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Qual a melhor tática para enfrentar o monopólio “Global”?

Vamos voltar ao tema da concessão de funcionamento de emissoras de televisão pelo governo federal brasileiro. Para aqueles que, como eu, percebem que a Rede Globo de Televisão exerce no Brasil o papel de um meio de comunicação oficial, às avessas – isto é, detém um poder de arbítrio sobre a conduta do governo (e do povo que o elegeu), direcionando este governo no rumo da economia neoliberal, e, mais do que isto, legitimando ideologicamente as resoluções governamentais afinadas com o pensamento neoliberal – qual seria o melhor caminho para propor a quebra da concessão do canal televisivo pelo Estado? A cassação, pura e simples, ou a não-renovação da concessão?

Meu argumento central é de que não se pode contar com o aparelho de Estado para qualquer iniciativa neste sentido, pelo menos neste momento, no Brasil. Considero que o governo brasileiro, no nível do Poder Executivo, não tem o mínimo interesse no enfrentamento com a Rede Globo. Ao contrário, o governo Lula, a meu ver, jamais tomará qualquer medida que implique no questionamento da concessão para operação da Rede Globo de televisão. Lula deixa-se pautar pela Rede Globo, pois sabe muito bem que se seguir a cartilha neoliberal não tem com o que se preocupar. E Lula está disposto a avançar, neste segundo governo, no ideário da economia de mercado e do Estado privatizado. Só faltam as reformas da previdência, trabalhista e administrativa para selar o "pacto pelo alto" com o empresariado, enquanto estabelece um "pacto por baixo" com os trabalhadores, através de suas principais organizações.

Mas, e quanto aos trabalhadores independentes que percebem no monopólio, de fato, da Rede Globo uma interferência devastadora sobre a política no Brasil? Em primeiro lugar, não creio que se possa fugir de um certo legalismo no trato da questão. Quer dizer, o tema é constitucional e qualquer campanha que pretenda obter alguma repercussão deve levar em conta este fator.

Então, o que fazer? Ou melhor, como fazer? O mínimo de legalismo que se deve levar em conta é que não se pode caracterizar legalmente, de direito, a Rede Globo como um monopólio. Nós sabemos que ela exerce este papel de fato, mas isto não nos permite avançar juridicamente neste argumento. Afinal, há pelo menos mais meia dúzia de redes de televisão nacionais no país. O argumento do monopólio não serve como mote de campanha anti-concessão. Creio que o argumento capaz de mobilizar diversos setores da sociedade civil em prol do fim da concessão "Global" é aquele de base político-econômica, isto é, que a Rede globo comete irregularidades gravíssimas no âmbito econômico-financeiro e que não honra os seus compromissos frente ao Estado, a sociedade e, por paradoxal que seja, em relação ao próprio mercado capitalista.

Muito se especula que a Globo está envolvida, há bastante tempo, em escabrosas transações financeiras nacionais e internacionais. Para ficar apenas no que já foi publicado a respeito, basta dar uma olhada mais atenta em peças acusatórias do tipo do vídeo "Muito além do cidadão Kane" e do livro "Afundação Roberto Marinho" para se ter uma vaga noção do que ocorre nos bastidores da rede televisiva e, por extensão, das Organizações Globo.

Eu acho que a campanha pelo fim da concessão deveria iniciar-se com apurações e denúncias destas "irregularidades" (na verdade, se comprovadas as acusações, possíveis crimes do colarinho branco). Esta campanha precisa ser massiva, ganhando as ruas, como forma de pressionar o governo federal, o Poder Legislativo, no caso dos dois quintos de votos para a não-renovação e o Poder Judiciário, no caso da necessidade de decisão judicial em prol da cassação da concessão.

Trata-se de movimento tático que visa esclarecer à sociedade o que representa a Rede Globo em termos não só político-ideológicos, mas também econômico-financeiros e como o governo federal se omite diante desta situação e até mesmo compartilha dela, para beneficiar-se do monopólio de fato.

Neste sentido, o primeiro passo para a cassação ou não-renovação da concessão de funcionamento para a Rede Globo seria exigir que ela se enquadrasse nas supostas regras do próprio capitalismo e passasse a ter a conduta que deveria ser a de qualquer empresa privada. Paralelamente, caberia chamar a atenção para o fato de que uma concessão do Estado implica compromissos não só financeiros do concessionário, mas éticos e políticos. No caso da Globo, as "irregularidades" que poderiam levá-la à cassação da concessão também poderiam estar relacionadas a esses outros aspectos.

Enfim, a Rede Globo precisa ser enquadrada legalmente. As "irregularidades" devem ser constatadas por minuciosas investigações. A campanha pública pela cassação ou não-renovação da licença deveria então começar pela cobrança de que órgãos do Estado atuassem no levantamento das prováveis "irregularidades". Caberia à Polícia Federal (que tal uma operação Vênus Platinada?) e ao Ministério Público devassarem os negócios da Rede Globo. Mas para isto é imprescindível que instituições da sociedade civil façam denúncias que, uma vez divulgadas e investigadas, permitam acionar a legislação vigente fazendo com que a não-renovação (via Congresso Nacional) ou a cassação (via STF) possa se viabilizar.

Ainda no plano dos instrumentos legais, o que poderia abreviar a rescisão da concessão seria a revogação do atual dispositivo constitucional pelo qual o concessionário de canais de radiodifusão, diferentemente dos concessionários de outros serviços públicos, não pode ter seu contrato automaticamente rescindido pela simples verificação de irregularidade jurídica e fiscal. Mas, para que isto venha a ocorrer, é necessário que o Congresso Nacional modifique o texto constitucional vigente, o que também envolve uma mobilização dos parlamentares, que não pode ser obtida sem uma grande campanha, capaz de exercer pressão direta sobre o Congresso.

Creio que a pressão direta da opinião pública organizada poderia vir de uma campanha pela não-renovação da concessão, com ampla divulgação dos ilícitos a serem apurados e divulgados. Nessa possível campanha contra o papel monopolístico e para-estatal da Rede Globo, atestado pelos favorecimentos do Estado à concessionária, seria fundamental a participação dos veículos de comunicação alternativa, que defendem a democratização da informação no país. Rádios, jornais, sites, blogs comunitários e alternativos deveriam ocupar a vanguarda da campanha de moralização e democratização da mídia.

Considerando que a mídia grande, como um todo, tenderia a boicotar a referida campanha, a participação efetiva (e não apenas retórica, como ocorre hoje) da mídia alternativa no processo, ajudando a dar nome aos bois e exigindo do Estado um posicionamento à altura do poder concedente, desencadearia fatalmente um processo de mobilização social, por si só, amplamente democrático.

Enfim, não custa relembrar a Chicago dos anos 30, quando Al Capone posava infalível em suas ações. Nada parecia poder detê-lo. A solução veio através de uma medida legalista que a principio não seria capaz de atingi-lo. Como todos sabem, Al Capone foi pego por irregularidades junto ao fisco. Guardadas as devidas proporções, talvez estejamos mais próximos do que parece da obtenção de uma vitória sem precedentes no esforço pela real democratização dos veículos de mídia no país. É uma questão de se encontrar a melhor tática para o enfrentamento.

* Canrobert Costa Neto, Bacharel em Sociologia Política pela Universidade de Brasília, Mestrado em História do Brasil pela UnB, Doutorado em História da América Latina pela Universidade Federal Fluminense, Pós-doutorado em Sociologia Rural pela Universidad de Córdoba, Espanha. Membro do conselho editorial da revista Margem Esquerda. Co-autor do artigo "Das ocupações de terra à reforma agrária no Brasil", revista Margem Esquerda, número 2, Editora Boitempo, São Paulo. Professor, Pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Presidente da Associação de Docentes da UFRRJ (ADUR).


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A imprensa em busca de um novo modelo de negócios

Os grandes impérios jornalísticos da Europa e Estados Unidos começam a mostrar a cara do seu novo modelo de negócios, que marca uma mudança radical em relação ao vigente até agora.

O sintoma definitivo da mudança surgiu há pouco mais de 10 dias quando o Audit Bureau of Circulations (ABC – Burô de Auditoria de Circulação) anunciou a centralização das medições tanto do público da versão online como da versão impressa de jornais e revistas nos Estados Unidos.

A medida é uma vitória dos jornais no esforço para recuperar receitas publicitárias através da redistribuição de anúncios entre suas versões online e offline. Mas a decisão do ABC foi também uma resposta aos indícios cada vez mais fortes de que os grandes conglomerados da imprensa mundial estão conseguindo avançar na definição de um novo modelo de negócios, capaz de garantir a sua sobrevivência num ambiente informativo marcado pela presença crescente da internet. 

O processo, ainda em desenvolvimento, está obrigando as empresas a passar por momentos muito delicados. O The New York Times, por exemplo, apostou na convergência multimídia e depois teve que se desfazer de investimentos na área de televisão. A família Sulzberger, dona do jornal, também teve que abrir mão de parte do seu poder estatutário, por pressão dos acionistas.

Já o poderoso Wall Street Journal, da família Bancroft, apesar de um invejável banco de dados de informações financeiras, não conseguiu avançar na busca de um novo modelo de negócios e está a ponto de ser vendido para o conglomerado News Corporation, do arqui-milionário australiano Rupert Murdoch.

Há várias décadas os grandes jornais, revistas, redes de televisão e de rádio vêm investindo mais em equipamentos de impressão, de transmissão de imagens e sons, de distribuição de material impresso e em pontos de venda do que na produção jornalística. Segundo a American Journalism Review, as redações absorvem menos do que 40% do orçamento das empresas, desde os anos 1960.

O advento da internet provocou uma crise no modelo de negócios da imprensa convencional porque aumentou extraordinariamente a oferta de informações jornalísticas na rede, o que baixou o preço da notícia e conseqüentemente a receita dos jornais.

A crise do modelo convencional teve também outras causas como a queda da credibilidade, a fuga de leitores mais jovens e a resistência à mudança por parte de executivos e editores mais conservadores.

Os grandes conglomerados da mídia mundial estão desmobilizando ativos fixos voltados para a produção de notícias impressas e distribuição massiva de material informativo — como grandes impressoras, edifícios e sistemas de transporte — para investir na captura e gerenciamento social da informação.

Isto implica admitir uma participação crescente do público como provedor de material bruto porque as redes de correspondentes e de repórteres se tornaram muito caras. Os jornais e revistas, por seu lado, não têm muitas alternativas fora da concentração em produção de material qualificado e no desenvolvimento de sistemas, cada vez mais sofisticados e rápidos, de busca do material arquivado.

A adesão a este modelo confirma que os grandes títulos e marcas da imprensa mundial não desaparecerão, como previram alguns futurólogos mais apressados. O The New York Times deve continuar uma grande empresa, mas o seu forte não será mais a publicação de um jornal diário mas, sim, o seu sistema de produção de informações a partir de um arquivo digital de notícias, de analistas de informações capazes de antecipar tendências e identificar processos em curso, e de uma equipe de repórteres investigativos.

Isto significa uma maior qualificação dos jornalistas profissionais, tanto na área técnica (manuseio de equipamentos) como principalmente na sua capacidade de relacionamento com leitores e de análise do material indexado nos bancos de dados.

O retorno da imprensa à sua missão original de produzir notícias para o público obriga as redações a revisar condutas viciadas pela longa convivência com as exigências do mercado publicitário. Os conflitos culturais dentro das redações ainda continuam fortes e retardam a implantação do novo modelo de negócios.

Outra área muito sensível é a da publicidade, tradicionalmente, a grande responsável pela sobrevivência de toda a imprensa mundial. No novo modelo, a publicidade terá que ser repensada de forma radical, mas esta revisão de rotinas e valores ainda está muito atrasada.

A gerência e controle corporativo também devem passar por algumas mudanças traumáticas. Primeiro porque é inevitável uma enorme redução do número de empregados fixos, o que implica a perda de poder da burocracia corporativa. Segundo, porque as famílias, que controlam a maior parte dos grandes jornais mundiais terão que aprender a conviver com pressão dos acionistas por mais descentralização e mais transparência.

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Telebrás, nove anos depois

Passados nove anos do processo de privatização do Sistema Telebras, cabe fazer uma análise sobre como se encontra o mercado brasileiro de telecomunicações. Em 1996, os Estados Unidos aprovaram seu Telecommunications Act, reconhecendo que o projeto de monopólios regionais, criado em 1984, não somente não dera os resultados esperados como deixara as empresas norte-americanas frágeis demais para concorrer com as empresas de outros países ricos. Pois, apenas um ano depois o Brasil aprovou sua Lei Geral de Telecomunicações (LGT) instituindo exatamente o modelo que os Estados Unidos haviam abandonado.

Por este modelo, o Sistema Telebras foi dividido em três operadoras fixas (as atuais Brasil Telecom, Telemar e Telefonica), uma operadora de longa distância (Embratel) e nove operadoras móveis. A Europa e o México também passaram por processos de privatização das suas operadoras de telecomunicações, mas seguiram um caminho diferente do brasileiro. Nestes países optou-se por vender a operação toda, sem fatiar a empresa. E o governo manteve a chamada “golden share”, que lhe permite intervir caso a operadora não atenda às respectivas demandas de políticas públicas em telecomunicações. Em todas elas, houve a obrigação de manter o controle da empresa com o capital nacional.

Em 1996, a Telebras tinha receita operacional de US$ 12,7 bilhões, lucro líquido de US$ 2,73 bilhões, gerava 98 mil empregos e possuía 15,9 milhões de linhas fixas em serviço. Já a Telmex tinha receita operacional de US$ 6,93 bilhões, lucro líquido de US$ 1,53 bilhões, gerava 49 mil empregos e possuía 8,8 milhões de linhas fixas em serviço [1]. Hoje, o dono da Telmex (Carlos Slim Helu) acaba de se tornar o homem mais rico do mundo e 25% do seu faturamento em telecomunicações é obtido em território brasileiro. Já a Telebras…

Com o desmembramento da Telebras, o governo brasileiro gerou o mesmo fenômeno que ocorrera nos Estados Unidos entre 1984 e 1996, mas em proporções ainda maiores. Em um primeiro momento, as empresas resultantes foram compradas por investidores financeiros brasileiros (com a ajuda de dinheiro público, proveniente do BNDES, Previ e Petros, entre outros) e estrangeiros. Em paralelo, os grandes grupos estrangeiros (ancorados no domínio de seus mercados internos) partiram para a compra destas empresas, aproveitando-se da sua pouca competitividade e da necessidade destes investidores realizarem lucros.

Telmex e Telefonica de España têm disputado palmo a palmo o mercado latino-americano e, consequentemente, o brasileiro. Ambas são frutos de processos de privatização, mas realizados de forma diferente da que ocorreu por aqui. No Brasil, a Telefonica é dona da porção paulista da antiga Telebras, de 50% da Vivo (negocia com a Portugal Telecom a compra da outra metade), da TVA (comprada ao Grupo Abril, que não aguentou a disputa) e de uma recém lançada operação de TV via satélite. Já a Telmex é proprietária da Embratel, da Claro e da NET Serviços (a dona da rede de cabos da TV paga da família Marinho).

De brasileiro mesmo só restaram a Telemar e a Brasil Telecom. Separadas elas não têm nenhuma chance de disputar o mercado com suas rivais estrangeiras. Mesmo os antigos adeptos do processo de privatização da Telebras já começam a defender a fusão das duas. Passados nove anos, seria uma tentativa de reverter, mesmo assim só parcialmente, o estrago feito pela venda da Telebras em fatias.

Mas, aqui começa um outro tipo de problema. Estas duas empresas possuem entre seus acionistas algumas raposas velhas, que estão há anos operando privadamente com recursos públicos, graças às suas conexões com os sucessivos governos. O fato deles e de seus políticos aliados estarem defendendo a fusão da Telemar e da Brasil Telecom deve ser visto com preocupação. A fusão deve ser transparente ao ponto de evitar que seus atuais acionistas tenham ganhos desmedidos com a operação. Ao mesmo tempo, devem haver garantias de que, ao final do processo de fusão, a empresa resultante não seja simplesmente vendida para uma operadora estrangeira. Ou seja, Telefonica e Telmex ficariam apenas esperando para adquirir o bolo todo e não somente um pedaço.

Como boa parte do dinheiro colocado no processo de venda destas operadoras é proveniente do Estado, nada mais justo que este Estado tenha um papel de destaque na nova empresa. Não é possível repetir o erro da privatização da Telebras, onde o dinheiro foi público, mas a gestão privada. A presença do Estado, por sua vez, deve se dar a partir de políticas públicas que coloquem esta nova empresa a serviço de duas relevantes tarefas: universalização da banda larga e produção de ciência e tecnologia.

Infelizmente, o governo Lula não tem demonstrado nem a visão estratégica nem a vontade política de construir um projeto nacional para o campo das telecomunicações, que lance mão da presença do Estado para reunir o que sobrou do antigo Sistema Telebras. Sem isso, corremos o risco de assistir as duas últimas peças brasileiras caírem em mãos de grandes grupos transnacionais e assim perderemos de vez o controle sobre a infra-estrutura de telecomunicações do país.

Curioso e triste é o fato de que muitos dos antigos líderes sindicais que lutaram contra a privatização da Telebras, hoje estão no governo, ou bem próximo dele, operando a defesa do modelo fracassado que eles mesmos criticaram.

[1]  – DANTAS, Marcos, "Uma alternativa para as telecomunicações no cenário da 'gloalização': a Brasil Telecom", Comunicação&política, nova série, V. 5, n. 1, jan-abr 1998, pags. 7-48.

* Gustavo Gindre é membro do Intervozes e membro eleito do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

TV pública: programas jornalísticos, sim; atualidades, não

Por mais que a criação de uma TV pública seja acompanhada de um louvável arrazoado de boas intenções em relação ao público a que servirá diante da carência de valores transmitidos pelas emissoras comerciais, o fato é que a primeira preocupação do presidente da República ao conceber a sua TV é a possibilidade de reparar as críticas a seu governo feitas sem a respectiva contrapartida das 'boas notícias'.

Defender-se das críticas, no caso, é desnecessário quando se considera quão bem aquinhoado é o governo Lula no tratamento que recebe da imprensa. Por definição, nenhuma TV pública brasileira será capaz de competir, em repercussão, com o jornalismo dos canais líderes de audiência. Tudo que é estatal (já sei, TV pública não é estatal) tem maior burocracia, menor velocidade, ainda mais quando se trata do negócio televisão, em que tudo precisa ser rápido.O presidente não interferirá na programação, é verdade, até que surja a primeira notícia contrária ao governo, que será considerada 'alta traição'.

Assim costumam reagir os governantes que viabilizam televisões públicas. E o dilema surgirá de imediato na cabeça dos dirigentes dessa TV 'independente', mesmo sem uma manifestação do presidente: ignorar a notícia ou dar a versão 'verdadeira' dos fatos, ou seja, a do governo? O conselho da TV pública, a quem caberia dirimir esse tipo de dúvida, estará a léguas de distância quando isso acontecer. Mesmo que se reunisse em emergência, sabemos que o camelo foi projetado por um conselho ao tentar desenhar um cavalo.

A verdade é que o jornalismo 'hard news', o de notícias quentes, principal razão da existência da nova TV pública, não é solução adequada a esse gênero de televisão. A PBS americana,por exemplo, não tem telejornal. Em primeiro lugar, porque o volume de recursos para fazer um jornalismo completo é enorme.

Na TV Cultura de São Paulo, por exemplo, aproxima-se de 40% do orçamento, mesmo para um telejornal limitado, com 1% de audiência. Portanto, quando o senhor presidente desejar redargüir uma informação de uma TV comercial, vai competir em enorme desvantagem com ela. Seus pronunciamentos mais importantes não poderão prescindir da veiculação paga nos canais de maior audiência.

Uma TV pública bem-sucedida pode almejar 10% de audiência, no máximo. Jamais 50%. Em geral, tem de um a três pontos, o que é normal para uma TV que procura melhorar o nível do cidadão: o povo liga a TV para se divertir, não para aprender. A última observação, não menos importante, é que a cabeça do jornalista que trabalha na elaboração da notícia naTV pública passa por um processo psicológico progressivo, em que ele julga ser independente, dono do pedaço, uma vez que a TV não tem dono, ao contrário dos seus colegas das TVs comerciais, que sabem muito bem até onde vão os interesses de suas empresas, gerando uma auto-restrição voluntária nas pautas e textos por puro bom senso, sem que ninguém lhes precise ditar quais as diretrizes do canal em que trabalham. Então, a primeira crise da TV pública terá início quando for percebido que ela tiver sido mais crítica em uma notícia relativa ao governo do que as emissoras comerciais que cobriram o mesmo fato.

De outro lado, a TV pública poderá ter papel fundamental no esclarecimento do que seja o espírito de cidadania de que o Brasil carece e as TVs comerciais ignoram. Além disso, a programação educativa 'lato sensu', a que a Constituição obriga, podeser também suprida pela nova televisão, desde que de forma criativa e com uma imagem bem iluminada. Nesse sentido, se o senhor presidente quiser fazer um teste, pode comparar a imagem da TV Globo com a de outras emissoras.

Terá vontade de ficar na Globo, não importa qual o programa, sóporque televisão é iluminação, como condição prévia para que seja possível analisar a que programa desejamos assistir. Agora basta fazer o mesmo teste de luminosidade com as TVs públicas ou estatais que estão no ar. É como se alguém apagasse o abajur da sala. Na área jornalística, há um caminho aberto para a TV pública: os programas jornalísticos, incluindo documentários.

Ninguém faz quase nada nessa área, pois são programas difíceis, demorados de produzir, caros, elaborados e exigem profissionais preparados, do tipo que se encontra mais na imprensa escrita quena televisiva, salvo honrosas exceções. À falta de programas jornalísticos, a TV pública entrará no lugar-comum das coberturas no Congresso e no Executivo, onde já existem cerca de 15 microfones, à cata da mesma notícia. Nesse caso, o 16º microfone estendido nas entrevistas coletivasserá o da TV pública, para uma repetição redundante e enfadonha da mesma notícia, com o diferencial exclusivo da falta de audiência. Em resumo: programas jornalísticos, sim, notícias de atualidade, não (exceto o mínimo previsto por lei).

O restante da grade de programação seráfácil de compor, partindo de bons exemplos que as TVs públicas e estatais do Brasil já desenvolveram e com a qualidade dos profissionais preparados para essa missão nobre. Como Franklin Martins, ministro da Comunicação Social, e Florestan Fernandes, hoje a serviço da TV pública.

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Fascismo midiático, TV Globo e paparazzi: tudo a ver

A TV Globo mais uma vez se vê envolvida num episódio que merece uma reflexão profunda. Câmara escondida e invasão de privacidade com o visível objetivo de atingir uma pessoa com nome, endereço e posição política definida. Na verdade, o que foi feito com Marco Aurélio Garcia, assessor internacional do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, é um exemplo típico de fascismo midiático.

Pior ainda: a Globo foi repercutir o gesto de Garcia, um gesto sem fala e sem que se possa afirmar com precisão a que estava relacionado, embora em princípio fosse atribuído a divulgação de uma informação pela própria Globo de um defeito no avião sinistrado da TAM, o que tira a culpa do governo pela tragédia. Acabou virando uma verdade absoluta, sem nenhum tipo de contestação, só pelo fato de a emissora de maior audiência do país ter decidido divulgar.

Dois políticos foram escalados para comentar o top-top de Garcia – os senadores Pedro Simon e Jefferson Péres. Simon, com o seu estilo teatral de sempre, criticou o que ele considerou uma comemoração, enquanto Peres, ao velho estilo udenista que o caracteriza, seguiu a mesma linha e disse que o gesto de Garcia representava uma afronta ao povo brasileiro. De quebra, o pessoal da Globo foi ouvir um parente de uma das vítimas da tragédia do avião da TAM no aeroporto de Congonhas, que também fez duras críticas ao autor do gesto.

No caso de Marco Aurélio Garcia, como se trata de uma figura polêmica cujas posições em matéria de política externa desagradam os setores conservadores, a TV Globo aproveitou para queimar a imagem do cidadão, ainda mais em um momento que os brasileiros estão chocados e impactados com a tragédia aérea. Só faltou a TV Globo, como estão fazendo outros veículos, ter acionado alguém para pedir a exoneração do autor do gesto.

Ética no jornalismo

É o caso de se perguntar: se alguém vinculado ao conservadorismo fosse flagrado, como foi Marco Aurélio Garcia, a direção da Globo, leia-se Carlos Schroeder e Ali Kamel, autorizaria a divulgação escancarada da imagem? No momento que os jornalistas vão discutir o Código de Ética nos próximos dias 3, 4 e 5 de agosto em um congresso extraordinário da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o episódio serve para se refletir sobre o tema.

Senadores como Pedro Simon e Jefferson Péres deveriam, isto sim, pensar duas vezes antes de aparecer nos tais cinco minutos de fama que o Jornal Nacional oferece aos políticos, sobretudo àqueles que defendem posições muito próximas aos interesses da mídia conservadora.

Quanto ao acidente aéreo propriamente dito, mais uma vez a mídia tentou, de uma forma equivocada, fazer um julgamento precipitado sobre as causas da tragédia. Antes de mais nada, os principais jornais brasileiros já tinham escolhido o governo federal como o principal culpado. Não se trata de criticar ou aplaudir este governo, que, por sinal, é um dos mais ambíguos da história brasileira, mas aí é outra história. Mas, de antemão, apontar o governo como culpado de uma tragédia, sem nenhuma base técnica, isto tem um nome: manipulação da informação – algo que os meios eletrônicos, sobretudo, têm feito com muita freqüência de uns anos para cá.

Quanto a Marco Aurélio Garcia, não é de hoje que a mídia conservadora tem feito marcação cerrada sobre ele. O colunista Augusto Nunes, do Jornal do Brasil, numa ocasião chegou a mencionar a precariedade da dentição de Marco Aurélio ao criticá-lo. Mas, até aí, como tal comentário só mostra o baixo nível jornalístico do colunista, não há grandes problemas. É um direito que assiste ao jornalista se ocupar dos dentes de Marco Aurélio, em nome da liberdade de expressão… Até porque o Brasil lidera o ranking mundial dos desdentados, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de acordo com revelação feita pelo cirurgião buco-maxilo-facial Fabio Guedes.

Quando uma emissora de televisão coloca um cinegrafista clandestino para invadir a privacidade do assessor internacional de Lula, ainda mais o gesto filmado sendo comentado com a maior naturalidade, com o visível intuito de queimar Marco Aurélio Garcia, o fato se torna grave. Não é uma questão de liberdade de expressão, mas, como se dizia antigamente, de jornalismo marrom. Muitas vezes na Europa, os paparazzi – os tais fotógrafos que se escondem para bater uma foto sensacional em um momento de privacidade de alguma figura pública, ator, atriz, jogador de futebol, autoridade ou político – perdem processos milionários na Justiça, exatamente porque os magistrados consideram a imagem colhida como invasão de privacidade.

Trata-se, isto sim, de uma corrida desenfreada atrás de audiência. Muitos órgãos de imprensa embarcam nesta canoa aética e publicam as fotos com grande destaque. Quando perdem ações na Justiça, na Europa ninguém é acusado de tolher a liberdade de expressão, um conceito utilizado a todo o momento pelas grandes empresas de comunicação que se sentem autorizadas a fazer o que bem entendem, seja invadindo clandestinamente a privacidade de alguém, seja montando imagens ou simplesmente utilizando meias verdades e mentindo. Até mesmo quando apóiam golpes de Estado e são advertidos ou punidos por isso, os meios eletrônicos botam a boca no trombone em nome da liberdade de expressão. E quando perdem o direito de ter renovado o canal, aí nem se fala.

Às favas com a ética

A TV Globo, ao apresentar a imagem de Marco Aurélio Garcia, simplesmente repetiu o que os paparazzi fazem diariamente em nome de um jornalismo para lá de discutível.

No caso em questão, vale repetir, a emissora de maior audiência do país, ao se sentir ameaçada no telejornalismo por uma outra emissora concorrente, faz o possível e o impossível para ganhar mais pontos no Ibope – pois, afinal de contas, precisa a qualquer custo manter o primeiro lugar. Da mesma forma como o então ministro Jarbas Passarinho mandou "às favas os escrúpulos" ao votar, em dezembro de 1968, favoravelmente à decretação do AI-5, os diretores da Globo mandaram a ética jornalística às favas. Fizeram a opção pelo fascismo midiático. Os senadores Simon e Péres, consciente ou inconscientemente, embarcaram no esquema. O parente de uma das vítimas da tragédia com o avião da TAM foi envolvido na base da emoção.

É bom tirar algumas conclusões sobre o episódio, que deve servir de alerta para os homens públicos deste país atentem sobre até que ponto uma emissora de televisão tudo pode, impunemente. Se, amanhã, alguém que se sinta ofendido com a invasão de sua privacidade entrar na Justiça, como fazem os atingidos pelos paparazzi, aí, podem crer, haverá uma grita orquestrada em favor da liberdade de expressão. E a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) será acionada por algum big shot midiático.

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