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Modelos e tecnologias: a TV digital e os mecanismos anticópia

O Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) foi – e continua sendo – alvo de inúmeras polêmicas. Antes mesmo da publicação do Decreto Presidencial 5.820/06, diversos setores da sociedade debruçaram-se sobre os aspectos relativos à implantação da TV digital, com destaque para a escolha do padrão de modulação, a incorporação de tecnologias desenvolvidas no país, o modelo de serviços e as regras para a transição para os atuais concessionários.

A bola da vez é a possível adoção do sistema anticópia conhecido como DRM (digital rights management). Circulam nos meios de comunicações diferentes pontos de vista sobre o assunto, com as empresas concessionárias de radiodifusão defendendo a adoção de mecanismos que impeçam os usuários de gravar os conteúdos transmitidos pela televisão, alegando que somente esse dispositivo evitaria a pirataria. E, uma vez mais, o Ministério das Comunicações alinha-se à posição dos radiodifusores.

Caso venha a fazer parte das normas técnicas do SBTVD, o DRM impedirá o espectador de gravar qualquer programa televisivo. Os conteúdos somente poderão ser armazenados no set top box, aparelho conversor pelo qual vai passar o sinal digital para que o usuário possa assisti-lo em sua atual televisão. O professor que deseja gravar programas de TV para posterior exibição em sala de aula (para ilustrar algum conteúdo disciplinar, por exemplo), ou mesmo o telespectador que habitualmente grava conteúdos ficcionais (novelas, por exemplo), ou jornalísticos (como uma entrevista importante) para depois assisti-los em qualquer outro lugar, não poderá mais fazê-lo, já que a armazenagem no set top box não permite que o conteúdo seja transmitido a outra mídia e, portanto, assistido em qualquer outro lugar – nem na casa dos amigos, nem na escola, nem no trabalho.

Oferta livre de conteúdos

O espectro de freqüências por onde trafegam os sinais de rádio e TV é um bem público, sendo a exploração dos canais de televisão feita, portanto, a partir de concessões públicas. Trata-se de um "espaço" de propriedade do conjunto dos brasileiros, administrado pela União, embora o serviço seja ofertado por empresas privadas como as que conhecemos (Rede Globo, Record Bandeirantes, SBT etc.). Tais concessões são renovadas a cada 15 anos e devem seguir determinadas regras para que a exploração esteja de acordo com os princípios previstos na Constituição Federal.

Por se tratar de um serviço público, os sinais de televisão devem ser livres e gratuitos (Constituição Federal, artigo 155). Na mesma direção, o já citado Decreto Presidencial 5.820/06 estabelece que "o acesso ao SBTVD-T será assegurado, ao público em geral, de forma livre e gratuita, a fim de garantir o adequado cumprimento das condições de exploração objeto das outorgas".

É notório que a instituição da TV digital traz modificações na forma de transmissão e recepção da televisão (de analógico para digital), mas nada, em hipótese alguma, modifica o compromisso público que a televisão deve fazer prevalecer, entre elas, a oferta livre dos conteúdos. E, se hoje o espectador pode decidir o que fazer com o conteúdo que recebe pelo sinal da TV analógica, com o DRM não mais poderá fazê-lo.

Afirmações sem fundamento

Segundo os defensores do DRM, tais medidas de proteção tecnológica têm por objetivo impedir ou limitar a utilização de conteúdos digitais, sendo um instrumento para combater a cópia ilegal de filmes, CDs, softwares e outros tipos de conteúdo. A justificativa é compreensível, mas os efeitos da opção serão negativos, em todos os sentidos.

A legislação brasileira (Lei 9.610/98) dá ao detentor do direito autoral a prerrogativa de decidir o que se pode fazer com sua obra. A mesma legislação, no entanto, estabelece limitações e exceções a esse direito, visando a garantir o interesse público. Com isso, algumas modalidades de uso são autorizadas sem a necessidade de autorização do autor (como o uso de trechos de obras para fins educativos, jornalísticos, de crítica etc.). Além disso, há obras sobre as quais não se aplicam restrições de cópias, como aquelas de domínio público.

Filmes como O Garoto, de Charles Chaplin, O Gabinete do Dr. Caligari ou O Último Homem na Terra, de notória relevância, estão em domínio público. Qualquer cidadão tem o direito de copiar, utilizar e distribuir tais obras. Com o DRM, tal direito será tolhido. Da mesma forma, filmes como Cafuné, licenciado em Creative Commons, cuja distribuição sem fins comerciais está autorizada pelo autor, não poderá ser copiado.

Em resumo, caso adote o DRM, o Estado brasileiro vai retirar do cidadão o que lhe é um direito, fazendo com que um dispositivo técnico se sobreponha à lei. Em nome de um direito (o autoral), violar-se-á outro igualmente importante (o de acesso às obras). Para que o leitor não seja enganado por afirmações sem fundamento, é preciso lembrar que a TV por assinatura já possui sinal digital e a comercialização de DVDs ilegais não se deve à gravação da programação exibida por cabo ou satélite. Não se vendem DVDs copiados de forma caseirae da Fox, Telecine e outras, até porque os filmes são exibidos muito antes nas salas de cinema.

Somos mais piratas do que eles?

O sistema anticópia defendido para o SBTVD, o High-bandwith Digital Copy Protection (HDCP), é proprietário, ou seja, uma empresa privada detém os direitos sobre a tecnologia. Sua inclusão na fabricação dos conversores da TV digital, se imposta à indústria pelo Executivo, imputará o pagamento de royalties, encarecendo ainda mais um produto que, indicam os fabricantes, já não será acessível ao conjunto da população.

Entretanto, há quem esteja disposto a cobrir este custo. Recentemente, a MPAA (Motion Picture Association of America), representante dos estúdios de Hollywood, esteve em Brasília, acompanhada de representantes das emissoras nacionais, para oferecer ao governo brasileiro subsídios para a inclusão do DRM nos conversores. Curiosamente, foi após esta reunião que o ministro das Comunicações declarou que, ao contrário do que havia anunciado anteriormente, o SBTVD adotaria, sim, o uso de sistema anticópia.

Com isso, além da evasão de capital nacional para o exterior e o encarecimento do set top box, compromete-se a livre concorrência, na medida em que a empresa detentora da tecnologia monopolizará sua produção, impedindo a inovação e a fabricação de dispositivos compatíveis com o SBTVD.

A campanha contra a pirataria, uma vez mais, é a fachada para defender a inclusão do dispositivo na TV digital. Mas vale a pergunta: quando um CD da Marisa Monte, lançado com DRM, apareceu nas barracas de camelô, quem foi o responsável pela quebra do sistema? Um usuário médio, padrão, fã da cantora? Ou um especialista capaz de quebrar tantos outros sistemas anticópia? E quem será o responsável pela distribuição ilegal? O mesmo usuário padrão e seu fã? Ou seja, o DRM é, inclusive, ineficiente e facilmente violável por especialistas. Prejudicará somente o telespectador, não trazendo benefícios nem à grande indústria, que tanto o defende.

A indústria do entretenimento e da comunicação tem praticado um poderoso lobby a favor de uma tecnologia que não interessa ao cidadão. Ao contrário, é prejudicial ao desenvolvimento tecnológico, ao acesso ao conhecimento, à produção e circulação de informação, à economia e à educação.

Mas não custa perguntar: se o DRM é algo positivo e eficaz, por que os Estados Unidos e a Europa não o adotaram? Somos mais piratas do que eles?

*Diogo Moyses e Oona Castro são membros do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

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Cultura e conhecimento: a importância dos direitos autorais

O debate sobre direitos autorais ganhou espaço importante de discussão pública. Trata-se de assunto estratégico para a cultura brasileira: a valorização e proteção aos autores e criadores é premissa fundamental de todo o trabalho que vem sendo realizado no Ministério da Cultura – instituição que tem a competência, no Estado brasileiro, de tratar o tema.

Em grande medida, suscitamos a discussão quando decidimos retomar a responsabilidade do ministério de atuar neste que é um dos mais importantes temas da cultura. Além de órgão regulador, o Ministério da Cultura tem se tornado um grande financiador de bens artísticos e criativos, aumentando seu orçamento ano a ano, e remunerando, via seleções públicas, milhares de autores de filmes, peças, livros e outros bens culturais que entram em circulação no país.

Na globalização, o Brasil precisa afirmar-se como um grande produtor de conteúdo em língua portuguesa e não apenas um gigante consumidor. Nossa balança comercial em propriedade intelectual (hoje deficitária) deve buscar o equilíbrio, em benefício do Brasil, das empresas e dos autores brasileiros.

O direito autoral voltou hoje a ser premissa e uma das finalidades da política cultural brasileira. A política para o direito autoral é estratégica porque diz respeito à soberania do Brasil e de nossos criadores na emergência da sociedade do conhecimento.

Passados dez anos da última alteração da Lei Autoral brasileira, é hora de a sociedade pensar se é necessária uma atualização. São muitas as insatisfações com o atual modelo, a começar pelos autores, que não se sentem inteiramente protegidos, nem bem remunerados. E acrescentemos o desafio dos novos modelos de negócios em base digital e, também, o aprofundamento da democracia e o desejo dos brasileiros de acessar a cultura, como parte de sua formação humana integral.

Hoje, a lei é anacrônica para atender, de forma equilibrada, tanto autores como consumidores e cidadãos. A simples reprodução de um arquivo musical para um tocador de MP3 contraria nossa legislação autoral, que não diferencia cópia privada de cópia com fins de pirataria. Tanto autores como consumidores concordariam que esta é forma relevante de circular cultura e remunerar artistas.

Tecnologia

O ambiente de desenvolvimento das tecnologias digitais promove, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade para o criador de obras literárias e artísticas. Desafio porque, dada a facilidade com que se reproduz ou se comunica ao público, uma obra ultrapassa largamente a capacidade tradicional de controle do autor sobre a sua utilização. Oportunidade, pois o autor nunca teve tanta facilidade em tornar público o seu trabalho, sem depender dos esquemas tradicionais que lhe submetem a um contrato com um investidor cujos termos são, por vezes, onerosos e mesmo leoninos contra os autores. Em algum momento de minha carreira musical, senti na própria pele como os autores nem sempre são os beneficiários.

A lei atual prescreve a utilização das medidas de proteção tecnológica (MPT), que permitem ao dono dos direitos sobrepor algum software ou programa específico sobre a mídia em que eles estão gravados, de maneira que seja impossível, por exemplo, copiar o filme ou a música. Na prática, em todo o mundo, tais medidas têm se revelado ineficientes e incapazes de manter a remuneração dos autores e investidores.

A tecnologia a serviço do cerceamento das liberdades produzidas pela própria tecnologia não é o melhor caminho, quando temos formas mais modernas de controle e novas formas de modelos de negócio, como a contribuição obrigatória sobre a mídia virgem. Essa contribuição, mínima, é revertida automaticamente para os autores como forma de compensá-los por perdas como as causadas pelos downloads. Limitações e exceções à proteção autoral permitem atividades culturais sem fins econômicos, que são perfeitamente legais em países avançados.

Devemos também enfrentar a vulnerabilidade dos criadores frente ao abuso de poder econômico do investidor, que se reflete, por vezes, em certas formas de contrato, de licenciamento ou cessão dos direitos sobre sua obra para que ela seja reproduzida, veiculada, distribuída ou comunicada ao público. O que sobra ao autor após a assinatura desse contrato é, via de regra, ínfimo, face à importância de sua criação para a mídia e para o usuário final da obra protegida.

As distorções da lei atual criam um claro desequilíbrio entre o incentivo à criação versus o acesso à cultura, de um lado, e, de outro, o incentivo ao criador versus a remuneração do investidor. A tecnologia, por certo, interfere nesse processo, nos colocando diante de desafios que serão enfrentados com muito debate social, negociação e inovação. A questão fundamental a ser enfrentada é: como remunerar de maneira condizente o criador nacional, o bem-estar que ele propicia a toda a sociedade?

Transparência

Devemos reforçar o papel das entidades de gestão coletiva autoral em suas tarefas de controlar a utilização das obras e de arrecadar uma remuneração justa, que seja efetivamente revertida aos autores. São legítimas as críticas constantes ao órgão central de arrecadação da execução pública musical, assim como a situação de falência da entidade mais antiga de gestão coletiva, no caso dos direitos de representação teatral, além da ausência de órgãos de gestão, por exemplo, na área do cinema.

No período recente, o Estado brasileiro praticamente foi desmantelado no seu papel de garantir mais transparência. Hoje, tornou-se necessário fortalecer o papel do Estado na área. O Ministério da Cultura apoiou a criação, no âmbito do Ministério da Justiça, do Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP).

O governo tem sido bem-sucedido em coordenar os esforços entre a iniciativa privada e o Estado, com o objetivo de combater a reprodução não-autorizada de obras autorais. Isso tem sido feito, facilitando o trabalho das autoridades policiais e judiciárias na busca, apreensão e destruição do material pirateado.

Porém, temos insistido que não será suficiente somente a repressão pura e simples à pirataria, sem um trabalho de educação e informação para a população da importância do direito autoral e da relação intrínseca entre a pirataria e o crime organizado, mostrando que a compra de material pirata financia a criminalidade. A iniciativa privada também tem um papel importante nessa área, devendo buscar reduzir os preços dos CDs e DVDs comercializados para torná-los mais atrativos para o consumidor de material pirateado. O Estado não pode tudo nessa área: sem um esforço de toda a cadeia de comercialização, as medidas represssivas não serão suficientes.

A consolidação das leis autorais, ainda no século 19, teve sempre um objetivo fundamental: incentivar a criação como forma de aumentar o bem-estar da sociedade. Nossa lei atual está cumprindo esse objetivo? Em minha visão, não é o caso.

Por isso tudo, julgo que devemos rever esses desequilíbrios e induzir à melhor distribuição de benefícios, na qual o criador receba uma contrapartida justa em relação a seu papel na sociedade. Com o meio digital, o desafio é ainda maior. Independentemente de qual sejam esses instrumentos e seu foco de atuação, o Ministério da Cultura já vem trabalhando para dotar seu setor autoral de uma estrutura adequada, para fazer frente aos desafios impostos pelas novas tecnologias e, principalmente, pela grandeza cultural de nosso país.

Nesse sentido, é com satisfação que anuncio que o Ministério da Cultura realizará uma série de encontros, seminários e oficinas integrando um fórum nacional sobre direitos autorais que promoverá um amplo debate com a sociedade e com todos os atores envolvidos na questão autoral com vistas a definir qual a melhor forma de promover os equilíbrios que mencionei, bem como a atuação que o poder público deve ter para dotar o campo autoral de mais transparência e justiça.

TV estatal em favor do governo viola interesse público

17/09/2007 |

 

Recentemente, defendemos a tese de doutorado, junto à Faculdade de Direito da USP, intitulada Estatuto dos Serviços de Televisão por Radiodifusão , abordando entre outros temas: o princípio constitucional da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal, o qual implica na garantia da existência de serviços de televisão por radiodifusão comerciais, públicos e estatais.

Na ocasião, advogamos que a televisão estatal por radiodifusão constitui uma modalidade de serviço público privativo do Estado, sendo que uma de suas finalidades é assegurar a comunicação social de caráter institucional,nos termos do artigo 37, parágrafo 1º da CF, a respeito dos atos e (ou) fatos relacionados ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário.

O poder público tem deveres a cumprir no que tange à educação e à cultura. Em razão disso, a televisão estatal não se reduz à realização da comunicação institucional. Nesse sentido, é possível que um canal de televisão integrante do sistema estatal veicule tanto conteúdos relacionados à informação institucional quanto à educação e à cultura.

A conceituação da televisão estatal deve estar vinculada à titularidade exclusiva e o controle do Estado sobre a programação. O núcleo de sua definição corresponde às idéias de competência estatal quanto à organização e prestação do serviço de televisão por radiodifusão. Daí a incompatibilidade entre a livre iniciativa e o sistema estatal. Daí porque uma televisão estatal está necessariamente vinculada à política governamental, o que evidentemente não significa o afastamento do dever de igualdade de oportunidades quanto ao acesso à programação das mais diversas correntes de opinião.

Por outro lado, a televisão pública é uma das modalidades de serviço de televisão, integrante do sistema de radiodifusão público, caracterizada como um serviço público não-privativo do Estado, cuja função primordial é a execução de serviços sociais relacionados à educação, à cultura e à informação, realizado por organizações independentes do Estado, com a participação e o controle social, que não integram a administração pública e que não possuem fins lucrativos, submetidas a um regime de direito público de modo preponderante.

Em verdade, uma verdadeira televisão pública, independente do governo, ainda está para ser criada, eis que a modelagem jurídica tradicional não garante tal autonomia institucional.

O critério essencial para a caracterização da televisão pública é a independência diante do poder público, assegurada mediante a participação e o controle social, particulamente o poder de auto-organização interna com a indicação de seus administradores e, sobretudo, a nomeação de seu Presidente, vedando-se que o Chefe do Poder Executivo (seja Presidente da República, seja Governador do Estado) escolha o responsávelpela direção da entidade. Em verdade, trata-se de uma verdadeira garantia constitucional de acesso dos cidadãos e dos grupos sociais ao meio de comunicação social consubstanciado na televisão por radiodifusão.

Evidentemente que por força da Constituição e da legislação deve ser garantida a autonomia editorial das emissoras estatais e públicas em face do poder político e do poder econômico. Isto se faz mediante regras claras em termos de indicação dos dirigentes e mecanismos mistos de financiamento de suas atividades.

É fundamental o respeito do pluralismo político e social das correntes de idéias e de opiniões, sob pena de desvirtuamento de suas finalidades institucionais. A autonomia é um valor-fonte de garantia do pluralismo ideológico e, afinal, do pluralismo democrático.

Nesse sentido, a utilização de emissoras estatais e públicas em favor de governantes e (ou) determinados agentes e (ou) partidos políticos, com a exclusão de pessoas e (ou) grupos políticos adversários, a par de ser ofensiva ao princípio da isonomia política, implica em violação ao princípio do interesse público, o qual exige que a programação de televisão esteja vinculada aos princípios constitucionais do artigo 221 da Constituição Federal, particularmente que temas de repercussão pública sejam tratados por diversos pontos de vista.

 

Decisão de voto: mídia e eleições na América Latina

Algo de muito estranho está acontecendo com os jornalistas da grande mídia no Brasil. Enquanto, por exemplo, florescem mundo afora cursos acadêmicos de graduação e pós-graduação sobre "estudos de mídia" (media studies), entre nós ainda se questiona arrogantemente a legitimidade de uma das mais importantes instituições do mundo moderno – a mídia – "ser tratada como um bloco".

Para certos jornalistas, "tratar a mídia como um bloco" é ignorar que possa haver algum tipo de competição (pluralidade) entre as empresas que produzem jornalismo e entretenimento ou alguma diversidade de conteúdo entre os veículos que elas controlam. Não se reconhece a existência de uma instituição que se orienta por normas empresariais e rotinas profissionais padronizadas, independente da eventual pluralidade e diversidade que ainda possa existir e da relativa autonomia de trabalho do jornalista. É essa instituição – o coletivo dos jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão – que se chama universalmente de mídia e que se transformou em ator político central nas democracias contemporâneas.

Essa explicação preliminar sobre a existência da mídia (!!!) vem a propósito de um livro que acaba de ser lançado pelo C3 – Centro de Competencia en Comunicación, uma unidade regional de análise da comunicação para América Latina da Fundação Friedrich Ebert (FES), com sede em Bogotá, Colômbia.

Efetividade perdida

A FES é uma instituição que "baseia seus programas no ideário da social-democracia alemã e européia e mantém escritórios em mais de 70 países do mundo, sempre com a finalidade de cooperar na consolidação e no desenvolvimento de regimes democráticos e participativos" e está no Brasil há mais de 30 anos.

O livro, cujo título é Se nos rompió el amor – Elecciones y medios de comunicación, América Latina 2006, reúne 12 estudos de 15 especialistas, 11 deles sobre o papel da mídia nas eleições presidenciais realizadas em 11 países da América Latina, entre novembro de 2005 e dezembro de 2006. O décimo segundo estudo trata das eleições municipais e parlamentares realizadas em El Salvador.

A leitura desses textos é extremamente reveladora porque mostra como muitas das questões que foram discutidas entre nós ao longo do processo eleitoral de 2006 – e continuam na agenda pública – também estiveram e estão presentes nos debates realizados nos países vizinhos.

A tese principal do livro, simplificadamente, é de que o ano de 2006 passará para a história das relações entre a mídia e as campanhas eleitorais na América Latina como aquele em que os candidatos "romperam seu amor pela mídia" e preferiram a comunicação direta com a cidadania. Neste processo, a mídia perdeu seu protagonismo e converteu-se em polêmico ator político. O resultado foi que nasceu um "novo amor" entre candidatos/governantes e as populações, um amor sem mediadores, que converteu a mídia na "vilã" da vida política.

Os estudos chegam a várias conclusões, dentre elas, que a mídia se converteu em…

** ator que tomou posição política e abdicou de sua responsabilidade "iluminadora" nos processos eleitorais; e

** observadora interessada e intencionada abdicando de seu papel central de ser fórum da democracia.

Como conseqüência, em pelo menos 6 dos 11 processos eleitorais estudados – Bolívia, Chile, Brasil, Nicarágua, Equador e Venezuela –, a mídia perdeu efetividade na decisão de voto tomada pela maioria dos votantes já que não logrou converter seu desejo em decisões eleitorais. Nas outras cinco eleições – México, Peru, Costa Rica, Colômbia e Honduras – apesar de os candidatos apoiados pela mídia terem vencido as eleições, a mídia perdeu credibilidade e legitimidade.

Questões e constatações

Apesar de tudo, conclui-se também que a mídia continua sendo o cenário privilegiado onde as campanhas eleitorais se desenrolam; que o cidadão dificilmente pode decidir seu voto com base na informação, na análise e na opinião difundidas pela mídia; e que a mídia se converteu em parte do conjunto de instituições que é necessário mudar, da mesma forma que é necessário mudar as velhas práticas políticas, os partidos e a corrupção.

Como se vê, não foi somente no Brasil que se questionou o papel da mídia nas eleições. Ademais, a publicação de um livro que analisa o papel da mídia em 11 eleições presidenciais realizadas na América Latina, num período de 12 meses é, em si mesmo, uma excelente oportunidade para comparações e análises sobre o processo eleitoral, momento definidor das democracias.

Sem ignorar que as conclusões dos estudos publicados em Se nos rompió el amor – Elecciones y medios de comunicación, América Latina 2006 serão rejeitadas pela grande mídia brasileira – que, aliás, sequer admite a sua existência como instituição coletiva – é reconfortante saber que questões e constatações que se fazem aqui coincidem com questões e constatações que também se fazem em outros países.

As relações da mídia com a democracia entraram definitivamente na agenda pública de discussão. E não somente no Brasil.


 

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Convergência, colisão ou política de governo?

Em 1992, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que congrega cerca de 30 países mais ricos do mundo (quase todos os europeus, mais o Japão, a Coréia, os Estados Unidos e seus dois sócios de Nafta) lançou um estudo com título em inglês de Telecommunications and Broadcasting: convergence or collision, ou francês de Télécommunications et radiodiffusion: covergence ou collision? Pretender que a convergência tecnológica e empresarial dos sistemas de comunicação que hoje, finalmente, começa a entrar na nossa agenda, seja uma grande novidade, é apenas próprio de uma sociedade que precisou esperar quase acabar o século XIX para declarar livres os seus escravos…

Todo o reordenamento necessário das comunicações brasileiras, encetado fragmentariamente ao longo dos anos 1990, já podia ter-se realizado considerando o quadro maior da evolução social, econômica e tecnológica pelas quais passavam as comunicações globais e que, nos Estados Unidos e na Comunidade Européia, vinha resultando na elaboração de um conjunto de leis convergentes: Telecommunications Act de 1996, nos EUA; os europeus Livro Verde de 1987 e Relatório Bengemann de 1994, ambos sobre comunicações e audiovisual. Ao contrário, por aqui, consideraram-se interesses menores e o resultado acabou sendo essa colcha de retalhos político-jurídica que temos, não servindo mais a ninguém: uma lei velha de 1962, convivendo com a Constituição dicotômica de 1988; uma lei para a TV por assinatura a cabo de 1995 que "esquece" a TV por assinatura a satélite; uma lei de telecomunicações de 1997 que, convenientemente, ignora a convergência já em pleno curso…

Convergência ou colisão

O assunto afinal teve que eclodir, no correr deste ano, indeciso entre a convergência ou a colisão. Parece que, por enquanto, caminha mais para esta do que para aquela. Na verdade, sabemos, o que se discute é quem vai convergir e quem será convergido… O que menos se discute é o lugar que o Brasil, enquanto Brasil, pretende ocupar no mundo global das comunicações.

Assim como o Brasil poderia sediar, hoje, a maior operadora latino-americana de telecomunicações (vaga que gentilmente cedeu ao México), nosso País tem tudo para ser, neste século que se inicia, um dos grande pólos mundiais de produção audiovisual para o cinema e televisão. Matéria-prima, por óbvio, não nos falta. Competência empresarial também não. Mas a julgar pela completa omissão do Governo nesse debate e pelos projetos de leis que têm sido apresentados no Congresso, a riqueza e beleza da nossa cultura e a capacidade de iniciativa de nossos empresários e produtores culturais não parecem iluminar os responsáveis pelas formulações políticas e elaborações legais.

No momento em que grandes corporações empresariais movem suas peças para, no que é de direito, ocuparem seus lugares no tabuleiro do futuro, o Governo e suas lideranças políticas poderiam entrar em campo na condição de juizes da partida. Como, claramente, estão faltando regras – se não, para quê estão sendo apresentados tantos (e tão pobres) projetos de leis? – caberia ao Governo, mais do que ser juiz, formular e propor essas regras. O momento é propício. Quando cada um busca puxar a brasa para a sua sardinha, o Governo poderia sentir-se à vontade para estabelecer um projeto estratégico, a cavaleiro das disputas, que pudesse contentar um pouco a todos, descontentar um tanto a muitos, mas atendesse sobretudo aos interesses dessa entidade difusa chamada  Nação. Mas quando um secretário de Ministério não se peja em dizer publicamente que o Código de 1962 ainda é atual, desconfia-se seriamente que falta na Esplanada gente à altura do momento…

O debate por aqui continua se prendendo à velha e superada dicotomia "telecomunicações" e "radiodifusão". Quando a Vodafone ou a Orange, na Europa, ou a Claro, agora, no Brasil, comercializam canais de TV fechada através de aparelhos terminais de telefonia celular, ainda será possível definí-las como operadoras de telecomunicações? Quando ouvimos estações de rádio na internet, não raro via algum provedor gratuito e poderia ser até via alguma rede pública Wi-Fi, dessas que já se espalham em municipalidades brasileiras, estamos nas ondas da radiodifusão? Se for por causa do meio, desculpem-me: na época de Stálin, 70% dos aparelhos soviéticos receptores de radiodifusão eram devidamente cabeados…

A alma do negócio

Telecomunicações e radiodifusão distinguiam-se, principalmente, porque o negócio daquela era a qualidade do sinal, e o negócio desta era a produção do conteúdo. No mundo de hoje, não cabe mais fazer tal distinção, do ponto de vista do negócio. O conteúdo está em toda parte, inclusive nos terminais celulares, e não somente na televisão terrestre, aberta e dita gratuita (desde que se ignore o custo embutido da publicidade nos preços dos produtos). Mais: o conteúdo é a verdadeira alma do negócio.

É por isto que, nos países centrais, o processo político-legislativo tende, agora, a distinguir infra-estrutura e conteúdo: trata-se de permitir e organizar a comercialização de qualquer conteúdo por qualquer plataforma de comunicações, sejam as freqüências VHF, seja cabo, satélite, celular, Wi-Fi, o que mais aparecer. A questão, portanto, é a de regulamentar as relações gerais entre produtores de conteúdo (sejam quais forem) e provedores de infra-estrutura (sejam quais forem).

É claro que isto implica, no limite, em uma clara separação normativa entre esses dois segmentos, inclusive na TV terrestre. Na Europa, por exemplo, as emissoras de TV terrestre não mais detêm os canais de transmissão. No Reino Unido, a BBC produz, programa e gera, mas quem transmite é a Crown Castle – é esta quem detém a concessão do canal VHF.

Mas deixando de lado a TV terrestre – assunto complicado no Brasil, como sabemos – poder-se-ia pelo menos tratar com a mesma racionalidade e modernidade a questão da TV por assinatura, agora renomeada "serviço de comunicação social eletrônico de acesso condicionado". Para simplificar, SAC. O provimento de infra-estrutura deveria ter um tratamento único, hoje impossível pela lei do Cabo, pela lei das Telecomunicações e pela falta de lei no satélite. Que se crie por lei (aproveitando que há tantos projetos em curso) uma norma única a ser regulamentada pela Anatel, e que nos concentremos na discussão do que interessa: a produção e distribuição de conteúdos nacionais. Assunto aos cuidados da Ancine.

Na Europa, ninguém questionaria a necessidade de os conteúdos europeus serem protegidos da concorrência estrangeira, especialmente da norte-americana. A diretriz Televisão Sem Fronteiras tem essa finalidade (apesar do nome…). No Brasil, há quem não goste, mas, todos sabemos, uma parte do debate embandeirou-se na questão do conteúdo nacional. Para protegê-lo, propõem-se regras que favoreceriam empresas sob controle efetivo de brasileiros natos ou naturalizados (com apoio na Constituição). Se essas regras funcionassem, não teríamos por aí, tantas e tantas estações de rádio nas quais será quase impossível ouvirmos alguma música brasileira. Aliás, não faltam brasileiros e brasileiras à frente de empresas tanto estrangeiras quanto nacionais, sem no entanto manifestarem o mínimo zelo sequer pela língua portuguesa…

Contéudo nacional

Se quisermos tratar a questão do conteúdo nacional de modo efetivo e eficaz, o foco será outro: será necessário assegurar que a produção nacional chegue ao assinante do serviço, não importa se a empresa responsável pelo serviço de entrega seja estrangeira ou brasileira. Importa é que esta empresa tenha produto nacional para entregar. Ou seja, não basta querer obrigá-la a entregar o produto, se na ponta produtora esse produto não existir.

No SAC, as duas etapas chaves do processo são a programação e o empacotamento. Quem efetivamente decide o quê o assinante irá ver, é o programador. É ele quem cria os canais (a maioria dos programadores possui vários canais), define seus perfis (filmes, esportes, notícias, variedades, vendas etc.), produz diretamente ou adquire de terceiros, os conteúdos que irá programar em cada canal, seus horários de exibição, e até as campanhas publicitárias com as quais atrairá os assinantes. O empacotador organiza uns poucos “pacotes” contendo conjuntos diferenciados dos diversos canais oferecidos pelos muitos programadores. O empacotador não pode, em princípio, colocar em quaisquer de seus “pacotes” programas ou canais inexistentes – salvo se resolver retroceder na sua posição dentro da cadeia, e tornar-se (ou for forçado a tornar-se) também um programador. Ao assinante, na ponta, apenas é dado escolher, dependendo dos seus gostos e do seu bolso, um entre os poucos “pacotes” a ele oferecidos.

Quanto ao provedor de infra-estrutura (seja STFC, SMP, DTH, cabo etc., como pretende um dos projetos em curso), este então não tem mesmo nenhum poder aí. E se a lei que vier  ser aprovada tiver um mínimo de racionalidade, simplesmente reconhecerá isto ignorando essa sopa de letrinhas. O provedor de infra-estrutura para SAC será provedor de infra-estrutura para SAC. Ponto.

Conclusão lógica: a obrigação de fornecer conteúdos nacionais deve recair sobre os programadores. Seja produzindo diretamente, seja adquirindo programas produzidos por produtores independentes, são eles que devem assegurar que uma parte dos filmes, documentários, desenhos oferecidos aos assinantes brasileiros seja realizado por diretores e artistas nacionais. A cota (já que alguns projetos falam em cota) deve incidir aí. Pode ser por cada canal, pode ser pelo somatório dos canais de cada programador.

Duas questões. Há que se acautelar – e muito – para que, na definição de “conteúdo nacional” ou “conteúdo produzido por empresas brasileiras”, não acabe se incluindo desde o emocionante jogo de futebol entre o Bambala e o Arimatéia, até teleshopping  e leilões de tapetes. Estamos falando de filmes, seriados, telenovelas, telecines, documentários, desenhos infanto-juvenís, outros produtos artísticos ou educativos. Não de noticiários, mesas-redondas, programas de auditório ou de entrevistas, inserções publicitárias e que tais. A lei deve ser clara sobre este ponto.

Guiso no gato

A segunda questão é o guiso no gato. Isto é: programadores estrangeiros incluídos? Sim, claro. Caso contrário, o programador nacional (temos mais de um?) será pesadamente penalizado. Não sabemos quanto o Brasil envia para o exterior em lucros e royalties pela programação estrangeira que nos chega. Mas sabemos que essa programação não paga quase nada para entrar no país. Um produto material, paga impostos de importação. Uma programação completa de televisão, de 24 horas, que aqui nos chega diretamente via satélite, é impossível de ser taxada. Mas a companhia programadora pode ser “convidada” a investir na produção de filmes e outros conteúdos brasileiros. Dinheiro que sai e dinheiro que entra. Para isto, cota associada a incentivos fiscais ou financiamentos do BNDES ajudam. E geram empregos para diretores, artistas e técnicos brasileiros, geram renda no País, geram conteúdos baseados na nossa cultura, na nossa história, na nossa maneira brasileira de viver o mundo.

Finalmente, seria necessário decidir quem pendurará o guiso no gato. A resposta é uma única: o Governo, se tiver política.  

*Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Foi membro do Conselho Consultivo da Anatel, Secretário de Planejamento do Ministério das Comunicações e Secretário de Educação a Distância do MEC. É autor de A lógica do capital-informação (Ed. Contraponto, 1996, 2ª ed. 2002).

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