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Avança na Câmara projeto que proíbe franquia na banda larga fixa

Comissão de Defesa do Consumidor é favorável ao texto, mas usuários devem permanecer alertas, pois pressão das operadoras pode terminar em “acordão”.

Por Marina Pita*

A Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados aprovou nesta semana o parecer do deputado Rodrigo Martins (PSB-PI) favorável ao PL 7182/2017, que proíbe a franquia de dados na internet fixa.

A aprovação é considerada uma vitória de todos os usuários e usuárias de internet que, ao longo do último ano, se mobilizaram contra mais este ataque das operadoras de telecomunicações ao acesso pleno à rede. A polêmica já dura mais de um ano.

O Brasil atravessava a crise política do processo de impeachment de Dilma Rousseff quando, no início de 2016, as grandes prestadoras de serviço de conexão à internet deram início a um movimento para limitar o volume de dados na banda larga fixa, já adotado na telefonia móvel.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e o já novo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, sob o comando de Gilberto Kassab, ensaiaram uma defesa da proposta, mas foram pressionados e a Agência, em abril de 2016, proibiu temporariamente a franquia na rede fixa.

Revoltados com a medida, usuários de internet de todo o país conseguiram frear o processo. Entre maio e junho de 2016, enquete realizada pelo DataSenado resultou em 99% de um total de 608.470 internautas consultados contrários à limitação. “Façam todo o tipo de baixaria, mas não toquem na minha conexão fixa”, era o tom de memes e demais conteúdos que circularam na web contra a iniciativa das teles.

Assim, em raro momento, o Legislativo ouviu a maior parte da sociedade brasileira, que entende que a franquia vai de encontro às necessidades de desenvolvimento social e econômico e ao próprio exercício da liberdade de expressão da população. Em março passado, o Senado aprovou o projeto que agora tramita na Câmara.

Mas a novela, infelizmente, não acabou. A estratégia das operadoras, interessadas apenas no lucro, mostra-se viva. Um grupo de deputados, atendendo à pressão das empresas, ainda pode impedir que o projeto de lei seja aprovado na Casa. Propõem um “acordo” para reduzir o “dano” das teles.

Em entrevista ao site especializado Teletime, o deputado Celso Russomano (PRB-SP) afirmou que o projeto “engessa o setor de telecomunicações”. Para ele, os planos de franquia de internet podem existir se as empresas de telecomunicações oferecerem um serviço de qualidade. Sim, em um mundo ideal e inexistente, as operadoras ofereceriam o serviço a preços módicos e todos os brasileiros teriam acesso à web em seus domicílios. Não é o que acontece. Cerca de metade da população brasileira segue sem acesso domiciliar à rede.

Russomano, conhecido por defender os direitos dos consumidores, agora está propondo que usuários que supostamente consomem grande volume de dados (os chamados heavy users, no jargão técnico), como jogadores online, tenham que contratar planos com franquia limitada.

Vale ressaltar que, até o momento, não há qualquer relatório que comprove, com evidências, o argumento das operadoras de que uma internet vendida apenas por velocidade estaria sobrecarregando a infraestrutura existente. Em audiência pública realizada no último dia 23 de maio, os representantes das teles adoraram a possibilidade de negociar em torno da proposta de limitar os heavy users.

Será preciso então retomar a mobilização se não quisermos que mais esse ataque à internet livre se consolide.

Por que a franquia de dados não faz sentido, especialmente na internet fixa?

Impedir que a franquia de dados seja estabelecida na banda larga fixa é fundamental para a garantia de direitos.

Conforme lembrou o autor do projeto de lei que proíbe a prática, senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), em sua justificativa ao texto, diversos aspectos do exercício da cidadania dependem hoje da internet, como ensino à distância, declaração do imposto de renda e pagamento de obrigações tributárias.

Assim, não é razoável limitar o tráfego de dados na rede. Tal prática, inclusive, prejudicaria a parcela mais pobre da população, que muitas vezes se conecta em redes wi-fi abertas em espaços públicos ou privados – prática que certamente acabaria se vingasse a limitação de dados nas conexões fixas. Quem compartilharia sua rede se isso resultasse num pagamento maior às operadoras?

Na já citada audiência pública do dia 23, a associação de consumidores Proteste afirmou que limitar a franquia de dados na banda larga fixa é ilegal, pois a conexão à internet é considerada um serviço essencial pelo Marco Civil da Internet. Desta forma, cortar a internet por um motivo que não seja a inadimplência é algo que viola a legislação.

Na avaliação da associação, a permissão para que prestadoras imponham a franquia na banda larga fixa significaria, ainda, dar carta branca para que as teles reduzam os investimentos em rede, especialmente em redes modernas, como a de fibra óptica. Ou seja: seria dar um passo na direção contrária às necessidades do Brasil.

Vale lembrar que o modelo de franquia na banda larga – universalmente adotado na oferta de conexão móvel – tem gerado um volume gigantesco de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor.

Os usuários não conseguem controlar o uso de dados e, invariavelmente, são lesados por cobranças pouco claras. Tampouco as prestadoras de serviços de conexão móvel têm conseguido responder às necessidades dos consumidores fortalecendo formas de controle e acompanhamento de seu pacote de dados contratado.

A própria Anatel está investigando as operadoras brasileiras e seus parceiros por abusos na cobrança de serviços de valor agregado, que são aqueles que consomem os dados. A medida responde ao número de reclamações na agência, nos Procons e no Judiciário feitas por consumidores que dizem ser cobrados por serviços nunca contratados.

As investigações, que começaram no ano passado, apontam para diferentes práticas abusivas, como desrespeito à necessidade de confirmar duas vezes a contratação de serviço, falha nas informações básicas prestadas ao usuário e descumprimento do código de defesa do consumidor.

Por último, a ideia de que quem consome mais dados deve pagar mais por ele não tem qualquer embasamento material. Os dados, diferentemente da energia elétrica, não são finitos, não têm custo de criação para as operadoras. O que as operadoras querem é conseguir cobrar mais de quem já assina um serviço de conexão à internet em vez de expandir o acesso à rede no Brasil.

A solução é democratizar, não limitar

Enquanto as empresas dizem que precisam cobrar mais pelo acesso à internet para cobrir os custos de manutenção e ampliação da rede, nós dizemos que é preciso aumentar o número de usuários e discutir seriamente um modelo de universalização do acesso adequado para a população. Deveríamos, por exemplo, avançar na prestação do serviço de conexão à Internet em regime público, com garantia de modicidade tarifária e possibilidade de uso dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para a ampliação das redes.

Também o Estado deve agir para garantir infraestrutura em localidades de baixo retorno financeiro e oferecer a rede à iniciativa privada, principalmente pequenos provedores de conexão, conforme propõe a Campanha Banda Larga É Direito Seu.

Por último, mas de forma alguma menos importante, projetos para melhorar a infraestrutura de telecomunicações como um todo, reduzindo os custos e garantindo a qualidade do acesso, como os desenvolvidos pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br) – como a disseminação de pontos de troca de tráfego e a criação de redes de entrega de conteúdo em todo o Brasil – são respostas democráticas às necessidades reais de redes mais eficientes.

Impedir a franquia de dados na internet fixa, com a aprovação do PL não garantirá tudo isso. Mas é um primeiro e fundamental passo para barrar os impulsos de quem acha que o acesso pleno às redes deve ser algo exclusivo de quem pode pagar por isso. O texto aprovado esta semana vai agora para as comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Depois, passa ainda pelo plenário da Câmara, antes de ir para sanção da Presidência da República.

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Intervozes.

Fomento à produção audiovisual na TV fortalece a comunicação pública

Na Bahia, novo edital da TVE, maior entre os lançados até agora para a produção televisiva, usa recursos do Fundo Setorial do Audiovisual

Alex Pegna Hercog*

No dia 15 de maio o Governo do Estado da Bahia lançou o maior edital de fomento à produção audiovisual para a televisão brasileira. O “Bahia na Tela” irá destinar 20 milhões de reais para produções autorais que serão exibidas na TVE a partir da parceria entre o Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb) e a Agência Nacional de Cinema (Ancine), via Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

O recurso irá contemplar produtoras independentes que produzirão cerca de 90 horas de conteúdo que serão veiculados na TV pública baiana. As categorias contemplam ficção, documentários e séries, com temáticas que pretendem representar a diversidade do conjunto da sociedade brasileira, pouco vistas na tela das TVs comerciais.

O edital prevê recursos para obras que abordem temas como cultura africana e indígena; universo LGBT, rural e jovem; questões relacionadas ao uso de drogas; cultura geek e digital; mulheres baianas; terceira idade; diversidade religiosa; pessoas com deficiência; segurança alimentar; esportes; agroecologia, dentre outros temas ligados aos territórios de identidade e à própria cultura da Bahia.

Ao adotar uma política de incentivo à pluralidade de representações no audiovisual e de valorização da TV pública, o projeto se contrapõe ao novo modelo político adotado pelo governo de Michel Temer para o setor da comunicação pública, materializada pela Lei nº 13.417/2017 que operou mudanças negativas na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), dentre as quais, a extinção do seu Conselho Curador.

Ainda interino, o governo Temer exonerou o diretor-presidente da EBC, Ricardo de Melo, que tinha mandato a ser cumprido até 2020, e colocou em seu lugar o jornalista Laerte Rimoli. Desde então, os processos de desmonte da empresa se intensificaram com corte de investimentos, interferência na programação da TV Brasil, perseguição de funcionários e, em alguns casos, práticas de censuras de conteúdos e entrevistados.

Além disso, ao associar política de fomento audiovisual, vinculado ao setor da cultura, à produção de conteúdo para a TV pública, o edital também se contrapõe ao processo de desvalorização da cultura promovido pelo atual governo federal.

Como se sabe, ao assumir interinamente, Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura (Minc), mas voltou atrás após uma série de ocupações e protestos que exigiam a manutenção da pasta. O ministro nomeado foi o advogado Roberto Freire (PPS) que nos últimos dias renunciou ao cargo logo após a publicação das gravações envolvendo Temer e Joesley, presidente da JBS. Enquanto ministro, Freire já havia anunciado que “renovaria” o perfil da Ancine, cuja diretoria era classificada pelo jornal O Globo como “último ‘bunker’ pró-Dilma”.

Não por acaso, o novo edital ainda é resultado de propostas formuladas durante a última gestão da diretoria colegiada da Ancine – nomeada ainda no governo da presidenta Dilma Rousseff – incluindo o diretor-presidente Manoel Rangel, que participou do evento de lançamento do edital na Bahia, uma de suas últimas atividades oficiais antes de encerrar o seu mandato, no dia 19 de maio. Vale lembrar que a Ancine, autarquia vinculada ao Minc, sofre com a instabilidade política vivida no atual governo.

Representatividade na tela e atrás dela

Uma das principais políticas do “Bahia na Tela” é o estímulo à diversidade de conteúdo a ser produzido. Suas categorias e eixos temáticos pretendem contemplar obras que tratem de questões normalmente preteridas pelas televisões comerciais.

No entanto, a cineasta Larissa Fulana de Tal, que pertence ao Coletivo Tela Preta e à Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), pondera o fato de o edital não estabelecer nenhuma política afirmativa. Para Larissa, é importante garantir que a diversidade esteja contemplada também no perfil das produtoras. “Ao olharmos a imagem observamos o que está no campo, o que compõe a imagem. Não é novidade o diagnóstico de quais os papéis que os personagens negros ocupam nas histórias do cinema. Bem como fora do campo, atrás das câmeras, que não é revelado, mas é refletido na imagem, a ausência dos nossos corpos”, afirma Larissa, que destaca a necessidade de se pensar também o lugar do realizador e não apenas da temática.

David Aynan, que também pertence ao Coletivo Tela Preta, complementa ressaltando que “não podemos esperar que as ações afirmativas resolvam a problemática da representação e inserção dos negros no mercado audiovisual. É preciso que o mercado compreenda que o cinema negro é um bom negócio”.

Já Lilih Curi, da Segredo Filme, que no início do ano promoveu uma mostra de cinema com produções femininas, comemorou o lançamento do edital, considerando uma importante oportunidade de fomento à produção do audiovisual da Bahia. Mas ela também destacou a necessidade de haver uma paridade racial e de gênero nas comissões julgadoras dos projetos inscritos. Segundo Lilih, esse equilíbrio é “urgente, pois contempla as diferenças de olhares e fazeres no audiovisual, e o mercado recebe um conteúdo mais diverso e democrático”.

Flávio Gonçalves, diretor-geral do Irdeb, afirmou que a paridade de gênero nas comissões avaliadoras do edital está garantida, mantendo a política interna já adotada pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia.

Política de fomento

O uso do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é uma das grandes apostas para o fomento da produção nas TVs públicas. Trata-se de uma categoria específica do Fundo Nacional da Cultura, utilizada para o fomento da produção audiovisual brasileira.

Para Flávio, o FSA dispõe de recursos públicos e, portanto, deve atender não apenas ao segmento da TV comercial, mas também da TV pública. “É o que fizemos agora na Bahia. Com estes recursos os produtores poderão produzir, a sociedade poderá assistir na TVE e depois em outras emissoras que tenham interesse no conteúdo”, destaca.

Segundo ele, o “Bahia na Tela” será um estímulo à TVE. Isto porque a comunicação pública no Brasil está longe de ser compreendida pela população como algo essencial à democracia. “Por isso, a sociedade exige pouco em termos de investimentos e isso faz com que tenhamos dificuldades no funcionamento das TVs”, afirma o diretor-geral, que concluiu dizendo que o mais relevante é fortalecer a comunicação pública, ampliando o alcance e a audiência.

É importante ponderar, no entanto, que a parceria com a Ancine é restrita à produção de conteúdo, com a garantia de exibição pela TVE. Isso, por si só, não contempla todas as necessidades de funcionamento de uma TV pública. A realidade das emissoras públicas pelo Brasil, inclusive a TVE, é delicada. Ao contrário do que acontece em países como Argentina e Inglaterra, falta o reconhecimento da importância da comunicação pública tanto pela sociedade quanto pelos governos.

Além de exibir um conteúdo de qualidade, é fundamental que a TV possua infraestrutura capaz de levar o sinal para o máximo de territórios. Possuir uma equipe permanente de funcionários capazes de produzir independente de eventuais editais também é condição necessária para a sobrevivência das TVs públicas.

Nesse sentido, o “Bahia na Tela” cumpre um papel essencial para a democratização do conteúdo, mas é necessário que a valorização da TV pública vá além de produções pontuais. Sua efetividade só se dará a partir do investimento necessário para garantir seu pleno funcionamento, com infraestrutura e recursos humanos capazes de desenvolver um projeto contínuo a serviço da comunicação pública.

*É relações públicas e membro do Coletivo Intervozes

Mídia vandaliza cobertura de ato e legitima uso de Exército por Temer

Jornais ignoram importância do protesto e repressão da PM contra manifestantes pacíficos para apoiar autoritarismo do governo

Por Bia Barbosa*

Quando a fumaça preta subiu em alguns pontos da Esplanada dos Ministérios, não havia mais dúvida: as manchetes de todos os veículos da mídia tradicional – impressos, online e televisivos – seriam sobre o vandalismo praticado contra os prédios públicos durante o ato desta quarta-feira 24 em Brasília.

Sim, os ataques devem ser noticiados. Mas não pareceu relevante à imprensa brasileira também reportar que esta foi a maior manifestação que Brasília recebeu nos últimos 15 anos? Que mais de 100 mil pessoas, de todas as regiões do país, se deslocaram para a capital para exigir direitos e lutar contra retrocessos? Que essas 100 mil pessoas foram brutalmente reprimidas com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e muito spray de pimenta?

O foco foi para o que fizeram os poucos e nada numerosos grupos de encapuzados. Uma vez mais, quem não participou presencialmente da manifestação contra as reformas de Michel Temer e por Diretas Já e ainda se informa apenas pelos jornais tradicionais, vai achar que tudo não passou de quebradeira. E o buraco, caros leitores e leitoras, é bem mais embaixo.

Comecemos pelo enfoque da cobertura feita nos telejornais noturnos e portais e a repercussão nos impressos desta quinta-feira 25. O Jornal da Band abriu os trabalhos dando o tom: “Depredações e confronto com a Polícia Militar marcaram protestos em Brasília das centrais sindicais contra o governo e as reformas no Congresso; prédios de Ministérios foram destruídos e incendiados”. No Jornal Nacional, poucas imagens da marcha e muitas cenas de violência e “vandalismo de mascarados”.

O Jornal das 10, na GloboNews, construiu sua narrativa afirmando que todo o “confronto” havia sido iniciado pelos manifestantes. A abertura do telejornal usou frases como “Polícia Militar tenta avançar e conter manifestantes”, “Ministérios são esvaziados por questão de segurança” e “restos de violência”. A âncora Renata LoPrete destacou que o protesto foi “organizado e financiado pelas centrais sindicais”, para, uma vez mais, retirar a legitimidade dos manifestantes que ali estavam.

A primeira reportagem abriu com um “A confusão começou quando furaram o bloqueio de revista”, e continuou com “Mascarados jogavam pedaços de pau e garrafas, a polícia revidava”. “Vândalos arrastaram banheiros químicos e usaram para fazer barricadas”; “Vários ministérios foram depredados, o da Agricultura foi incendiado. Destruição também no Ministério da Cultura, com portas, vidros e computadores quebrados. Vandalismo no Turismo, Fazenda, Minas e Energia, no Museu e na Catedral”.

Os portais seguiram a mesma linha durante a noite. Para o UOL, Brasília “estava um verdadeiro caos” e o DF era “terra arrasada”. No Portal do Estadão, destaque para os feridos, os detidos e a depredação dos edifícios.

O Bom Dia Brasil começou nesta quinta com a Globo vistoriando o Ministério da Agricultura com uma engenheira. “O tamanho do estrago ainda está sendo levantado”. Houve até infográfico dos prédios vandalizados.

As centrais sindicais foram ouvidas apenas para dizer que não eram responsáveis pela ação dos black blocs, e não para apresentar as reivindicações que levaram milhares de pessoas à Esplanada.

Miriam Leitão não perdeu a chance de atacá-las: “fazem política desigual e seletiva, condenam a corrupção apenas de alguns partidos e vão para a rua em defesa de outros”. A frase cairia como uma luva para caracterizar a atuação da empresa de comunicação em que ela mesma trabalha.

A menção, pela apresentadora do telejornal, ao uso da força desproporcional pela polícia foi tão superficial que chegou a justificar o uso de armas de fogo contra um grupo de manifestantes, “em reação a um ataque de paus”.

As manchetes dos impressos deste dia 25 são uníssonas. Na Folha de S.Paulo: “Protesto contra Temer em Brasília acaba em violência”; na Zero Hora/RS: “Brasília arde”; no Diário Catarinense: “O dia em que Brasília virou campo de guerra”. As fotos são de manifestantes feridos, de mascarados e de um policial sozinho atirando com arma de fogo. Nada sobre a brutal repressão policial, que atingiu a todos e feriu inclusive jornalistas a trabalho.

Boas vindas às Forças Armadas

Diante do quadro pintado, até o maior dos democratas poderia concordar que pedir a ajuda das Forças Armadas seria uma alternativa. Afinal, tudo foi retratado como fora de controle; a vida dos funcionários dos ministérios teria sido ameaçada e a Esplanada, literalmente, pegava fogo. O decreto presidencial editado por Temer, então, não foi criticado pela imprensa. Pelo contrário, foi noticiado quase que como uma consequência natural do que ocorria.

“Presidente Temer chama Exército para conter a violência”, anunciou na TV o Jornal da Record. A justificativa do uso das Forças Armadas foi ilustrada até com um trecho da Constituição Federal.

No final da tarde, na GloboNews, a chamada era: “Depois de confronto e depredação de ministérios, Temer envia Forças Armadas para as ruas do Distrito Federal”. À noite, Renata LoPrete foi categórica: “Diante de um protesto que transformou a Esplanada num campo de batalha, Temer convocou as forças armadas para garantir a ordem pública”.

O limite da polêmica em torno do emprego das Forças Armadas foi o disse-me-disse entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro da Defesa, Raul Jungmann. O primeiro disse que pediu apoio da Força de Segurança Nacional, e não do Exército, ao governo federal. O segundo declarou que “os soldados que estão na rua estão obedendo à Constituição e atendendo a um pedido do Legislativo, nada mais constitucional e democrático”.

A oposição no Congresso criticou duramente a medida, mas a imprensa, não. Deram espaço para o líder do governo, Romero Jucá, tentar explicar que “Temer chamou as Forças Armadas porque um bando de marginais estava tacando fogo em ministérios”.

Para Gerson Camarotti, Jungmann alegou: “Não existe democracia sem ordem. A PM não conseguiu conter o vandalismo e o incêndio dos prédios. Havia risco para a vida das pessoas. Então cabia ao Presidente da República tomar uma medida. (…) Só tínhamos 100 homens da Força de Segurança Nacional, por isso foi preciso chamar o Exército”.

Se Camarotti estivesse acompanhando o protesto de perto, como nós estávamos, talvez não tivesse caído na ladainha do ministro. O número de agentes da Força de Segurança Nacional na Esplanada era bastante superior a 100.

E mesmo estes teriam sido suficientes para conter o pequeno grupo de black blocs que atacaram os edifícios e pontos de ônibus. Bastaria que tivessem recebido a ordem para tal.

Mas, pelo visto, alguém no Planalto buscava um bom motivo para colocar o Exército nas ruas – em princípio por uma semana.

Foi só deixar o barco rolar, os prédios pegarem fogo e editar o decreto, que estava pronto desde dezembro passado. Durante mais de uma hora, seguimos de perto a ação dos mascarados na Esplanada sem que qualquer iniciativa da Força de Segurança Nacional – responsável pela preservação do patrimônio federal, como bem lembrou o governador do DF, Rodrigo Rollemberg – fosse tomada. A justificativa estava dada.

“Temer põe Forças Armadas na rua após ataques”, publicou A Tarde, da Bahia, nesta quinta.Mas nada superou o editorial de O Estado de S. Paulo. Intitulado “Isto não é política, é caso de polícia”, o jornal conservador classifica o protesto de “manifestação de autoritarismo da esquerda”.Para os Mesquita, “hordas de manifestantes impuserem o caos” e fizeram “necessário” que o presidente Michel Temer convocasse as Forças Armadas. Os manifestantes “não vinham debater propostas ou difundir argumentos, lá estavam para vandalizar”.

O Estadão chega ao cúmulo de criticar até a tentativa da oposição parlamentar em barrar a leitura do parecer da reforma trabalhista no Senado. Acha que a atuação da oposição é um “ataque à democracia” e que parlamentares “querem barrar o avanço das reformas pelo uso da violência”. Ou seja, para o jornal de São Paulo, não há povo na rua lutando contra a retirada de direitos nem parlamentares de esquerda fazendo oposição a um governo ilegítimo. Há, somente, “violência”.

Temer revogou seu decreto na manhã de quinta 25, mas pelo visto tem muita gente na imprensa com saudades da ditadura.

E a Globo, nisso tudo?

Há uma semana, muita gente tenta entender as movimentações da Rede Globo – e de todos os seus veículos – na crise política instaurada. Depois de dar o furo de reportagem com a divulgação da gravação de Joesley Batista em O Globo, a empresa segue com uma linha editorial diferente do restante da chamada grande mídia do país. Enquanto a maior parte dos veículos não defende abertamente a saída de Temer da Presidência, a Globo parece mesmo já ter tomado esta decisão.

Criminalizar os protestos não é um ponto fora da curva nesta nova conjuntura. Esta é a postura histórica da emissora. Mas a Globo foi a única, nas últimas 24 horas, a relacionar explicitamente o chamado às Forças Armadas como um ato de fraqueza de Temer.

“Poucas vezes tivemos uma manifestação com tanta depredação dentro dos ministérios. Temer recebeu ligações de pessoas com medo. Mas quando convoca as Forças Armadas, ele inicia outra crise dentro do Congresso. (…) Quis passar uma ideia de que consegue conter manifestações e conflitos com a “garantia da lei e da ordem””, analisou Cristiana Lobo.

Para a âncora da GloboNews, Renata Lo Prete, “a condição do governo para votar qualquer coisa chegou próxima de zero. Isso num dia em que o PSDB resolveu ficar no governo, mas sabemos que é uma decisão momentânea e que o partido está preparando um desembarque. Isso num dia em que o Planalto perdeu mais um assessor, Sandro Mabel, investigado”. “Quantos assessores o governo já não perdeu por corrupção?”, questionou na sequência, no J10, Gerson Camarotti.

O Jornal Nacional também foi dos poucos a ouvir parlamentares de oposição, incluindo Paulinho da Força, que declarou que “o Presidente precisa reconhecer a crise e que o governo está perdendo força”. Para O Globo, o decreto foi o grande exemplo de que o governo e seus aliados estão desorganizados. “Isolado, Temer usa Exército após depredações em Brasília”, diz a manchete desta quinta.

Os próprios colegas da imprensa estão estranhando a postura da Vênus Platinada. Em artigo para a Folha publicado hoje, o Diretor de Jornalismo, Ali Kamel, foi obrigado a afirmar que “a posição da TV Globo na crise de Temer é a de quem não tem lados”.

Dá pra acreditar?Certamente, o jogo que está sendo traçado pelo principal grupo de comunicação do país está longe de ser baseado na imparcialidade.

Déficit publicitário? Negócios com Carlos Slim? Laços históricos com o PSDB, que pode assumir indiretamente o governo se Temer renunciar?

Todas as hipóteses estão sobre a mesa. Seguir acompanhando o que disso tudo vai ao ar ou para as páginas dos jornais pode, sim, ajudar a entender os próximos capítulos dessa novela.

*Bia Barbosa é jornalista, coordenadora do Intervozes e Secretária Geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Colaboraram Ana Cláudia Mielke, Marcos Urupá, Marina Pita, Ramênia Vieira e Veridiana Alimonti, integrantes do Intervozes.

Representação de LGBTs na mídia: entre o silêncio e o estereótipo

Na semana do Dia Internacional contra a Homofobia, questionamos a ausência dos LGBT e o imaginário construído sobre o grupo nos meios de comunicação

Por Gyssele Mendes*

As noções de representação e representatividade são complexas e caras aos movimentos e minorias sociais. No regime da visibilidade em que vivemos, “ser visto” é também uma forma de pressionar instâncias governamentais por mais direitos e políticas de igualdade, a fim de garantir a dignidade humana de grupos sociais cotidianamente vilipendiados. Daí um dos papéis fundamentais da mídia na contemporaneidade: é o espaço da visibilidade por excelência.

Além disso, a aglomeração de identidades e sexualidades distintas sob o mesmo guarda-chuva, como é o caso da sigla LGBT, é um indicativo de disputas. O movimento de lésbicas possui pautas que nem sempre serão observadas pelo movimento gay, assim como as travestis e pessoas trans possuem reivindicações específicas relativas às identidades de gênero. Já temos aí a ponta do iceberg da representação: o seu limite em retratar e (re)criar o outro.

Há 43 anos, o primeiro personagem gay surgia na televisão brasileira, na novela “O Rebu”, da TV Globo. A trama girava em torno de um misterioso assassinato. O pesquisador Luiz Eduardo Peret destaca que “até o fim da primeira metade da novela, o público não sabia quem havia morrido, nem se era homem ou mulher. Só no último capítulo se revelava que o rico Conrad Mahler matara a jovem Sílvia por ciúmes dela com seu ‘protegido’ Cauê. A homossexualidade estreou na telenovela através do crime ‘passional’ e da dependência financeira de um jovem por um homem mais velho”.

Nesse mesmo período, tivemos a primeira “onda” de movimentos LGBTs no Brasil, formados majoritariamente por gays e travestis, como resposta ao silenciamento imposto pela “moral e bons costumes” da época.

Desde então, muita coisa mudou, outras nem tanto. É fato que, nos últimos anos, a população LGBT tem conquistado cada vez mais espaço na mídia brasileira, seja nas telenovelas, em reportagens pedagógicas da mídia impressa e online ou programas humorísticos e de variedades. Mas quando pensamos nisso, quais personagens LGBTs vêm à mente?

Em um breve esforço, lembramos de Rafaela e Leila, o casal de lésbicas mortas na explosão de um shopping, em Torre de Babel (1997); Clara e Rafaela, de Mulheres Apaixonadas (2003), cujo final contava com uma apresentação teatral do trágico “Romeu e Julieta”; um personagem ou outro interpretando o “gay afeminado” e “afetado” em programas de humor; a travesti Sarita, integrante do núcleo cômico de Explode Coração (1995); Júnior e Zeca, de América (2005), que tiveram o beijo censurado no último capítulo; o casal Niko e Félix, de Amor à Vida (2013), cujo beijo no final da novela rendeu inúmeras discussões, e por aí vai.

Outra questão vem à tona, além de como são representados os personagens LGBTs: entre eles, quantos são interpretados por pessoas LGBTs? Quantas travestis estão no elenco da Globo, do SBT, da Band ou da Record? Quantos homens trans ocupam espaços de poder na mídia? Quantas lésbicas participaram da produção do roteiro das telenovelas em que são representadas? Provavelmente, a resposta não se distanciará muito do zero.

Recentemente, a nova produção de Glória Perez para a TV Globo ocupou os noticiários com uma polêmica que tocava exatamente nesse ponto. “A Força do Querer”, que estreou no mês passado, buscará representar o processo de transição de um homem trans, interpretado por uma atriz cisgênero (pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento).

Ao anunciar isso, a autora e a emissora foram bombardeadas com críticas do movimento LGBT, que alertava para a importância de um homem trans ocupar esse espaço. Apesar de não conseguirem reverter a situação, a militância LGBT deixou um recado: “queremos falar, ocupar, e não ficaremos calados diante do uso das nossas vivências como álibi para responsabilidade social da emissora”.

Democratizar a mídia não implica somente em ampliar o acesso e buscar a pluralidade nas representações. Em outras palavras, não se trata apenas de democratizar o produto, mas também o processo de construção dessas representações, que servem como um mapa social de leituras e condutas sociais, indicando quem deve ter sua existência respeitada e quem simboliza uma ameaça ao status quo.

De acordo com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2016 foram mortas 347 pessoas vítimas de LGBTfobia, quase uma por dia. Para chegar a esse número, o GGB realizou um levantamento a partir da mídia e de informações que recebeu de familiares e amigos das vítimas. Nota-se, portanto, que esse dado reflete apenas uma parcela dos atos de violência motivados por homofobia, lesbofobia, bifobia ou transfobia.

Maria Clara Araújo, figura importante do movimento recente de mulheres trans no Brasil, ressalta que “quando se fala em representar, é sobre existir, de fato, em uma sociedade em que 90% das mulheres trans e travestis estão na prostituição como um lugar condicionado”. A representação nas telas pode ser parte de uma ficção, mas as consequências nas vidas dos grupos representados irresponsavelmente são reais.

Carlo Ginzburg, no ensaio “Representação: a palavra, a ideia, a coisa”, sublinha a dupla função de representar uma ausência e continuar uma existência, destacando uma ruptura e uma continuidade. Ginzburg nota que “a substituição precede a intenção de fazer um retrato, e a criação, a de comunicar”, mostrando que as representações não são apenas constituídas da “imitação” de algo ou alguém, mas do duplo processo de substituição e (re)criação daquilo ou daquele que se representa, de figuração e produção de sentidos, de simbolização e significação. Logo, representar é o processo de criar e substituir.

Imaginem quantas vidas seriam poupadas ou quantas pessoas não poderiam ter suas visões de mundo ampliadas se a mídia optasse por representações mais humanizadas, inclusivas, focadas na construção de empatia entre os diferentes e não em publicidade ou lucro? Essa pode não ser a solução, mas certamente é um caminho que a grande mídia brasileira poderia tomar, caso estivesse interessada em erguer uma sociedade que saiba reconhecer e conviver com as diferenças.

*Gyssele Mendes é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e militante LGBT

O caso Baleia Azul e o perigo de legislar por impulso

A vontade de proteger crianças e adolescentes, inflada por notícias alarmistas, pode levar legisladores a fragilizar a liberdade de expressão

Por Marina Pita*

Quando algo ameaça crianças e adolescentes, a resposta da sociedade é e precisa ser rápida. Essa população, como mais vulnerável, precisa de proteção especial, inclusive na legislação. E, no entanto, vale redobrar a cautela para não responder impulsivamente quando o assunto é ameaça a crianças na web, especialmente em termos legislativos.

Em momentos de pânico, que nos afastam da razão, e na tentativa de protegê-los, somos levados a tomar decisões que volta e meia colidem com direitos fundamentais socialmente estabelecidos, conforme bem definiu Thiago Tavares, diretor presidente da Safernet Brasil e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

O caso Baleia Azul e a reação da sociedade – especialmente dos legisladores – é um desses exemplos importantes de serem analisados.

Primeiro: as pessoas de bem, nossos amigos e parentes, na maior boa intenção, replicam, sem checar, um alarme contra o jogo que levaria jovens e adolescentes ao suicídio. A vontade é proteger, o que move é o pânico.

Em seguida, há um legislador pronto para reagir, muitas vezes bem intencionado, mas sem conhecimento sobre o funcionamento da internet.

No caso do jogo Baleia Azul, o Projeto de Lei 6989/2017, do deputado Odorico Monteiro (PROS-CE), propõe alterar o Marco Civil da Internet (Lei 12.965) para exigir que provedores retirem do ar conteúdos que promovam lesão contra a própria pessoa, automutilação, exposição a situação de risco de vida ou tentativa de suicídio.

E esta proposta, que, como vamos mostrar, é muito problemática, ganhou um requerimento de urgência que está para ser aprovado. Há até um pedido de instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Assim, caminha-se na direção contrária da verdadeira urgência, que deveria ser em desconstruir o PL proposto.

Cabe lembrar que os provedores já podem retirar de suas plataformas conteúdos que considerem inadequados.

O que o Marco Civil da Internet faz é garantir que, em caso de divergência de análise – entre o que pensa uma empresa ou mesmo um cidadão –, a plataforma em questão possa ter a Justiça como mediadora para afirmar se deve derrubar o conteúdo.

Ou seja, o Marco Civil estabelece que os provedores não são obrigados a retirar determinado teor do ar em reação a um pedido. E isto é bom, porque as denúncias não são sempre bem intencionadas ou razoáveis. Portanto, cabe à Justiça definir quando uma plataforma é obrigada a fazê-lo ou não.

Isso gera lentidão na retirada de conteúdo possivelmente nocivo para crianças e jovens?

Não. As maiores plataformas têm retirado conteúdo inadequado do ar independente de decisões judiciais, quando tal conteúdo fere seus termos de uso. A Alphabet, empresa controladora do Google e do YouTube, por exemplo, mantém uma política de retirada de vídeo sempre que contenha estímulo à automutilação.

Isso acontece de várias formas, por análise algorítmica, que tem limitações (em termos de acerto e de capacidade de identificação), por ações de funcionários dedicados a isto e, inclusive, pela denúncia dos usuários.

A possibilidade da sociedade reclamar sobre conteúdos é fundamental em plataformas com um volume de conteúdo gigantesco e que cresce exponencialmente a cada dia. E isto está acontecendo.

Vale ponderar, porém, que as empresas sozinhas não conseguem responder a problemas que vão além de seus limites cibernéticos.

E, neste sentido, lembramos, como destacou o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Rogerio Giannini, em audiência pública na Câmara na semana passada: os jovens estão sob grande pressão para serem bem-sucedidos e é vendida a ideia de que, caso se esforcem e empreendam, alcançarão tal objetivo.

No entanto, a sociedade brasileira hoje é marcada pela falta de oportunidades para ascensão profissional e social, especialmente quando se fala da juventude pobre e negra.

Enquanto a sociedade não responder coletivamente ao contexto cultural, político e socioeconômico que abre espaço para que práticas de automutilação ganhem adeptos, não podemos colocar mais responsabilidade sobre as plataformas de internet do que elas têm de fato.

Mas se a proposta de alteração do Marco Civil para retirada de conteúdo relacionado ao Baleia Azul é inócua em termos de proteção à infância, pode ser desastrosa em termos de liberdade de expressão e acesso à informação.

Sem a mediação da Justiça, pessoas mal-intencionadas podem relacionar conteúdos ao Baleia Azul para que ele saia do ar – uma prática que acontece com notificação de infração de direito autoral.

Um usuário reclama direitos autorais de determinado conteúdo com o fim de retirá-lo do ar, mesmo que não exista infração à Lei de Direitos Autorais, como é o caso de uso justo de conteúdo para crítica e análise.

Agora, a cadeia de reação da sociedade ao jogo Baleia Azul é exemplar do que Julian Assange, no livro Cypherpunks, de 2012, chamava de os infocavaleiros do apocalipse: as ameaças que nos colocam em situação de temor e pânico de modo a abrir espaço para legislações controversas, que não resolvem os problemas que se propõem, mas causam danos a direitos fundamentais como liberdade de expressão e acesso à informação.

Os infocavaleiros do apocalipse são a pedofilia (e demais ameaças à infância), o tráfico de drogas e o terrorismo. A cada vez que alguém usa um desses argumentos, em seguida há uma desenrolar já bastante conhecido: as tentativas de aprovação de leis restritivas dos direitos de quem não comete crime algum.

Aos defensores de direitos humanos fundamentais, recomendamos cautela ao reagir a qualquer medida que vise responder a estas ameaças online e uma resposta firme a tentativas de legislar por impulso ou por autopromoção.

Importante estarem atentos que na terça 16 ocorreu mais uma audiência pública sobre o tema, chamada pela Comissão de Seguridade Social e Família.

Notícia falsa gera uma reação real

Mas um dos fatos mais interessantes sobre o jogo Baleia Azul é que pesquisadores no mundo inteiro apontam que ele surgiu de uma notícia falsa.

No Brasil, o alerta foi feito pela Safernet.

O Baleia Azul, aponta Thiago Tavares, tornou-se conhecido no Brasil após uma reportagem da TV Record no dia 1º de abril, ironicamente, o Dia da Mentira. O diretor presidente da Safernet mostrou a explosão de 1150% nas buscas a respeito do “desafio da Baleia Azul” após a veiculação da reportagem e destacou: os jornalistas não apuraram adequadamente.

Não tentaram, eles mesmos, jogar o Baleia Azul.

Mas a existência do suposto jogo já havia sido desmentida por centros de pesquisas e ONGs pelo mundo, como a britânica UK Safer Net.

Não há registro apurado de suicídio envolvendo o Baleia Azul, na Rússia ou no Brasil, apesar de diversas especulações neste sentido.

A divulgação da existência de um suposto jogo que levava jovens ao assassinato, de forma sensacionalista e alarmista, teria servido sim de gatilho para um efeito de imitação: a mentira se fez verdade a partir de sua veiculação e alguns grupos de jovens em situação vulnerável passaram a se dedicar a fazer bullying online.

O tema é muito delicado. Pensando nisso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) editou um guia com recomendações para o tratamento do tema pela mídia, sugerindo maneiras de como os meios podem atuar na prevenção do suicídio.

Uma das recomendações refere-se justamente ao perigo da veiculação de imagens, trechos de conversas, cartas e outros conteúdos que possam apontar caminhos e formas de cometer suicídio para pessoas que estão vulneráveis.

Segundo a publicação, isso pode gerar um indesejável efeito em cadeia, ao invés de enfrentar o tabu, informar a população e ajudar a prevenir.

Crianças e jovens em situação de vulnerabilidade podem, de fato, ser influenciados pela incitação de práticas de suicídio, mas responder a este problema apontando a mudança nas regras da web é inócuo e problemático, conforme apontado.

A solução é educar – jovens e adultos – para a mídia (e não apenas para o uso de recursos digitais), com compromisso da educação pública neste sentido. Ainda, responder aos anseios de jovens que querem encontrar espaço para se desenvolver nos mais diversos campos da vida.

Eles precisam de mais oportunidade e menos bombardeio de consumo e pressão por sucesso.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes