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Haverá espaço no UHF para a TV não comercial?

O senso comum afirma que a TV digital permitirá a ampliação do número de canais de televisão disponíveis para a transmissão. Mas, a história pode não ser bem essa.

A TV digital não utilizará os canais do VHF (2-13) e até o momento não se sabe o destino desta faixa de espectro quando as transmissões analógicas forem desligadas. O canal 37 do UHF também não pode ser utilizado pela TV digital, por estar reservado para a radioastronomia. Alguns canais do UHF já estão ocupados por transmissões analógicas. E vários outros canais do UHF não poderão ser utilizados por sofrerem interferência das transmissões analógicas (que perdurarão por, no mínimo, dez anos).

Por fim, e graças ao Decreto Presidencial 5820/06 [1], cada emissora atualmente no ar ocupará, durante estes dez anos, dois canais: um analógico e outro digital.

Feitos todos estes descontos, nos grandes centros urbanos praticamente não haverá espaço para novas emissoras. O fato é especialmente preocupante se lembrarmos que existe uma demanda do chamado “campo público” para garantir que suas emissoras tenham espaço na TV aberta. São as TVs comunitárias, as TVs universitárias, a TV Justiça e os canais legislativos (TV Senado, TV Câmera, TVs de assembléias legislativas e TVs de câmaras de vereadores).

Na prática, estas emissoras só terão espaço no UHF se o governo decidir reincorporar a esta faixa do espectro os canais localizados entre o 60 e o 69. Atualmente, estes canais são reservados para que as emissoras façam o enlace terrestre entre uma geradora e suas repetidoras ou retransmissoras. Este serviço chama-se RpTV, funciona a partir de autorizações precárias e de duração indeterminada. Sua regulamentação está amparada em um simples Decreto Presidencial (3.451/2000 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3451.htm).

A proposta de incorporar os canais 60 a 69 na faixa da TV digital [2] tramita na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e de acordo com o site da agência (http://sistemas.anatel.gov.br/sicap) o processo (n° 53500.003655/2007) está em análise pelo conselheiro Pedro Jaime.

Cabe acompanhar com toda atenção a tramitação deste processo. Dele, em grande parte, depende o futuro da TV aberta não comercial [3].
 


[1] – Aqui, de uma vez só, foram cometidos dois absurdos. O governo entregou um canal inteiro para cada emissora, negando o fato de que este mesmo espaço, na transmissão digital, comporta várias programações simultâneas. E o mesmo governo conferiu prioridade às atuais emissoras, deixando para os novos canais a necessidade de lutar por um espaço cada vez mais raro.
[2]  – Alteração do Regulamento sobre Canalização e Condições de Uso de Frequências para os Serviços Auxiliar de Radiodifusão e Correlatos, Especial de Repetição de Televisão e Especial de Circuito Fechado de Televisão com Utilização de Radioenlace para destinar o segmento de 746 MHz a 806 MHz (canais 60 a 69 do UHF) à execução do Serviço de Radiodifusão de Sons e Imagens em caráter primário e à execução do Serviço de Repetição de Televisão em caráter secundário.
[3]  – Que provavelmente ficará relegada a este gueto, no final dos espectro da TV. Enquanto às emissoras comerciais poderão usufruir dos canais mais nobres do UHF.

O jornalismo e o espetáculo da mídia

“O que a senhora está sentindo?” – pergunta o repórter à mãe angustiada, na noite de 17 de julho, em busca de alguma notícia sobre a filha, supostamente embarcada no trágico vôo JJ 3054 da TAM. A câmera, implacável e pornográfica, permanece fixa sobre o rosto da pobre senhora. A TV não pode perder nenhum detalhe daquela dor. O que importa se a pergunta é estúpida e se a resposta é mais do que óbvia? Não se trata, aqui, de obter esclarecimento algum, nem de divulgar alguma informação nova. Ao contrário. Trata-se de reiterar, de repetir, de confirmar tudo aquilo que já se sabe e se conhece. Trata-se de um novo capítulo da fotonovela da vida real, um Big Brother muito mais intenso, hipnótico e perversamente sedutor. Numa palavra: sensacional.

Que as emissoras de televisão queiram explorar a dor alheia para catapultar os índices de audiência, e com isso aumentar o valor de cada segundo investido em publicidade, em nome do faturamento e lucro, isso é fácil explicar e entender (embora nem tanto justificar ou defender). Um pouco mais difícil é perceber o que querem os telespectadores que se deixam seduzir pelas imagens  da miséria nossa de cada dia.

Os telespectadores gozam com o espetáculo da dor, por verem projetados os seus próprios medos, anseios, desejos, vontades, ódios, sejam eles conscientes ou, ao contrário, enterrados, reprimidos e recalcados nas camadas mais profundas da argamassa psíquica que o bom e velho Sigmund qualificou como inconsciente. A tela serve de palco ao teatro mais íntimo de cada um. Na segurança de sua casa, o telespectador pode vivenciar, por meio do outro, as suas angústias e prazeres sem realmente se expor aos perigos que a vida oferece.

Esse mecanismo de projeção ajuda a entender, por exemplo, o pânico que se apossou de São Paulo na famosa  segunda-feira, 15 de maio de 2006: alarmadas por notícias sobre ataques do PCC, milhões de pessoas voltaram mais cedo para suas casas. O comércio fechou, tudo parou. Como explicar o frenesi maluco que tomou conta da população? Uma primeira interpretação surge fácil: a culpa foi da televisão, que exagerou nas notícias sobre a intensidade da guerra entre a polícia e o PCC. Mas não é tão simples. Claro que a televisão ajudou a disseminar o clima de “fim de mundo”. Mas não foi ela que criou o pânico. Ele já estava instalado, apenas à espera da ocasião propícia para eclodir.

É mais fácil ver isso retrospectivamente, quando pensamos em outros processos de histeria em massa. O mais célebre deles, provavelmente, aconteceu nos Estados Unidos, em 30 de outubro de 1938, com a transmissão radiofônica da “guerra dos mundos”, por Orson Welles. Às vésperas da “noite das bruxas” (Halloween), Welles anunciou aos 6 milhões de ouvintes da rede CBS que o país sofria uma invasão de marcianos.  O roteiro era baseado na ficção escrita por H. G. Welles. A audiência  ignorou o aviso de que se tratava de uma brincadeira. Resultado: milhões de pessoas que viviam no campo entupiram rodovias rumo às cidades mais próximas, e vice-versa; gente saiu às ruas aos prantos.

A comoção foi produzida pela sensação de insegurança que então atormentava o cidadão médio estadunidense. O país ainda sentia os efeitos da Grande Depressão, que, em 1929, havia destruído a economia, o american dream. As instituições políticas e econômicas estavam em frangalhos, o desemprego atormentava milhões de famílias e os tambores da guerra soavam no outro lado do Atlântico.

Guardadas as devidas proporções e relativizações históricas, o cidadão brasileiro médio de 2006 (como o de hoje, aliás) tampouco podia esperar muito das instituições públicas, especialmente após o “mensalão” e os sucessivos escândalos de corrupção. Ninguém podia confiar nos sistemas públicos de saúde, ensino, previdência, segurança. Mesmo o brasileiro de classe média sabia que a crescente concentração de riqueza tornava a vida cada vez mais cara e o futuro cada vez mais incerto. Quem pode hoje, com tranqüilidade, pagar o estudo de vários filhos, os planos de saúde de pais idosos e ainda salvar algum para garantir a aposentadoria? Na favela, onde grupos de policiais coexistiam com o narcotráfico, o conflito entre polícia e o PCC não apareceu como uma luta entre forças da ordem contra o caos, mas sim como uma guerra entre bandos organizados, e a população bem no meio, sem proteção alguma.

O pânico de São Paulo teve como ingredientes a frustração com o passado, a perplexidade face ao presente e o medo do futuro. A televisão não criou, mas explorou isso tudo, como faz hoje, por exemplo, no Morro do Alemão carioca.

Os meios de comunicação sabem, portanto, que o sensacionalismo oferece uma via fácil para aumentar a audiência. E o público, por sua vez, espera que os meios alimentem suas fantasias cotidianas. Cria-se uma rede complexa de cumplicidade. E é precisamente essa teia de cumplicidade que torna tão complicada a discussão sobre a responsabilidade social dos meios de comunicação. De um lado, é obviamente condenável a atitude estúpida e desumana de explorar a dor de uma mãe perplexa com a notícia sobre a possibilidade da súbita morte de sua filha. Por outro lado, a audiência pede mais.

Essa equação só pode ser resolvida pela intervenção de um parâmetro que se coloca, ao mesmo tempo, acima dos interesses pecuniários das emissoras e das paixões e anseios dos telespectadores: o bem púbico. Historicamente, desde os tempos em que a invenção de Gutenberg serviu aos propósitos militantes de Martinho Lutero, a construção da imprensa e dos meios de comunicação constituiu-se dado inseparável da formação da esfera pública e da sociedade civil. Em nome do interesse público, grupos privados de mídia obtiveram a permissão de explorar as ondas que percorrem o espaço público, mediante a condição (inscrita na Constituição dos estados democráticos ocidentais) de produzirem uma programação que eleve o nível cultural da população, dignifique o cidadão, produza uma informação confiável e equilibrada.

Se, com o passar do tempo, o interesse privado acabou se sobrepondo ao público, operando os meios de comunicação mediante prática exclusivamente comercial, isso pode e deve ser mudado. Em nome do interesse púbico, é mais do que legítimo pensar num código de ética e normas que rompa a nefasta relação de cumplicidade entre meios e público cimentada pelo sensacionalismo e pela exploração baixa das paixões privadas.

Como fazer isso é outro problema, que cabe à própria sociedade, democraticamente, resolver. Não será uma tarefa fácil, dada a tremenda oposição oferecida pelos próprios meios, como se observa em cada tentativa de se regulamentar, minimamente que seja, a rede de programação. Mas é uma tarefa necessária, do ponto de vista da real democracia.

TV pública: Belluzzo e o conselho de compadres

Informam jornalistas bem relacionados que Lula já definiu: Luiz Gonzaga Belluzzo, economista filiado ao PPS, aspirante à presidência da Sociedade Esportiva Palmeiras e um dos sócios da revista Carta Capital será o presidente do conselho curador da empresa mantenedora da futura TV Brasil (e da estrutura herdada da Radiobrás e da TVE). Dizem que Belluzzo foi escolhido porque, entre outras razões, “tem bom trânsito no PSDB, o que vai fazer com que a iniciativa não seja tachada de governista”.

Por ora, o mais importante não são as credenciais de Beluzzo. É um nome respeitável, dirão uns. Para outros, não deve entender nada de comunicação. Entende? Não sei. O fato é que o próprio diz ter estranhado que o convite tenha sido feito a um economista. O mais relevante, por hora, não é saber se Belluzzo tem ou não os requisitos necessários à função. Importa mesmo é saber como será o modelo de gestão da nova estrutura de comunicação.

Noticiou a Folha de S. Paulo em 6/9 que Belluzzo “recebeu carta branca do presidente para indicar os demais nomes do conselho” e que já estava pensando em nomes como o rapper MV Bill, o documentarista Eduardo Coutinho e a escritora Nélida Piñon, entre outros.

Um conselho de compadres?

Se Lula deu mesmo “carta branca” para que Belluzzo indique os outros membros do conselho, o projeto para o modelo de gestão da TV Brasil é muito pior do que o imaginado. Semanas antes, importantes organizações da sociedade civil já haviam se manifestado contra a possibilidade do presidente indicar a totalidade dos membros do conselho, que tem por finalidade zelar pelo cumprimento da missão pública da nova instituição.

Ao ouvir as críticas das organizações sobre a indicação do conselho pelo presidente da República, os assessores da Secom apressavam-se em dizer que não havia “nada mais legítimo” do que os “60 milhões de votos” que Lula havia recebido. O argumento, apesar de ignorar o significado maior do termo “público” aplicado à comunicação, faz sentido, mas caberia melhor se o governo assumisse tratar-se de uma TV estatal (apesar de não intencionar usá-la como instrumento de propaganda oficial). Mas o que dizer se Belluzzo tiver a prerrogativa de indicar o conselho da nova empresa? Quem lhe concedeu mandato? Os mesmo 60 milhões? Certamente não. Não custa lembrar que Belluzzo gostaria que José Serra fosse o presidente da República, não Lula. E, se já é paternalista a idéia de alguém (mesmo que seja o presidente eleito) escolher quem representa a sociedade, o que dizer se essa escolha ficar na mão do próprio presidente do conselho?

Se o que noticiou a Folha for um fato, Franklin Martins e Lula não só não deram ouvidos às organizações, como fizeram pior: Beluzzo formará o “seu time”, a partir de critérios que lhe parecerem os mais convenientes. Neste caso (o do presidente do conselho indicar os demais conselheiros) melhor seria se o órgão não existisse, pois não serviria para absolutamente nada.

Afinal, por que MV Bill e não Mano Brown ou Rappin Hood? A pergunta – que alguns podem entender como uma ironia – esconde algo nada engraçado: se as notícias estiverem sendo fiéis aos fatos, a autonomia da nova instituição será morta antes mesmo de nascer. Neste caso, daremos parabéns ao governo pela reforma da TV estatal. E seguiremos aguardando o nascimento da TV pública brasileira.

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Agência Brasil: notas sobre a construção de um jornalismo livre

"O que a Radiobrás está fazendo agora é extremamente importante para o movimento internacional do Creative Commons, porque é uma instituição de credibilidade que está reconhecendo que o verdadeiro valor de sua contribuição para a cultura é dar ao povo acesso a conteúdos nos quais ele possa aprender e utilizar no próprio trabalho criativo. Acho que o Brasil está, mais uma vez, ensinando ao resto do mundo algo importante sobre o que a criatividade pode significar nesse meio", afirmou Lawrence Lessig, autor de Free Culture (Cultura Livre – Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei Para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade) e criador das licenças Creative Commons, em entrevista a Roberto Romano Taddei, um dos co-autores do projeto de reformulação editorial da Agência Brasil, durante o ISummit."

Imagine-se sentado no sofá de sua casa. Você segura, em suas mãos, seu controle remoto. À sua frente, encontra-se o aparelho de televisão. Você assiste a um programa de entretenimento, mas sabe que dentro de instantes terá início, dois canais adiante, um importante telejornal. Você pega seu controle remoto, aponta para a sua televisão e aperta os botões que trarão o jornal ao seu sofá.

(corta)

Na televisão, nada de notícias. Apenas uma tela preta com um texto em branco: A SUA TELEVISÃO NÃO POSSUI OS REQUISITOS RECOMENDADOS PARA EXIBIR ESSE PROGRAMA.

Nesse exato momento, você descobre que não pode assistir ao telejornal porque seu aparelho de televisão é incompatível com a emissora proprietária do telejornal, pois esta mantém acordo com outro fabricante. Parece ficção. Não é.

(corta)

Isso seria difícil de ocorrer no mundo analógico da comunicação, mas é mais comum do que você imagina no mundo digital. Estamos vivendo um paradoxo contemporâneo, bem ao sabor desta era em que promover a liberdade e fazer a guerra não são tarefas antagônicas. Uma época que permite a um conglomerado defender a liberdade de expressão e utilizar uma plataforma tecnológica excludente – que justamente impede a expressão livre.

(corta)

Saindo da abstração: tente, rodando qualquer distribuição Linux (Ubuntu, Susy, Debian), acessar os vídeos da Globo: os gols da rodada, as cenas do último capítulo da novela, uma reportagem do Jornal Nacional. Aliás, tente acessar usando o Firefox no seu Windows. Uma caixa cinza irá informá-lo que seu computador não possui os requisitos mínimos. Quais são eles? Rodar Windows. Ou seja, para ver a Globo é preciso ter o Windows no computador. Senão, nada feito.

A contradição está posta. A Globo, neste caso, é apenas representante de um universo proprietário refratário à liberdade do conhecimento. Os exemplos são muitos e invadem todas as áreas que você pode imaginar, dos direitos autorais às políticas de recursos humanos, inclusive o jornalismo. E é por isso que estamos aqui.

Qualquer tentativa de restringir, cercear ou censurar o livre fluxo de produção e transmissão de informações é atentar contra o direito que todo o cidadão tem de informar e ser informado: o direito que todos temos à comunicação. Na lata, assim, o raciocínio soa abstrato, mas quando pensamos nos exemplos, ele se revela concreto.

1 + 1 = utilizar plataformas tecnológicas proprietárias é cometer um atentado contra a liberdade de expressão e o direito à informação e à comunicação.

Não é à toa que os principais promotores dos softwares proprietários no universo do jornalismo são conglomerados que emergiram do velho mundo da comunicação.

Essa opção que fazem os promotores da globalização midiática pela propriedade e pela exclusão é ideológica. E quando não é claramente ideológica, reproduz a lógica planetária organizada sob os auspícios do capital e da propriedade privada. São grupos que defendem a propriedade porque sabem que, por trás do uso de um software de código aberto, há um olhar que projeta um outro mundo onde não cabem corporações, nem cercas.

Utilizar software livre – ou mesmo permitir que um usuário de software livre acesse seus conteúdos – é indiretamente participar desse movimento em essência humanista e anticapitalista. Isso, de forma alguma é aceitável. Afinal, como um latifundiário pode ser favorável à reforma agrária?

Por isso, eles dizem na cara, com todas as letras – não importa o quanto essa afirmação seja excludente: aqui só se utiliza Windows. Quanto ao usuário de um sistema alternativo? Se você for um desses e quiser ter acesso aos bens que eu produzo (principalmente ao meu mais saboroso entretenimento), desista do software livre.

(No ringue: Pingüim, Richard Stalmann e Jon Mad Dog x Deborah Secco, gol do Obina na final e William Bonner. Afinal, o que o usuário comum quer mesmo?)

Deste lado aparentemente frágil, no entanto, está a força da comunidade e da colaboração. A força da partilha. Só se vence o movimento conservador com mais e mais liberdade. E com regulação – para que todos possam ser livres.

Só se vence ampliando a oferta e educando para o novo mundo: com a Wikipedia, com blogs e mais blogs, com práticas radicais de jornalismo-cidadão, com a liberação dos conteúdos para que todos possam produzir, alterar, modificar, recriar, reprocessar, reproduzir, amplificar, massificar, distribuir…

E nós podemos vencer. Repare quem lidera o ranking de audiência de notícias e informações, auferido pelo Ibope Net Ratings, em abril de 2007: a Wikipedia, a enciclopédia colaborativa desenvolvida com tecnologia wiki. Na rede, a Globo é segunda colocada.

Agora, para efetivamente neutralizar a ideologia da propriedade é preciso estruturar um vetor mobilizador que demonstre ao usuário a verdade: no mundo da internet, o que você vê, na interface gráfica, é tão importante como o que roda no ambiente dos códigos. Se este não for livre, a liberdade vivenciada é apenas aparente: é a liberdade que usufrui um tigre nascido em cativeiro, que conhece tudo dentro dos limites de sua cela, mas jamais foi a uma caçada.

De posse dessas informações, o usuário terá duas opções. Isso já basta.

(Contra o atraso: mais liberdade e mais ideologia) 

Não basta defender o software livre porque ele é uma opção economicamente mais viável. Isso é conseqüência. Há de se defender o software livre porque só ele permite que o conhecimento circule, que a troca ocorra, que a sociedade acumule. 

Em relação à economia que o software livre gera, isso até o grande capital é capaz de assimilar. Não fosse assim, os grandes grupos não se preocupariam em produzir páginas de informação compatíveis com o Firefox, as quais, durante muito tempo, não rodavam em outro navegador que não o Microsoft Internet Explorer. 

A qualidade do Firefox levou uma série de usuários comuns a utilizá-lo, o que – por critérios de mercado – vem forçando os defensores da propriedade a aceitá-lo. Mas isso é mercado. Ok, é um deslocamento. Uma assimilação. É sempre bom produzir bons produtos, mas muito mais importante é manter aberta e limpa a via para o desenvolvimento da liberdade e da comunicação.

Uma experiência: hackeando e recriando o Estado

Essas idéias, todas, não são abstrações. São aplicáveis. Seria de se perguntar: nada mais careta que agências de notícias, produtos da segunda revolução industrial, certo? Errado. No caso do Brasil, a Agência Brasil é hoje uma promotora da nova comunicação.

Do software à notícia, tudo ali é livre, radicalmente livre. E isso é bom explicar:

A técnica

1. O sistema de gerenciamento de conteúdo foi todo desenvolvido pela equipe de tecnologia da informação da Radiobrás utilizando como base o Plone/Zhope, um CMS (Content Management System) livre que é a coqueluche entre os desenvolvedores mais progressistas. Foram feitas customizações e devolvidas à comunidade software livre. O que é de um é de todos.

2. A fonte utilizada no design, a Bitstream Vera, é uma família Open Source, licenciada em GPL. A licença de uma família básica como a Garamond, completa, custa mais de US$ 250 para uso em um único sistema operacional. Além disso, ela não é sua. Você não pode mudá-la, comercializá-la, apenas utilizar, por um período.

3. Os servidores rodam Apache (o melhor e mais importante software de manutenção de servidores, cujo código é livre), totalmente seguros, justamente por isso. Na redação, também não se utiliza mais o pacote do Office, nem o Internet Explorer e muitos dos desktops, inclusive o meu, rodam Ubuntu.

4. As ferramentas de streaming (tecnologia que permite a um usuário assistir a um vídeo pela internet) são em código-aberto, assim como os padrões para os formatos de áudio e vídeo. Todos, por isso, podem ser facilmente reutilizados, reprocessados, redistribuídos, modificados…

5. Todos os conteúdos produzidos em texto, foto, áudio, vídeo e infográficos animados são licenciados em Creative Commons e podem ser baixados, retrabalhados e utilizados em produtos comerciais ou não por qualquer cidadão brasileiro ou qualquer outra pessoa no planeta.

A ética

A técnica operou uma grande mudança, que não seria tão radical se o jornalismo praticado pela empresa continuasse a ser chapa-branca, autoritário e careta. De 2003 para cá, realizamos um deslocamento que pôs fim à agência de notícias oficial e governamental e abriu uma via ondulante para a comunicação efetivamente pública, com foco no cidadão, não no consumidor.

A missão da Agência Brasil, que é também a missão da empresa na qual ela está inserida, a Radiobrás, é contribuir para a universalização do direito à informação e à comunicação. O que só pode ser feito – disso nós não temos dúvida alguma – por meio de um jornalismo objetivo e apartidário, de qualidade elevada, desafiador, original, inovador e envolvente.

Se você acessar a agência, encontrará informações sobre a pauta política nacional, as ações dos governos e a relação destes com as demandas sociais. Também será informado sobre o nosso Congresso Nacional, as Relações Exteriores, a Justiça, a participação da sociedade nos conselhos e organismos do Estado. Terá, por fim, acesso a um conjunto de conteúdos sobre os movimentos sociais e sobre a cidadania, organizada ou não.

Nenhum assunto é proibido, mas todos recebem um "enquadramento" específico – e isso distingue a emissora do conjunto dos meios que oferecem informação à sociedade.

Nesse jornalismo, o cidadão e a cidadã são protagonistas. E as notícias são apresentadas de forma contextualizada e interligadas a processos. Ou seja, os fatos da agenda diária são noticiados a partir de sua história, das circunstâncias em que ocorrem e das expectativas que colocam para o futuro.

Mas ainda dá para avançar muito mais

A radicalização dessa proposta desenvolvida nos últimos quatro anos depende de uma evolução conceitual que fatalmente levará o jornalismo a abandonar a condição de feito para o cidadão para assumir-se feito pelo cidadão (se não diretamente, no desenvolvimento de uma parceria produtiva cidadão-jornalista).

Como afirma Dan Gilmour, autor de We the Media, texto que já se tornou um clássico ao sintetizar os fundamentos do que nos Estados Unidos recebeu o nome de jornalismo-cidadão (jornalismo produzido pelo usuário, não por um profissional da notícia), tornou-se menos uma palestra e mais um diálogo.

Esse novo jornalismo é uma conversa que se desenvolve nas ágoras virtuais, lugares em que a população – por décadas educada a apenas consumir informação – toma posse dos conteúdos informativos e reprocessa-os criticamente.

A opção que fizemos na Agência Brasil – de nos integrarmos a essa infinita conversa global, provendo o cidadão de textos, fotos, áudios, vídeos, infográficos livres e permitindo a viagem desses conteúdos pela web gerando novos produtos, sentidos e histórias – aponta para a estruturação de um novo modelo de organização, aberto e livre, baseado no valor de uso, e não no valor de troca mercantil da notícia.

Neste cenário, o valor da informação é diretamente proporcional à necessidade de estar bem informado. Na sociedade do conhecimento, onde estar bem informado é fundamental para construir o futuro e atuar de maneira autônoma no espaço público (inclusive no mercado), quanto custa a informação?

Custa muito, mas pode – e deve – ser gratuita.

Além do mais, a Agência Brasil, antes isolada em suas buscas internas, passou a participar de uma rede mundial colaborativa que produz avanços diários. Não foi uma nem duas vezes que, com base em uma necessidade gerada pela dinâmica da produção de informação, procuramos a comunidade e nela encontramos uma solução exata para as nossas necessidades.

Realizar isso custou o preço de termos gente qualificada para pensar soluções criativas. Hoje, produzimos tecnologia, conhecimento e inovação. E tudo isso pode ser auditado por qualquer um. O código-fonte das nossas idéias está aqui, aberto, para ser analisado, escrutinado, avaliado. Buscando construir um jornalismo que seja livre, do software à notícia.

Active Image Observatório da Imprensa.

Código Brasileiro de Telecomunicações: a História sem “Bem” nem “Mal”

Passados 45 anos de sua promulgação, o Código Brasileiro de Telecomunicações ainda desperta polêmica. Nas últimas semanas, que marcaram o aniversário do CBT, a importância atual do marco foi debatida, neste Observatório, por pelo menos dois artigos – um de Venício A. de Lima ("45 anos do CBT: Sem festas, nada a celebrar") e outro de autoria de um dos autores deste texto ("De volta para o futuro, 45 anos depois"). É curioso que, em manifestação recente, Walter Vieira Ceneviva ("Marco regulatório contra o arbítrio") opte por tentar recontar o passado com uma ótica do presente, na crítica que faz ao trabalho "Memória da gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações", de nossa autoria.

O artigo que Ceneviva critica foi elaborado originalmente como texto acadêmico, publicado na revista eletrônica Eptic, tal como mencionado por este Observatório, e tem as características naturais a este tipo de trabalho: um espaço pré-definido; um objetivo específico e delimitação em função do tema analisado. Nesse caso, o foco era o processo legislativo que levou à promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações, restringida a análise, portanto, àquele período histórico. Beira a obviedade afirmar que esse é o cenário temporal a ser levado em consideração na análise de um episódio ocorrido em 1962.

Em seu artigo, Ceneviva trata de três momentos históricos distintos, abordando-os com o mesmo olhar que hoje dirige à radiodifusão. O primeiro momento citado por Ceneviva é a ditadura capitaneada por Getúlio Vargas. O autor cita o exemplo de uma emissora de rádio, cuja concessão não foi renovada pelo governante em 1945. Conforme parecer do então consultor-geral da República, Themistocles Cavalcanti, o presidente da República tinha competência para assim proceder, dados os documentos legais existentes (decretos e contrato de concessão). Com base nesse parecer, Ceneviva manifesta todo o seu espanto e conclui:

"Ninguém ganha com o arbítrio do presidente da República, salvo o próprio presidente. Limitar o poder do presidente da República e, portanto, derrubar os vetos de João Goulart, era uma missão de enorme importância, não apenas para os empresários de radiodifusão. Limitar o arbítrio dizia (e diz!) respeito ao interesse do Brasil, aí incluídos os empresários, a classe política e a sociedade brasileira".

Ou seja: tomando o exemplo da não renovação de uma concessão por um ditador, o autor presume que era preciso brecar qualquer possível ação de um presidente da República escolhido democraticamente (eleito vice-presidente de Juscelino Kubitschek e reeleito para o mesmo posto no governo de Jânio Quadros, a quem substituiu na Presidência). Mais que isso: insinua que os vetos de João Goulart ampliavam as possibilidades de "arbítrio", prática a ser coibida também no presente. Assim, o "Mal" das histórias infantis torna-se o presidente da República e o "Bem", os empresários, a classe política e a sociedade brasileira, de acordo com o relato de Ceneviva – curiosamente fazendo uso da oposição de atores que criticara em seu próprio artigo.

Mote da união

Não menos curiosa é a generalização dos vetos de João Goulart, feita pelo autor. Conforme claramente mencionado em nosso artigo que originou o debate, os citados vetos podem ser agrupados da seguinte forma:

Vetos de João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT):

 

  Número de Vetos % do Total
Fortalecimento do Presidente da República 13 25
Competências de ministérios e outros órgãos 16 30,77
Conflito com outros marcos legais 8 15,38
Imprecisão do texto do CBT 11 21,15
Outras 4 7,70
Total 52 100%

FONTE: Elaboração dos autores

Assim, três quartos dos vetos não se referiam ao fortalecimento do presidente da República – o suposto "arbítrio" criticado por Ceneviva. Eis o exemplo de um deles: a tentativa de impedir a renovação automática das concessões, mesmo que o Poder Público não se manifestasse sobre o pleito em até 120 dias. Em tempos de mudança da administração pública para Brasília e transferência de competências, de pessoal (em número insuficiente) e de material (disperso e confuso) da Comissão Técnica de Rádio (CTR) para o Contel, a probabilidade de atraso naquele procedimento era gigantesca.

Em sua transposição do cenário político de 1962 para o presente, Ceneviva chama atenção para a falta de coesão interna entre os grupos que denomina de "Bem" e "Mal". Não há dúvidas de que, hoje, o fortalecimento de grupos políticos e a complexidade do cenário empresarial resultam na participação de um maior número de atores, com distintas demandas, no debate público. É errado afirmar, porém, que essa era a realidade de 1962. No processo de aprovação do CBT, parlamentares manifestaram-se em votação nominal. Se a rejeição explícita de 52 vetos de um presidente da República a um (à época) projeto de lei não demonstra a convergência de interesses, nada mais a demonstra.

Tampouco o grupo dos empresários, naquele momento, demonstrava os interesses divergentes aos quais se refere Ceneviva. Como o próprio site da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) afirma em seu histórico, João Calmon, futuro presidente da entidade, conseguiu reunir, às vésperas da apreciação dos vetos, 213 representantes de empresas do setor, em Brasília, em encontro classificado como "histórico". Note-se que, à época, ainda não existiam as grandes redes; as empresas do setor, em geral, eram menores; e multiplicavam-se as dificuldades de transporte até a nova capital federal.

Por si só, a reunião refletia inequívoca demonstração de força e defesa de interesses convergentes. Esses interesses eram o mote para a união, inclusive, dos empresários de radiodifusão com os atuantes no setor de telefonia, de acordo com o relato de Quandt de Oliveira (um dos únicos sobre o episódio), ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Contel e da Telebrás, em seu livro Renascem as Telecomunicações (Editel, 1992, p. 62-63):

"A união de esforços dos homens de telecomunicações com os de radiodifusão foi bastante proveitosa e seus argumentos junto aos congressistas atingiram o objetivo desejado. Chamou-lhes a atenção e despertou-lhes o interesse para o problema global das telecomunicações, não ficando o projeto apenas restrito à radiodifusão, como anteriormente ocorrera (…). Os vetos provocaram forte reação, tanto de parte do pessoal interessado em telecomunicações, como, principalmente, em radiodifusão. Houve uma mobilização total de todos os radiodifusores, grandes e pequenos, que se deslocaram em massa para Brasília, a fim de defender o texto tão longamente discutido antes de ser aprovado".

Parâmetros objetivos

Em suma: houve, sim, uma defesa coletiva de interesses – por óbvio – convergentes. Se havia, em 1962, divergências entre os empresários, essas eram pequenas, mínimas. Por outro lado, a oposição a esses interesses convergentes vinha de poucos atores, principalmente do presidente da República. A sociedade civil organizada, à época, pouco se manifestara sobre o tema, inexistindo de sua parte uma mobilização em torno da discussão das telecomunicações no Brasil. Note-se que essa constatação, de nenhum modo, implica uma visão maniqueísta dos diversos atores envolvidos; mas, apenas, reflete um enfrentamento comum à dinâmica social e a coesão existente, em 1962, entre os empresários de telecomunicações.

Se é impossível transpor a realidade do cenário político de 1962 para o presente, permanecem vivos e atuais outros problemas (que o artigo original não pretendeu debater). Um deles é certamente a possibilidade de não renovação de concessões pelo simples "arbítrio" do presidente da República, tão criticado por Ceneviva. Por um lado, há um consenso: em nenhum debate atual tem sido defendida a apreciação das concessões única e exclusivamente pelo chefe do Poder Executivo (e por seu "arbítrio"). Muito pelo contrário, debate-se como o Estado – abrangendo os três poderes – deve se portar na renovação das concessões de emissoras de radiodifusão e como a sociedade – incluindo tanto os empresários, quanto as entidades que militam no setor – devem participar desse processo.

Por outro lado, há um debate ainda não travado: toda e qualquer concessão pública, nos mais diversos setores econômicos, baseia-se em parâmetros claros e objetivos, sendo o respeito a eles determinante para a renovação. Quais devem ser esses parâmetros no caso da radiodifusão? Como deve ser avaliado o atendimento (ou não) dos princípios constitucionais relacionados à programação, como suas finalidades educativa, artística, cultural e informativa e a regionalização da produção? Ou pretende-se defender a mera apreciação formal ou a possibilidade de renovação automática de uma concessão pública – que João Goulart, há 45 anos, tentou evitar?    

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