O jornalismo e o espetáculo da mídia

“O que a senhora está sentindo?” – pergunta o repórter à mãe angustiada, na noite de 17 de julho, em busca de alguma notícia sobre a filha, supostamente embarcada no trágico vôo JJ 3054 da TAM. A câmera, implacável e pornográfica, permanece fixa sobre o rosto da pobre senhora. A TV não pode perder nenhum detalhe daquela dor. O que importa se a pergunta é estúpida e se a resposta é mais do que óbvia? Não se trata, aqui, de obter esclarecimento algum, nem de divulgar alguma informação nova. Ao contrário. Trata-se de reiterar, de repetir, de confirmar tudo aquilo que já se sabe e se conhece. Trata-se de um novo capítulo da fotonovela da vida real, um Big Brother muito mais intenso, hipnótico e perversamente sedutor. Numa palavra: sensacional.

Que as emissoras de televisão queiram explorar a dor alheia para catapultar os índices de audiência, e com isso aumentar o valor de cada segundo investido em publicidade, em nome do faturamento e lucro, isso é fácil explicar e entender (embora nem tanto justificar ou defender). Um pouco mais difícil é perceber o que querem os telespectadores que se deixam seduzir pelas imagens  da miséria nossa de cada dia.

Os telespectadores gozam com o espetáculo da dor, por verem projetados os seus próprios medos, anseios, desejos, vontades, ódios, sejam eles conscientes ou, ao contrário, enterrados, reprimidos e recalcados nas camadas mais profundas da argamassa psíquica que o bom e velho Sigmund qualificou como inconsciente. A tela serve de palco ao teatro mais íntimo de cada um. Na segurança de sua casa, o telespectador pode vivenciar, por meio do outro, as suas angústias e prazeres sem realmente se expor aos perigos que a vida oferece.

Esse mecanismo de projeção ajuda a entender, por exemplo, o pânico que se apossou de São Paulo na famosa  segunda-feira, 15 de maio de 2006: alarmadas por notícias sobre ataques do PCC, milhões de pessoas voltaram mais cedo para suas casas. O comércio fechou, tudo parou. Como explicar o frenesi maluco que tomou conta da população? Uma primeira interpretação surge fácil: a culpa foi da televisão, que exagerou nas notícias sobre a intensidade da guerra entre a polícia e o PCC. Mas não é tão simples. Claro que a televisão ajudou a disseminar o clima de “fim de mundo”. Mas não foi ela que criou o pânico. Ele já estava instalado, apenas à espera da ocasião propícia para eclodir.

É mais fácil ver isso retrospectivamente, quando pensamos em outros processos de histeria em massa. O mais célebre deles, provavelmente, aconteceu nos Estados Unidos, em 30 de outubro de 1938, com a transmissão radiofônica da “guerra dos mundos”, por Orson Welles. Às vésperas da “noite das bruxas” (Halloween), Welles anunciou aos 6 milhões de ouvintes da rede CBS que o país sofria uma invasão de marcianos.  O roteiro era baseado na ficção escrita por H. G. Welles. A audiência  ignorou o aviso de que se tratava de uma brincadeira. Resultado: milhões de pessoas que viviam no campo entupiram rodovias rumo às cidades mais próximas, e vice-versa; gente saiu às ruas aos prantos.

A comoção foi produzida pela sensação de insegurança que então atormentava o cidadão médio estadunidense. O país ainda sentia os efeitos da Grande Depressão, que, em 1929, havia destruído a economia, o american dream. As instituições políticas e econômicas estavam em frangalhos, o desemprego atormentava milhões de famílias e os tambores da guerra soavam no outro lado do Atlântico.

Guardadas as devidas proporções e relativizações históricas, o cidadão brasileiro médio de 2006 (como o de hoje, aliás) tampouco podia esperar muito das instituições públicas, especialmente após o “mensalão” e os sucessivos escândalos de corrupção. Ninguém podia confiar nos sistemas públicos de saúde, ensino, previdência, segurança. Mesmo o brasileiro de classe média sabia que a crescente concentração de riqueza tornava a vida cada vez mais cara e o futuro cada vez mais incerto. Quem pode hoje, com tranqüilidade, pagar o estudo de vários filhos, os planos de saúde de pais idosos e ainda salvar algum para garantir a aposentadoria? Na favela, onde grupos de policiais coexistiam com o narcotráfico, o conflito entre polícia e o PCC não apareceu como uma luta entre forças da ordem contra o caos, mas sim como uma guerra entre bandos organizados, e a população bem no meio, sem proteção alguma.

O pânico de São Paulo teve como ingredientes a frustração com o passado, a perplexidade face ao presente e o medo do futuro. A televisão não criou, mas explorou isso tudo, como faz hoje, por exemplo, no Morro do Alemão carioca.

Os meios de comunicação sabem, portanto, que o sensacionalismo oferece uma via fácil para aumentar a audiência. E o público, por sua vez, espera que os meios alimentem suas fantasias cotidianas. Cria-se uma rede complexa de cumplicidade. E é precisamente essa teia de cumplicidade que torna tão complicada a discussão sobre a responsabilidade social dos meios de comunicação. De um lado, é obviamente condenável a atitude estúpida e desumana de explorar a dor de uma mãe perplexa com a notícia sobre a possibilidade da súbita morte de sua filha. Por outro lado, a audiência pede mais.

Essa equação só pode ser resolvida pela intervenção de um parâmetro que se coloca, ao mesmo tempo, acima dos interesses pecuniários das emissoras e das paixões e anseios dos telespectadores: o bem púbico. Historicamente, desde os tempos em que a invenção de Gutenberg serviu aos propósitos militantes de Martinho Lutero, a construção da imprensa e dos meios de comunicação constituiu-se dado inseparável da formação da esfera pública e da sociedade civil. Em nome do interesse público, grupos privados de mídia obtiveram a permissão de explorar as ondas que percorrem o espaço público, mediante a condição (inscrita na Constituição dos estados democráticos ocidentais) de produzirem uma programação que eleve o nível cultural da população, dignifique o cidadão, produza uma informação confiável e equilibrada.

Se, com o passar do tempo, o interesse privado acabou se sobrepondo ao público, operando os meios de comunicação mediante prática exclusivamente comercial, isso pode e deve ser mudado. Em nome do interesse púbico, é mais do que legítimo pensar num código de ética e normas que rompa a nefasta relação de cumplicidade entre meios e público cimentada pelo sensacionalismo e pela exploração baixa das paixões privadas.

Como fazer isso é outro problema, que cabe à própria sociedade, democraticamente, resolver. Não será uma tarefa fácil, dada a tremenda oposição oferecida pelos próprios meios, como se observa em cada tentativa de se regulamentar, minimamente que seja, a rede de programação. Mas é uma tarefa necessária, do ponto de vista da real democracia.

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