular e diálogo, de forma a garantir a transparência e o caráter público da rádio.

Para a classe artística, a emissora será importante por abrir um espaço para divulgação da música produzida em Pernambuco e região. A propriedade pública evitaria o predomínio econômico na escolha dos artistas e na divulgação de discos e músicas, ao contrário das rádios comerciais.

A rádio ainda aguarda visita de concessão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), à qual já foram remetidos convite e relatórios formais, para sua operação formal.

 Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação, com informações do jornal Diário de Pernambuco

Conselho Nacional dos Direitos Humanos aprova relatório sobre Direito à Comunicação

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) aprovou por unanimidade, em sua 20ª reunião ordinária, realizada no dia 16 de setembro, em Brasília, o relatório sobre Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão na Mídia Brasileira.

O documento destaca as graves violações de direitos praticadas pela mídia brasileira, principalmente em programas com cunho “policialesco”, e foi construído a partir de denúncia firmada pelas organizações ANDI — Comunicação e Direitos, Intervozes — Coletivo Brasil de Comunicação Social e Artigo 19, que informaram ao CNDH a ocorrência de violações de direitos humanos e infrações a leis na mídia brasileira, especificamente em programas de rádio e TV. Os denunciantes basearam-se nos resultados de monitoramento de 28 programas, produzidos e transmitidos em 10 capitais das cinco regiões do país em março de 2015, obtendo um total de 1.928 narrativas analisadas.

Inicialmente discutido e formulado pela Comissão sobre Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação da CNDH, o relatório foi levado ao plenário do conselho. Ali, recebeu novos olhares e foi ampliado com novas recomendações e propostas de ações apontadas pelos conselheiros.

Helena Martins, integrante do Intervozes e conselheira do CNDH, destaca que, desde o início da atual gestão do conselho, existe uma preocupação com a abrangência dos impactos da concentração da propriedade midiática e da veiculação de conteúdos violadores, além da necessidade da sociedade avançar na compreensão da comunicação. “No início desta gestão, levantamos a questão de constituir uma comissão que trabalhasse a fim de se fazer cumprir o papel de ampliar o entendimento na sociedade de que a comunicação é um direito humano fundamental. Assim nasceu a Comissão Permanente de Direitos à Comunicação e à Liberdade de Expressão”, frisa Helena.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos foi criado pela Lei nº 12.986/2014 e possui como atribuições, entre outras: receber representações ou denúncias de condutas contrárias aos direitos humanos; habilitar-se como assistente em ações cíveis ou criminais sobre violações desses direitos; recomendar ações em órgãos públicos.

Nessa perspectiva, o conselho, que tem se proposto a fomentar o diálogo social e a busca conjunta de soluções, listou nove recomendações no relatório:

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Crítica aos meios de comunicação marcou o Grito dos Excluídos 2016

O “Grito dos Excluídos”, tradicional manifestação dos movimentos sociais que tem seu ponto alto no dia 7 de Setembro, teve nesta quarta-feira como bandeiras principais de luta a crítica ao governo Michel Temer, a reivindicação de eleições diretas já e a denúncia da postura seletiva e tendenciosa dos grandes meios de comunicação na divulgação de informações e cobertura jornalística.

As manifestações do Grito dos Excluídos ocorrem no Brasil desde 1995 com o objetivo permanente de dar visibilidade e voz aos excluídos da sociedade, denunciar os mecanismos sociais de exclusão e propor caminhos alternativos para uma sociedade mais inclusiva e igualitária. Este ano, o Grito teve como lema “Este Sistema é Insuportável: Exclui, Degrada, Mata”, baseado em uma fala do Papa Francisco durante encontro de movimentos sociais realizado na Bolívia no ano passado. Em 2016, o ato ocorreu em 24 estados do país, com as manifestações sendo realizadas de forma autônoma e descentralizada.

Este ano, foi possível perceber a presença de várias pessoas que se incorporavam à mobilização pela primeira vez. A maioria delas manifestava estar insatisfeita com a atual conjuntura política no país, com o crescimento da violência policial e com a falta de democracia na mídia, além denunciar a criminalização crescente das comunidades mais carentes em diversos programas de TV.

Alessandra Miranda, que integra a coordenação colegiada da Cáritas Brasileira e a coordenação nacional do Gritodos Excluídos, enfatiza que é preciso continuar denunciando a postura da mídia nacional, comprometida ideologicamente com o poder econômico.

“Nos cartazes, nas palavras de ordem, é perceptível nas manifestações do Grito a preocupação em denunciar a participação das mídias no recente processo de impeachment. A mídia é um poder paralelo que ainda interfere negativamente na realidade de nosso país. O Grito dos Excluídos do ano passado, inclusive, tinha como lema a mídia: ‘Que país é esse que mata gente, que a mídia mente e nos consome?’. E um dos eixos de trabalho deste ano é justamente a mídia. Por tudo isso, os movimentos sociais entendem que é importante continuar este enfrentamento”, avalia Alessandra.

Em Brasília e no Rio de Janeiro, houve também manifestações em defesa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que vem passando por restruturações e mudanças por conta de cortes no orçamento, principalmente após o governo federal contingenciar recursos que já estavam previstos na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) para este ano. Outra questão fundamental levantada por manifestantes no Grito foi a extinção do Conselho Curador da EBC, que era um espaço da sociedade civil que favorecia a construção de uma empresa pública com participação social e com uma programação que contemple a diversidade e a pluralidade presentes na sociedade brasileira.

O lema do Grito dos Excluídos de 2015, lembrado por Alessandra – “Que país é esse que mata gente, que a mídia mente e nos consome?” –, tratou sobre o direito à comunicação, definido a partir do diálogo entre os movimentos sociais e populares que se organizam para fazer frente ao avanço dos conservadorismos, de reformas neoliberais e de violações de direitos humanos no Brasil. Afinal, a luta por direitos travada pelo Grito passa diretamente pela democratização dos meios de comunicação.

Um ano após o Grito de 2015, temos informações suficientes para afirmar que a escolha do lema daquele ano se mostrou mais acertada do que nunca. A mídia foi uma grande influenciadora na disputa pelo imaginário social e dosrumos que a crise política tomou no Brasil nos últimos meses. Já vimos isso antes na história de nosso país, como na eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República em 1989, cuja campanha contou com a adesão explícita da TV Globo. Depois, a emissora participou ativamente, por meio de seus noticiários e cobertura, da retirada de Collor do poder. Mas também vimos na história brasileira o movimento contrário: o silêncio da mesma Globo diante do movimento pelas Diretas Já, que só ganhou o noticiário quando já tinha tomado completamente as ruas.

Embora o lema do Grito dos Excluídos de 2016 não cite diretamente os meios de comunicação, eles estão plenamente presentes na correlação de forças que sustentam o sistema de produção capitalista, que exclui pessoas da sociedade, degrada o meio ambiente e provoca miséria e morte. Portanto, a mídia é um tema cada vez mais atual e norteador para as lutas sociais e para a garantia de direitos. Quebrar as barreiras dos grandes meios estará cada vez mais na pauta das mobilizações sociais, como forma de garantir a visibilidade das populações excluídas da divisão da riqueza e do acesso a direitos no Brasil.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

 

Governo Temer publica MP que ataca a comunicação pública e fragiliza a EBC

Como já havia sido denunciado por entidades da sociedade civil e defensores da democratização da comunicação, o governo de Michel Temer está disposto a desmontar a comunicação pública, a partir de mudanças na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). É o que fica explicito com a publicação da Medida Provisória (MP) 744, hoje dia 02, no Diário Oficial da União (DOE).

A MP apresenta alterações que atacam a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a participação da sociedade civil nas decisões da empresa, acabando com o Conselho Curador e com o mandato do diretor-presidente – que até hoje só podia sair por dois votos de desconfiança do Conselho Curador. Essa medida faz com que o diretor-presidente fique subordinado a nomeações e exonerações da Presidência da República.

E é o que acontece no primeiro dia de sua publicação. O DOE ainda traz a exoneração de Ricardo Mello da presidência da e nomeia novamente Laerte Rimoli, que chegou a ocupar o cargo por algumas semanas, até uma decisão do Supremo Tribunal Federal cassar sua nomeação, pois feria o estatuto da EBC – mudança só foi possível devido à publicação da MP.

O texto dá total poder ao Conselho de Administração, que passa a ser composto por seis indicados do governo e um dos empregados (até agora, eram quatro do governo e um dos funcionários). Acaba com a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão.

Para Jonas Valente, coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do DF, a medida, que chega com o discurso de “atacar o partidarismo e o aparelhamento pelo governo”, retira os principais mecanismos que protegiam a empresa. “Mesmo com todos os defeitos e limites, essas eram justamente as ferramentas para evitar o aparelhamento. Essas medidas acabam com a participação social na empresa e atacam os instrumentos concretos que configuravam o seu caráter público”, afirma.

Em nota divulgada ainda ontem, o secretário de comunicação da Central Única dos Trabalhadores, Roni Barbosa, expressava preocupação com o destino da comunicação pública e alternativa. “No próximo período, vamos ver os golpistas avançando contra as mídias que divergem da narrativa hegemônica, imposta pela grande mídia. A intenção é acabar com as vozes discordantes. Outra preocupação é com o destino da EBC, que pode abolir seus espaços de participação popular e ser usada como porta-voz dos golpistas”, previu Barbosa.

Opinião também compartilhada pela coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Renata Mielli, que, em entrevista ao portal Vermelho, afirmava que a mídia independente já estava sendo alvo de muitos ataques por parte do governo Temer, com a ofensiva colocada em prática com a suspensão de verbas publicitárias pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, prejudicando muitos veículos que contavam com os recursos acordados. Ela ainda lembra que o interesse de acabar com a EBC já foi explicitado em matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2009, intitulada “Tela Fria”, que defendia o fechamento da EBC. “Os argumentos mudaram, mas os interesses continuam os mesmos”.

Rita Freire, presidenta do Conselho Curador da EBC, lamentou a notícia em mensagem que divulgou nas redes sociais. “A democracia brasileira acaba de sofrer mais um golpe com a publicação da Medida Provisória que acaba com o caráter público da nossa Empresa Brasil de Comunicação, ao derrubar seus instrumentos de autonomia: o Conselho Curador, que assegura a participação da sociedade na sua gestão, e o mandato do diretor-presidente, o mesmo que foi assegurado pela liminar do ministro do Supremo, Dias Tóffoli. A resistência aos desmandos não começa agora. Está nas ruas, sob repressão e violência do Estado, mas com a coragem necessária para defender o País das sombras trazidas pelos golpistas”.

A EBC já vinha passando por restruturações e mudanças por conta de cortes no orçamento e principalmente após o governo federal represar e contingenciar recursos que já haviam sido previstos e que estão em torno de R$ 700 milhões. Além deste valor, a empresa aguarda uma definição sobre a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, criada em 2008, que determina que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel) seja destinado à EBC. Porém, a verba está bloqueada desde 2009 devido a uma ação impetrada na Justiça pelas empresas de telefonia.

Empresa Brasil de Comunicação
A EBC é uma empresa pública criada em 2007 para fortalecer o sistema público de comunicação, previsto na Constituição Federal em complementaridade aos sistemas privado e estatal. É gestora da TV Brasil, Agência Brasil, Radioagência Nacional, das rádios Nacional AM do Rio, Nacional AM e FM de Brasília, Nacional OC da Amazônia e Nacional AM e FM do Alto Solimões, bem como das rádios AM e FM MEC do Rio de Janeiro. É também responsável pela Voz do Brasil e pelo canal de TV NBR, que veicula os atos do governo federal.

A empresa divulga conteúdos jornalísticos, educativos, culturais, esportivos e de entretenimento, tendo como objetivo expressar a diversidade e pluralidade brasileira. A sua estrutura prevista no decreto de criação contava com: Assembleia Geral; órgãos da administração, que são o Conselho de Administração e a Diretoria Executiva; e órgãos de fiscalização, que são o Conselho Curador e o Conselho Fiscal, mais Auditoria Interna.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Na sintonia do golpe: o papel da mídia na crise política

Em 2016, as gerações nascidas nas décadas de 1990 e 2000 defrontaram-se, talvez pela primeira vez de forma mais aberta, com a ação incisiva e determinada dos grandes conglomerados midiáticos, no sentido de moldarem, à sua imagem e semelhança, o sistema político do país.

Texto: Helena Martins | Colaboraram: Iara Moura, Mônica Mourão e Elizângela Araújo

O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, por meio de um golpe que envolveu decididamente o Legislativo, o Judiciário e os meios de comunicação, trouxe à tona e exigiu que fosse incluída na agenda de debates da sociedade a problemática do papel da mídia para a construção – ou o desmonte – da democracia. Na memória de um país que não enfrentou abertamente a história da ditadura civil-militar (1964-1985), restavam quase apagados casos de como o escândalo Proconsult, uma tentativa de fraude, encobertada pela Rede Globo, que objetivava impossibilitar a vitória de Leonel Brizola, em 1982, ao governo do Rio de Janeiro. A apresentação pela emissora do maior comício das Diretas Já, em São Paulo, em 1984, como uma festa em comemoração ao aniversário da capital paulista, ou a determinante edição debate televisivo entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, candidatos à Presidência da República em 1989, às vésperas da eleição, pareciam fatos datados e cuja repetição seria improvável no tempo presente, dada a possibilidade de circulação de narrativas diferentes daquelas apresentadas pelos oligopólios.

Muito embora a criminalização, o silenciamento e a distorção de fatos envolvendo movimentos sociais e outros grupos progressistas sejam uma constante na história do sistema de comunicação brasileiro, a sociedade acostumou-se a ver uma mídia complacente com o poder central e seu projeto, ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. No campo acadêmico, vimos o deslocamento do olhar sobre o poder dos conglomerados para as práticas de resistência e reelaboração de significados pelos receptores, bem como a difusão de entusiasmados estudos que decretaram o fim da comunicação massiva com o advento da internet.

No início dos anos 2000, após a eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento do poder midiático por parte do governo, os oligopólios mudaram de postura. No contexto da Ação Penal 470, apelidada pela própria mídia como “mensalão”, em 2005, eles passaram ao que a professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Liziane Guazina, afirma ser uma postura adversária aos políticos e à política, conforme demonstrou na tese de doutorado “Jornalismo em Busca da Credibilidade: a cobertura adversária do Jornal Nacional no Escândalo do Mensalão”. Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel aponta que, a partir de então, houve “um processo de regressão da ação política da mídia brasileira”. Ele avalia que, do fim do período ditatorial até as eleições presidenciais de 2002, a grande imprensa parecia ter aprendido a conviver com o pluripartidarismo. Ela “parou de agir tão ostensivamente em favor de tal ou qual candidato e passou mais a exigir, de todos, compromissos básicos com certos interesses, o que se alinha às formas dominantes de intervenção política da mídia nas democracias liberais. Não é ausência de interferência, é uma interferência que se dá mais em termos de limitação do debate legítimo e menos como tentativa de induzir a opção eleitoral. Como o PT havia abandonado as partes de seu programa que podiam ser consideradas antissistêmicas, parecia possível uma acomodação dentro desse modelo”, explica.

A defesa aberta do golpe contra a democracia

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Manifestantes contrários ao impeachment da presidenta Dilma denunciam estratégia golpista da Rede Globo. Imagem: Mídia Ninja

No dia 13 de arço de 2016, o regresso tornou-se nítido. Se, em 1964, O Globo usou seu editorial do dia 2 de abril para proclamar que a nação vivia “dias gloriosos”, porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a

democracia, a lei e a ordem”, e saudou o golpe como um movimento não partidário, do qual participaram “todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”, em 2016, foi a vez do Estado de S. Paulo usar o principal espaço de opinião do jornal para inflamar as milhares de pessoas que saíram às ruas, naquele dia de domingo, para protestar contra a presidenta Dilma Rousseff.

Após afirmar que “a maioria dos brasileiros, conforme atestam há tempos as pesquisas de opinião, exige que a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da República”, dispara: “a oportunidade de expressar concretamente essa demanda e, assim, impulsionar a máquina institucional responsável por destituí-la, conforme prevê a Constituição, será oferecida hoje, nas manifestações populares programadas Brasil afora. Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! Que as famílias indignadas com a crise moral representada por esse desgoverno não se deixem intimidar pelo rosnar da matilha de petistas e agregados, cujo único interesse na manutenção de Dilma na Presidência é preservar a boquinha à qual se habituaram desde que o PT chegou ao poder”[1].

Nos dois textos, há o apelo às famílias “indignadas com a crise moral”; o tom odioso com que trata o PT e a esquerda, em sentido amplo; a apresentação dos críticos à presidenta como não partidários e legítimos representantes da maioria dos brasileiros, além da adoção de uma postura convocatória por parte do jornal, justificada pela suposta defesa da democracia. Do mesmo modo, assim como no contexto do golpe de 1964, essa postura abertamente golpista foi combinada com a construção cotidiana de percepções sobre a crise política.

Na avaliação de Luís Felipe Miguel, “a mídia foi crucial para produzir o clima de opinião favorável ao golpe. Produziu-se uma narrativa manipulada e unilateral, de criminalização do governo, do PT e da esquerda em geral. Além disso, a mídia tem colaborado num processo mais de longo prazo, de desconstrução do discurso dos direitos e produção de uma representação do mundo social focada na competição e sem espaço para a solidariedade, isto é, de esvaziamento dos pressupostos da narrativa da esquerda”.

Se a construção da hegemonia depende, como detalhou o filósofo italiano Antonio Gramsci, da combinação entre coerção, portanto uso da força, e consenso, era – e tem sido – fundamental produzir sentidos comuns sobre os fatos e, inclusive, acerca das possíveis saídas que deveriam ser adotadas. Isso foi feito através de enquadramentos favoráveis aos protestos em defesa do impeachment; exclusão do contraditório da cobertura jornalística dos principais veículos de comunicação; repetição incessante de argumentos e outros mecanismos de manipulação.

Desequilíbrio: a gente vê por aqui

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Manchete de capa de O Globo no dia 14 de março de 2015. Imagem: site O Globo

Em março, mês decisivo para a definição dos rumos da crise política, diversas análises produzidas pelo Intervozes buscaram captar o posicionamento dos veículos vinculados

às grandes corporações, bem como a relação com as instituições que deveriam zelar pela democracia. Os textos mostram que, desde o início daquele mês, uma sucessão de episódios que revelaram a articulação íntima entre mídia e Judiciário foi, aos poucos, convencendo parte expressiva dos brasileiros a apoiar o impeachment de Dilma como uma solução final à crise política brasileira.

A edição especial do Jornal Nacional sobre a Operação Aletheia (fase da Lava Jato que culminou com a condução coercitiva do ex-presidente Lula) foi praticamente toda dedicada ao fato de, de relevância inegável. Os números, porém, mostram a ausência de equilíbrio. Nos primeiros quatro blocos do jornal do dia 4 de março, embora tenham sido veiculados 21 minutos de matérias sobre o tema, apenas 50 segundos foram ocupados com a posição da defesa. No segundo, novos 15 minutos de reportagens e apenas 20 segundos com a posição do ex-presidente e outros 20 segundos com fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula. A defesa dos empresários envolvidos no caso foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio. Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, foram sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e 50 segundos de reportagem.

Lula falou a primeira vez quando já haviam se passado 40 minutos de jornal. Dilma entrou na sequência, com fala de 1 minuto e 15 segundos. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores, teve direito a 16 segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, a oposição ocupou 1 minuto, ao passo que o PT, 30 segundos. No vídeo, o repórter divulgou, por 2 minutos, informações de como a direita pretendia paralisar o Parlamento até o impeachment sair.

Quando promotores de São Paulo pediram a prisão preventiva de Lula, no dia 10, o Jornal Nacional apresentou os fatos sem citar as críticas feitas por juristas, especialistas e inúmeros membros do Ministério Público à peça jurídica. No sábado 12, o principal telejornal do país destinou sete minutos para negar o pedido de direito de resposta do Instituto Lula em relação à cobertura daquele fato. A emissora se disse “surpreendida” por ser chamada a cumprir uma lei em vigor no Brasil – que tem o objetivo, exatamente, de garantir o princípio constitucional do equilíbrio jornalístico e o direito de não ser ofendido nos meios de comunicação. Em vez de atender o pedido, veiculou editorial defendendo-se e reiterando as acusações. Invertendo a lógica das coisas, a empresa utilizou-se do discurso de defesa da liberdade de imprensa para seguir sua atuação autoritária, avessa à pluralidade de pensamento no país.

No dia 13 de março, quando foi registrado o maior número de protestos favoráveis ao impeachment, a Globo-News cobriu, por mais de 12 horas, as manifestações. Ao longo do dia, repórteres e comentaristas se revezaram para enaltecer os protestos, repetir à exaustão, a cada cidade noticiada, os motivos que já estavam claros para os telespectadores, e jogar sobre os atos um peso decisivo sobre o processo de mudanças no comando do governo federal. Duas frases sintetizam a narrativa hegemônica: “um desfecho com a Dilma não agrega… O Brasil está perdendo o bonde da história”, afirmou a jornalista Cristiana Lôbo. Já Renata Lo Prete asseverou: “podemos chegar ao final do dia sem a ideia de que o país está dividido”.

Na Globo, o tradicional filme das tardes de domingo foi suspenso para dar espaço à cobertura ao vivo do que se passava na Avenida Paulista, em São Paulo. “Agora há pouco a gente presenciou o momento mais emocionante das manifestações. A FIESP jogou balões verdes e amarelos contra o número de impostos que os brasileiros pagam. Foi um movimento muito forte, as pessoas aplaudiram, foi uma emoção aqui”, declarou um repórter. Outra jornalista não conteve o entusiasmo e arrematou: “está linda a festa”.

O mesmo enquadramento foi repetido no programa nobre do domingo, o Fantástico. Em trinta e cinco minutos de programa, coube ao PT apenas 45 segundos de fala; à secretaria de Comunicação da Presidência da República, 30 segundos; e, aos protestos pró-governo, que também haviam sido realizados, menos de 2,5 minutos. A reportagem de abertura do programa, que teve 17 minutos de giro nacional e internacional sobre os atos, não teve qualquer contraponto.

O bloco sobre as manifestações foi encerrado com mais de 6 minutos sobre novas táticas e descobertas da operação Lava Jato, selando um domingo nada plural – e triste – para o jornalismo brasileiro. Nos dias seguintes, vazamento de conversas envolvendo Lula e, inclusive, a presidenta da República, que bem poderiam ser compreendidas como ataques à Segurança Nacional, ganharam destaque. Os apresentadores do JN, William Bonner e Renata Vasconcelos, chegaram a protagonizar uma vergonhosa leitura teatral das conversas – grampos ilegais que tiveram o sigilo derrubado pelo juiz Sérgio Moro. Buscando ocultar a parcialidade, o jornal apresentou respostas de Dilma, bem como protestos contrários ao afastamento – além, claro, daqueles favoráveis que se multiplicaram enquanto o JN ainda estava no ar.

Postura diversa foi adotada na cobertura dos atos em defesa da democracia, com destaque para aqueles realizados no dia 18 de março. Repetidos à exaustão, os números inferiores destes protestos em relação aos marcados pelo verde e amarelo passado foram também um elemento central para deslegitimá-los. Reiterando o argumento, o Jornal Nacional apresentou, no dia seguinte, uma reportagem somente sobre o comparativo das presenças. Outras duas diferenças foram notórias: a menor intensidade da cobertura e a presença do contraditório. A frase de Eliane Catanhede dispensa grandes explicações:

“a manifestação de hoje mostra que quem está indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo brasileiro”, disse a comentarista. Assim, a Globo buscou levar o telespectador a não se enxergar naquelas pessoas “de vermelho” e “petistas”, como tantas vezes foram tachadas, numa ocultação de toda a diversidade de posicionamentos políticos de pessoas e grupos que denunciaram o golpe.

Capas do O Globo não deixam dúvidas acerca dessa estratégia. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a favor de Moro”, estampou o periódico no dia 13 de março. “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestação em todos os estados”, resumiu no dia 18.

Os casos deixaram nítida a midiatização da política e das ações do próprio Judiciário, bem como as estratégias de manipulação adotadas pela Globo, no que foi seguida por boa parte da imprensa brasileira. A seletividade das acusações, especialmente das denúncias de corrupção; a confirmação da relevância de determinados fatos e posicionamentos, aos quais foi atribuído caráter nacional; a utilização de números e imagens que conferiam legitimidade à argumentação e a fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório foram os elementos da estratégia. Para não correr riscos, a Globo, especialmente, valeu-se de falas editorializadas ao longo de toda a cobertura, ao passo que a emissora praticamente dispensou a presença de comentaristas externos. A opinião pública era, afinal, a opinião dos próprios jornalistas do grupo.

Diante desse quadro e garantido o enraizamento social de tal posicionamento, não foi preciso abusar da inteligência dos analistas de mídia durante a cobertura da aprovação do afastamento, acompanhada, ao vivo, em todo o Brasil. Registros dos atos e de declarações de deputados foram abundantes. Não se viu, contudo, apuração, investigação, contextualização e problematização do processo em curso. Os argumentos que embasam o pedido de impeachment não foram apresentados, muito menos os de sua defesa. Nenhum convidado externo – nem mesmo um “especialista” alinhado ao posicionamento da Globo – foi convidado a discutir a situação do país. A postura motivou diversas críticas por parte da imprensa internacional, que denunciou o papel de políticos como Eduardo Cunha em todo o processo, as fragilidades jurídicas e mesmo os riscos à democracia. A crítica também foi direcionada aos conglomerados midiáticos. A tentativa de imprimir outras leituras à crise política e de denunciar as artimanhas que levariam ao impeachment coube aos veículos alternativos e também às emissoras públicas, em especial à TV Brasil. Também, por isso, apontam jornalistas da casa, a empresa sofreu forte retaliação logo que Temer assumiu.

Quando do episódio de demissão do diretor-presidente da EBC, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos, Edson Lanza, destacou que “o desenvolvimento de um sistema de meios de comunicação público em nível nacional, com garantias de independência em sua gestão e mecanismos de participação para a sociedade civil constitui um esforço positivo para a promoção do pluralismo de vozes nos meios de comunicação do Brasil”.

Os fundamentos da ataque da mídia à democracia

Pesquisador da relação entre mídia e democracia, o professor aposentado da UnB, Venício Lima, critica a postura adotada pela grande mídia no contexto da atual crise política. Para ele, ela expressa “continuidades históricas no comportamento da mídia que são fundamentalmente antidemocráticas e que são construtoras de uma cultura política que acaba sendo a cultura política dominante, independente de, por exemplo, uma nova geração que não necessariamente se utiliza de uma velha mídia”.

A partir da leitura de diversos estudos sobre o tema, Lima aponta três elementos-chave desse comportamento dos meios de comunicação. O primeiro é a adoção de um conceito de opinião pública “publicista”. Exemplificando o termo a partir da ação da mídia contra o presidente João Goulart, ele explica que os meios “assumiam que o papel da mídia era um papel de formação da opinião pública, mas ao mesmo tempo era um papel de representação e expressão dessa opinião pública”, o que era feito também com a desqualificação de outras instituições, como partidos, sindicatos e o próprio Congresso.

Em sentido semelhante, outra continuidade que pode ser percebida é a construção de um discurso adversário em relação à democracia, que é expresso na crítica permanente à política e aos políticos. Um olhar sobre as consequências dessa argumentação, para o professor, pode ajudar a explicar a eleição de candidatos que se apresentam como “apolíticos” nas eleições deste ano.

O perfil conservador desses políticos pode estar associado ao terceiro elemento destacado por Lima: o fato de a grande mídia ter adotado o discurso da vulgata neoliberal e, obviamente, refratário à esquerda. “Se você analisar o conjunto de palavras que fazem parte de um léxico neoliberal que vão sendo introduzidas no cotidiano das

pessoas, e como a mídia passou a criar uma linguagem pública usando esse léxico, é impressionante. E, no contexto dessa vulgata neoliberal, há também uma linguagem que favorece a intolerância e o ódio”, opina.

A cobertura oficialesca das medidas de Temer

O programa neoliberal adotado sem mediações por Michel Temer encontra na mídia um grande aliado. Medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que propõe o congelamento dos gastos públicos por vinte anos, ou a Reforma da Previdência têm sido apresentadas como ações imprescindíveis para que o país obtenha melhoras em seus índices econômicos. O discurso sobre a PEC, repetido à exaustão, buscava simplificar o problema e ocultar propostas concretas de saídas para a crise que não apenem os trabalhadores, como a auditoria da dívida pública e a taxação das grandes fortunas. No dia 30 de novembro, data da votação da Proposta no Senado, milhares de pessoas de todo o país foram a Brasília protestar contra a aprovação da medida que é considerada como um marco do fim do pacto constitucional firmado em 1988. O objetivo delas era chamar a atenção da sociedade e pressionar os parlamentares. Não obstante, a agenda midiática foi alterada devido ao acidente aéreo que vitimou 71 pessoas na Colômbia, a maior parte formada por integrantes do clube Chapecoense e profissionais da imprensa.

A tragédia ocupou todos os noticiários, de forma praticamente ininterrupta e sensacionalista. Enquanto os movimentos protestavam na Esplanada dos Ministérios, às casas de milhares de pessoas não chegavam informações sobre o que ocorria em Brasília. O silêncio fora rompido apenas quando o conflito já estava instaurado no local. Então, era útil à imprensa defensora da PEC apontar os atos de “vandalismo” – sem criticar, claro, a violência policial. Na madrugada, a Câmara dos Deputados também aproveitou o envolvimento dos brasileiros com a tragédia para alterar e votar o pacote de medidas contra a corrupção. Nos dias que se seguiram, enquanto a PEC não ganhava destaque em jornais como o Bom Dia Brasil e o Jornal Nacional, duas das principais fontes de informação de milhares de pessoas, a cobertura sobre o Chapecoense dava lugar apenas à discussão sobre as medidas de combate à corrupção.

Nos dias seguintes, as políticas propostas pelo governo Temer continuaram a ter o apoio da grande mídia, mas o discurso em relação ao presidente ganhou inflexões. Após oanúncio do acordo firmado pela cúpula da Odebrecht com o Ministério Público Federal (MPF), reportagens críticas passaram a ser mais recorrentes. No dia 9 de dezembro, o Jornal Nacional revelou o acordo de Cláudio Melo Filho, ex-diretor da empreiteira. Na abertura, citou o nome de Temer após destacar os de vários políticos da cúpula do governo. Na sequência, foi feito o anúncio de denúncia contra o ex-presidente Lula e seu filho e, em seguida, da redução da inflação – “a menor do mês de novembro em 18 anos”. A primeira notícia do jornal foi exatamente sobre a pauta positiva do dia: a redução da inflação. A segunda tratou da prisão do prefeito de Embu das Artes, na Grande São Paulo. A terceira, da identificação de suspeitos de matar um turista italiano, no Rio de Janeiro. A quarta, do anúncio do novo técnico da Chapecoense. Uma matéria sobre a situação dos sobreviventes do acidente foi apresentada na sequência.

Do acidente, o JN passou a um tema internacional, o relatório do Unicef sobre crianças que vivem em áreas de conflito ou são afetadas por desastres naturais. No segundo bloco, ganhou espaço a reforma da previdência, tema de duas reportagens seguidas. Até mesmo a previsão do tempo já havia sido anunciada quando, aos 25 minutos e 30 segundos, foi ao ar a matéria sobre a delação.

O destaque dado foi à denúncia contra Geraldo Alckmin. Embora o nome de Temer tenha sido pronunciado nas chamadas do jornal, inclusive na escalada, o caso envolvendo o presidente só foi detalhado aos 43 minutos e 10 segundos, por meio de link com um jornalista posicionado em Brasília. Isso é, não precisou de edição ou algo mais complexo do ponto de vista técnico. O texto passou longe de ser personalista. O nome de Temer foi apresentado em meio a muitos outros. E mais. Foi um dos últimos a ser citado. A “atuação indireta” de Temer, que teria pedido doações pessoalmente em uma ocasião, foi explicitada. No dia 10, o depoimento dele veio à tona. Na lista de 51 políticos, o próprio Temer – citado 43 vezes na delação premiada. O tom adversário verificado em momentos anteriores, contudo, não foi reprisado.

Na longa chamada inicial do Jornal Nacional, o nome do presidente sequer foi citado. A matéria sobre o capítulo dedicado por Cláudio Melo Filho a Temer começou assim: “as delações da Lava Jato, que já tinham atingido em cheio o grupo político do PT, e que ainda podem atingir mais nas próximas revelações, voltam-se agora contra para o núcleo do PMDB e políticos do PSDB”. O nome de Temer é citado quando a reportagem alcança o primeiro minuto. Destaca trecho da delação em que o empresário diz que Temer atuava de “maneira muito mais indireta”. O tratamento da denúncia de pedido de R$ 10 milhões foi bastante sutil, sobretudo se compararmos com a postura adotada em delações que envolveram Dilma Rousseff. No Jornal das 10, na Globo News, o tradicionalmente ácido Merval Pereira teve que fazer uma ginástica argumentativa para criticar o vazamento das delações. Merval chegou a concordar com a postura da Procuradoria- Geral da República, que decidiu abrir investigação para apurar o vazamento do conteúdo de delações.

A fragilidade do governo abriu espaço para a disputa entre setores da burguesia, que se reflete também no comportamento da mídia. Os jornais impressos deram destaque ao envolvimento do atual presidente, inclusive O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que deram exclusividade, na chamada principal, à referência a Temer. A disputa pela ocupação do poder dependerá do resultado da pressão popular diante das novas denúncias e do avanço das propostas conservadoras, como a PEC 55 e a reforma da previdência. Este capítulo da história está aberto. E a posição da mídia, mais uma vez, poderá ser definidora. Conforme visto, embora os canais privados resguardassem entre si algumas divergências editoriais e formais, a narrativa geral que culminou no estabelecimento do impeachment de Dilma e com a chegada ao poder de Temer seguiu um caminho coerente e uníssono em seu objetivo geral. O governo Temer encontra na grande mídia uma aliada no que diz respeito ao apoio às medidas neoliberais mais polêmicas.

A falta de pluralidade de opiniões remonta à própria estrutura que organiza os meios de comunicação no Brasil regidos por uma lógica estritamente comercial. Além disso, a posse dos canais de rádio e TV por grupos religiosos e/ou políticos, conforme veremos, também garante a ressonância de um discurso hegemônico condizente com os interesses das elites políticas nacionais.

[1] Fonte: opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,chegou-a-hora-de-dizer-basta,10000020896