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A televisão pública portuguesa na era digital e outras reflexões

O final do mês de Agosto é também início do regresso às publicações e análises sobre a produção em livros sobre o sector da comunicação. Daí que o regresso da Newsletter do OberCom passe por apresentar um livro e relembrar outro editado na década de oitenta, mas ainda actual.

Os jornais da segunda quinzena do mês de Agosto trouxeram à discussão o futuro da gestão empresarial da RTP. Semanários e diários preocuparam-se em saber se as pessoas actualmente em gestão serão as mesmas após o final do actual mandato de gestão ou se darão lugar a outras ou ainda se ficarão umas e outras partirão. A discussão é certamente apaixonante, pois todos gostamos de tentar acertar nos resultados de coisas que ainda não aconteceram. Mas, na essência é uma discussão desinteressante quando se resume a “nomes”. Mais interessante do que saber quem irá gerir é saber o que irá gerir. E esse conhecimento da realidade não pode deixar de ter em atenção que as mesmas preocupações, ou seja sobre o que é e será a televisão pública, são comuns a toda a Europa.

“Public Television in the Digital Era” é o novo livro de Petros Isofidis director do Media and Communciation Program da City University em Londres. A pergunta que o livro procura responder é a mesma que gestores, políticos e concorrência no mercado televisivo tentam há mais de três décadas responder. Ou seja, qual deve ser a missão dos operadores de Televisão Pública?

O livro pode não responder na totalidade à pergunta mas contém uma abordagem refrescante a uma análise que, não poucas vezes, cai na repetição levada ao extremo com as habituais questões sobre como se deve posicionar a TV pública em torno do que é qualidade, do que é pluralismo, do que são as suas obrigações, etc. O livro de Isofidis foge assim à definição negativa do que é serviço público, a que normalmente é dada, isto é: ser diferente do que fazem as televisões que não são públicas.

Para responder à pergunta atrás formulada o autor sugere uma resposta à questão: “Em que sociedade queremos viver? Quais os valores a serem protegidos?”.

Numa sociedade com rosto humano e não totalitária os valores chave são de facto o pluralismo, a independência, acessibilidade, qualidade de conteúdos, coesão social e protecção da privacidade. No entanto, essa é uma carta de princípios que deve estar presente nas direcções de programas e de informação de todas as televisões, públicas ou privadas. Não chega para diferenciar qual a missão da TV Pública. Para falarmos em missão da TV pública temos de ir mais além e passar para lá do informar, educar e entreter e focar a atenção na criação de autonomia dos cidadãos, dando-lhes a opção de escolha de qualidades diferentes, no leque de programas oferecidos, e inovação face ao actualmente feito nos outros canais e ao já experimentado no passado.

A TV pública tem de tratar os seus telespectadores não apenas enquanto audiências mas também como cidadãos. No campo do financiamento, o modelo actual Europeu (onde coexistem modelos duais de publicidade e financiamento do Estado) deve evoluir, no espaço das próximas décadas, para um modelo assente apenas no financiamento público de gestão de longo prazo. Pois, o facto de existir subvenção dos estados só se pode justificar se houver verdadeira inovação de programas, diferenciação de oferta e qualidade (como sempre um conceito subjectivo) sem demasiadas amarras publicitárias e de audiências.

A missão da TV pública terá também de passar pela dimensão digital. Não só pela criação de serviços informativos online de referência, como também pela experimentação de modelos de negócios que possam depois vir a ser adoptados pelo sector privado. Para os países do Sul da Europa a TV pública tem ainda outra missão a desempenhar: a de diminuir a info-exclusão.

Nos países de menor penetração da Internet, a TV digital terrestre terá de colmatar o facto de muitos cidadãos nunca irem, por sua própria escolha, vir a optar pelo uso da Internet. A TV pública terá assim de apostar e inovar e compreender como dar novos modelos de informação e entretenimento e como fomentar a autonomia dos seus telespectadores.

Obviamente que todas essas mudanças implicam também mudanças na gestão das empresas públicas de televisão. Embora a sua missão seja diferente da das empresas de TV privadas a sua gestão terá de ser cada vez mais assente num modelo de negócio. Ou seja, a reorganização da estrutura em divisões de negócio, o encorajamento da gestão e funcionários em alinhar custos com receitas e modelos de gestão de recursos humanos assentes em modelos de incentivo à inovação bottom-up.

Será que estas análises e recomendações se aplicam ao universo da TV Pública Portuguesa? Creio que sim. Toda a história passada e a revolução recente na sua gestão indicam que os mesmos ventos que sopram no resto da Europa também em Portugal estão presentes. Obviamente não há nenhuma inevitabilidade, há sempre escolhas.

No entanto, como se escrevia em 1984 no texto introdutório do livro “A Comunicação no Quotidiano Português” onde surgiam textos de, entre outros, José Manuel Paquete de Oliveira, José Bragança de Miranda, José Mário Grilo “Seremos nós capazes – temos meios, condições, consciência possível – para alterarmos a ordem estabelecida?”. Se não formos capazes teremos certamente um sistema dos media mais enfraquecido com menor vitalidade e capacidade de inovação. O que quer dizer também um mercado com menores taxas de crescimento e menores rendimentos das empresas de media. Um mercado onde todos, privados e público, perdem. Por essas, e outras razões, tão importante quanto as pessoas são as ideias que as pessoas têm. 

* Gustavo Cardoso é director do Observatório da Comunicação de Portugal

Abril e Telefônica: a falta de transparência no setor de comunicações

A ausência de transparência nas transações comerciais envolvendo as aquisições, fusões e joint ventures de empresas concessionárias dos serviços públicos de comunicações não é um fato novo. São inúmeras as possibilidades de burlar as poucas restrições que a confusa legislação impõe e raramente chega ao conhecimento público o que de fato é realizado e quais os interesses – outros que não o interesse público – servidos.

No final de 2006, a reação da TV Bandeirantes a suspeitas levantadas com relação à existência de um acordo com o governo para bancar a PlayTV fizeram vir a público que tanto o Ministério da Justiça quanto a Justiça Criminal de São Paulo estavam investigando a "transferência de ações entre duas empresas que pertencem ao Grupo Abril, a Tevecap, que controla as empresas de TV a cabo, e a AbrilCom" e "a venda de 30% das ações da Editora Abril para o grupo sul-africano Naspers".

Como sempre acontece, dias depois o assunto desapareceu da grande mídia e, aparentemente, as pendências legais foram solucionadas.

Recentemente, em circunstâncias politicamente contaminadas – o processo por quebra de decoro parlamentar contra o presidente do Congresso Nacional –, voltaram a surgir suspeitas de que ilegalidades estariam sendo cometidas na transferência de controle e outorgas de empresas de televisão paga do Grupo Abril para o Grupo Telefônica (Telesp). Voto contrário à transação do conselheiro Plínio de Aguiar Júnior, apresentado na 443ª. Reunião do Conselho Diretor da Anatel (disponível aqui) passou a circular publicamente.

O assunto mereceu iniciativa parlamentar de instalação de uma CPI (ainda não decidida), notas públicas de esclarecimento das empresas envolvidas, lobby pesado junto a parlamentares e avaliações a priori de analistas que se deixaram influenciar pelas circunstâncias políticas em que o assunto veio a público.

Ata indisponível

A proposta de instalação de uma CPI na Câmara dos Deputados para investigar eventuais irregularidades na transação comercial entre o Grupo Abril e a Telefônica (Telesp) provocou reações que consideraram a iniciativa, sem mais, apenas como despropositada e vingativa, além, é claro, de um "atentado à liberdade de imprensa".

As suspeitas ilegalidades envolvidas na transação referiam-se à contrariedade da Lei do Cabo (Lei 8.977/1995) em pelo menos três pontos:

1. o Grupo Abril estaria repassando à Telefônica o controle de 86,7% da Comercial Cabo (São Paulo) e 91,5% da TVA Sul (Curitiba, Foz do Iguaçu, Florianópolis e Camboriú);

2. de que um Acordo de Acionistas da Comercial Cabo deixaria a operação e o gerenciamento da operadora a cargo da Telefônica (Telesp); e

3. de que estaria sendo desrespeitada a proibição de que uma operadora de telefonia (Telesp) detenha também, na mesma área, concessão de TV a Cabo.

O Ato n. 66.085 de 18/7/2007 do Conselho Diretor da Anatel (disponível aqui) concordou previamente com as transações, mas, em seu Parágrafo Único, estabeleceu:

"A anuência prévia constante do caput deste artigo, no tocante à operação envolvendo a outorga para prestação do Serviço TV a Cabo na área de São Paulo, no Estado de São Paulo, detida pela empresa COMERCIAL CABO TV SÃO PAULO S.A., fica condicionada à comprovação, no prazo de até 30 (trinta) dias, contado da publicação deste Ato, da eliminação das relações de controle vedadas pela regulamentação, decorrentes da aplicação do Regulamento aprovado pela Resolução nº 101, de 4 de fevereiro de 1999, mediante a apresentação de novo acordo de acionistas envolvendo a empresa COMERCIAL CABO TV SÃO PAULO S.A."

Curiosamente, a Ata da 443ª Reunião do Conselho Diretor da Anatel, que tomou esta decisão, não está disponível no site da agência, embora as Atas das reuniões anteriores e posteriores lá estejam (acesso em 16/9/2007). Não se conhece, portanto, os detalhes da decisão que não acolheu o voto contrário do conselheiro Plínio de Aguiar Júnior.

Exigências democráticas

Por outro lado, os atos autorizando as transferências das empresas de televisão paga em MMDS do Grupo Abril para a Telefônica (Telesp) já foram publicados no Diário Oficial da União (13/9/2007). Ao que se sabe, a Anatel preferiu adiar a decisão final sobre as empresas de televisão paga a cabo, na esperança de um clima politicamente mais favorável.

O que fica claro em mais esse episódio, todavia, é que a transparência é uma exigência da prática democrática que deve valer para todas as instituições. Certamente, deve valer para o governo, as agências reguladoras, as instituições que são concessionárias de serviço público e, em especial, os grupos de comunicações. Da mesma forma, a demanda por transparência, não pode, in limine, ser descartada como "atentado à liberdade de imprensa".

Será democrático aplicar-se as exigências da democracia apenas em certas circunstâncias e para certas instituições?

Active Image Observatório da Imprensa

Deus e o diabo nas rádios comunitárias

Infiel, observai o teu nariz melecoso, olhai para tua pele coberta de escarras, teu bolso cheio de larvas pútridas e te curva ao poder do clero. Liga o rádio e escuta a mensagem de Deus, falando do poder da igreja, das glórias da igreja; falando do supremo, onisciente e absoluto poder da igreja. E aí então, quem sabe?, te convenças de que a igreja fala em nome de Deus.

Em nome de Deus, as igrejas estão ocupando as rádios comunitárias. O poder é terreno, a riqueza é terrena, o dinheiro é terreno, a cobiça é terrena, mas os argumentos são baseados numa pretensa designação divina. O catolicismo e diversas denominações evangélicas estão usurpando o que pertence ao povo, em especial as emissoras comunitárias. A lei das rádios comunitárias nº 9.612/98 diz claramente, nos artigos 4º e 11º, que é proibido o proselitismo, isto é a pregação, a catequese, a difusão de cultos. Diz também que a emissora não pode ser dominada ou ter relação subalterna com instituição religiosa. Não é o que se vê neste mundo.

Ah, mas Deus é grande. Tão grande que consegue cegar as autoridades responsáveis pela concessão de autorização e os agentes da Anatel (geralmente tão eficientes) que atuam na fiscalização de conteúdo. Só uma explicação milagrosa e debochada como esta para justificar a existência de tantas rádios comunitárias nas mãos de credos, religiões e seitas religiosas, com autorizações carimbadas pelo Ministério das Comunicações (Minicom).

O Estado tem uma religião

Os casos são escancarados. No Distrito Federal, por exemplo, na cidade-satélite de Taguatinga, a primeira rádio comunitária a receber concessão está instalada numa igreja, a Catedral da Casa da Benção. A entidade é presidida pela mãe de um deputado distrital, Júnior Brunelli, o qual, por acaso, dá nome ao estúdio principal e tem lá sua foto com seu imenso sorriso pregado na porta. Tudo errado, portanto. O Minicom, porém, cego por um milagre de Deus – desse Deus, pelo menos – não conseguiu ver que a entidade que conseguiu a rádio, a Associação Casa da Bênção, é uma instituição religiosa e, por isso, dar a concessão para ela seria um ato ilegal. Mas deu.

São segredos que habitam o "mistério" das Comunicações há pelo menos 500 anos. O Minicom não percebeu, por exemplo, que a Igreja Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, que conseguiu e obteve uma concessão de rádio comunitária, é uma igreja. Todo mundo sabe que aquilo (grande e rico) ali é uma igreja católica, os fungos que freqüentam o lugar percebem que aquilo é uma igreja, o cheiro de vela, os velhos adornos e os santos são de igreja católica, mas o Minicom não viu.

Como ocorreu isto do Minicom não ver que uma igreja é uma igreja, mesmo quando ela é imensa, rica, e está instalada num dos bairros mais nobres e famosos da cidade do Rio de Janeiro? Mistérios do poder.

Ainda no Rio de Janeiro, no município de São Gonçalo, tem outro caso. Uma "rádio comunitária" da igreja católica – autorizada e funcionando, integra a católica Rede Aliança de rádio. Um papel pregado na parede, carimbado pelo Minicom, porém, diz que ela é comunitária e, portanto, não derruba avião. A programação, naturalmente, é proselitista, católica, catequista… Isso é ilegal? Claro. Duas entidades disputavam a concessão para o lugar: esta rádio transgênica (comunitária-católica) e uma outra, comunitária de verdade, construída pela comunidade. Como o Estado brasileiro tem uma religião oficial (o catolicismo), o Minicom decidiu naturalmente ceder a concessão à igreja católica.

O crucifixo na Câmara

Talvez estas emissoras, falsas comunitárias, de tanto falarem em Deus tenham adquirido o dom da invisibilidade para o Estado brasileiro. Só assim se explicaria o fato da Anatel também não conseguir vê-las. A Anatel, que tem visitado rádios comunitárias e multado algumas boas por inserirem publicidade (conforme avaliação subjetiva e pessoal do agente), não consegue ouvir estas rádios que só falam de Jesus e Bento 16 (se é que há alguma relação entre os dois personagens).

O fato é que isso não tem nada a ver com divindade. A questão é política. O que há é uma batalha pelo poder. E a igreja usa seu poder e sua pretensa representação de Deus na terra para se dar bem, ampliando seu prestígio e seu patrimônio. Como faz há 2 mil anos. Não tem nada de novo nisso.

Ocorre que, como se nota, o Estado brasileiro não é laico (Montesquieu ainda não chegou ao Planalto). Deveria ser, mas não é. A Igreja católica ataca pelos dois lados. Sustenta uma banda dita progressista, com seus ícones de boa fé, e vai até o povo, impondo seus dogmas e seu poder, o que é aceito pela esquerda brasileira. A direita, porém, sabe que a Igreja sempre foi e será sua aliada; antes e depois de Ratzinger. E assim, as duas bandas da Igreja estão sempre no poder.

(Sugestão de pauta para uma mídia corajosa: o poder da Igreja católica nos tempos atuais. Em Brasília, uma catedral estabelece que ela é a única religião presente na Esplanada dos Ministérios; a igreja ocupa os melhores espaços das principais avenidas, W3 Norte e Sul, L2 Norte e Sul, onde montou templos e seus negócios de educação – as escolas; ela tem poder suficiente no Minicom para conseguir concessões de emissoras educativas e comunitárias, mesmo contra a lei. O plenário da Câmara dos Deputados tem, ao fundo, um crucifixo, símbolo maior da Igreja católica, lembrando aos parlamentares quem manda ali).

Quem ousaria dizer "não"?

Hoje, a Igreja católica é dona do maior latifúndio de rádios do país. Quase 600, no total. Possui rádios educativas, comerciais e até comunitárias. Só de rádios comunitárias, tem algo em torno de 300 concessões. Uma entidade especial foi criada dentro da CNBB (ícone intocável da esquerda brasileira) para usurpar o que pertence ao povo, a Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc). Isso de tomar as rádios comunitárias que pertencem ao povo é ilegal, é imoral, indecente, mas é fato.

A mesma CNBB se apresenta no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional como "representante da sociedade civil". E é aplaudida por parte da esquerda por criticar o modelo de comunicação, o latifúndio da comunicação; exatamente o que ela tem de mais sagrado.

As intenções da Igreja são claras. E não são de hoje. Por exemplo, de 9 a 11 de junho de 2003, a ANCARC e a CNBB realizaram, no Santuário Maria de Schoenstatt, em Atibaia, São Paulo, o "1º Congresso Brasileiro de Radiodifusão Comunitária e Educativa" e o "7º Encontro Nacional de Rádios Comunitárias". O objetivo: "priorizar o rádio como instrumento de evangelização, entendendo que a notícia que fala da vida e de esperança é também evangelizadora". Isto é, fazer nas rádios comunitárias aquilo que a lei proíbe.

Como a Igreja conseguiu as concessões, mesmo indo contra a lei? Graças ao seu imenso poder. Questionar isso? Como? Quem – esquerda ou direita – ousaria dizer "não" à Igreja? Entende-se o medo. Afinal, dizer não à Igreja significa ser criticado nas paróquias, nas igrejas, por todo país. E assim – com estas ameaças aos governantes – ela vai aumentando seu patrimônio terreno e eletromagnético.

Omissão e inação

Ainda recentemente, dois pesquisadores – Venício Lima e Cristiano Lopes – apresentaram estudo comprovando uma verdade conhecida de quem atua na área: o Ministério das Comunicações e o Palácio do Planalto atuam sob influências políticas e religiosas. E fica por isso mesmo.

Por conta dessas e outras, o movimento das rádios comunitárias tem bem claro que o papel pregado na parede, a autorização oficial, não credencia a emissora como comunitária. É somente um papel concedido pelo Estado. Serve para segurar a repressão, mas não vale como comprovante de que a rádio seja decente. Algumas boas rádios, claro, têm esse papel na parede, outras boas rádios lutam por isso, mas elas, as boas rádios, sabem que isso não prova nada. Ou, pelo menos não prova o que deveria ser seu objetivo, que ela é comunitária.

Será que um dia – quem sabe, antes do Apocalipse – as poucas pessoas de boa vontade neste governo (uma dúzia?) conseguirão fazer com que o Estado reconheça o direito à comunicação de todo ser humano, e não apenas dos ricos? Ninguém crê nisso. Pelo andar bovino da carruagem em meio ao brejo, é ilusão esperar algo do governo Lula para as rádios comunitárias. Afinal, desde a posse ele tem feito tudo que é possível para tornar pior a situação. É paquidérmica a omissão e inação do governo diante do que ocorre no mundo cá fora, onde os viscondes e barões instalados no Palácio jamais ousariam pôr seus delicados pezinhos.

Ambição sem limites

É preciso reconhecer, porém, que o movimento nacional errou ao não investir na base, capacitando as rádios comunitárias, cristalizando junto ao povo o conceito de rádio comunitária, identificando as mobilizações mais honestas e denunciando as desonestas, as picaretárias. Infelizmente, alguns líderes não quiseram dar o saber e o poder ao povo. O movimento errou ao não denunciar e desqualificar, logo no início, a pretensão da Igreja católica de se apossar das rádios comunitárias; optando pelo silêncio, ou, o que é pior, em nome da jogatina política, em alguns momentos fazer parceria com entidades como a Ancarc, uma aberração na área. Errou, como muitos de boa intenção, ao acreditar que o governo Lula, mesmo com suas enrolações, fraquezas, burrices, grosserias, repressões, um dia iria fazer algo pelas rádios comunitárias. Por conta desses erros, proliferaram as picaretárias, nas mãos de empresários, espertalhões, igrejas, políticos – coisas que o que o movimento não aceita.

Felizmente, em contraponto a estas aberrações, aqui e ali pontuam rádios comunitárias de qualidade, construídas pelo povo, pela comunidade organizada, ensinando o que é comunicação popular, democracia, direito humano.

Errar, porém, é humano. Desumano, anti-cristão, é uma instituição fazer uso do seu poder e, apelando para argumentos cristãos, tomar para si o que pertence a todos. Se existe cristianismo, ele está bem longe destas instituições que se tornaram ricas e poderosas às custas do povo e ainda insistem na ampliação deste poder. Uma ambição sem limites. Em alguns lugares, liga-se o rádio ou a TV e só há pregações, missas, sermões, cultos. Ocupar a rádio comunitária é um crime que a história não esquecerá.

Zaratustra, filho alucinado de Nietzsche, se perguntaria: é Deus ou o Diabo quem ocupa as ondas do rádio e da TV?

Ó meu Deus, quem te fala é um ateu. /Responde por carta ou manda um email, /Telefona, manda um recado. /Vai, me diz, seja justo: /Da igreja e sua cobiça quem nos salva?

Enquanto faltam canais para uns, sobram para outros

Um espectro ronda a televisão brasileira e, infelizmente, não se trata daquele outro, anunciado em 1848. Nos referimos aos restos mortais de uma rede de televisão: a CNT.

Fundada em 1979 como TV Tropical, em Londrina, a emissora cresceu em 1980, quando adquiriu a TV Paraná da massa falida dos Diários Associados. Até 1992, contudo, a emissora era uma simples afiliada da Rede Bandeirantes. Mas, foi quando a “sorte” lhe bateu às portas.

Seu dono, o deputado federal José Carlos Martinez, recebeu um “empréstimo” de PC Farias, no valor de US$ 4,5 milhões. Este dinheiro permitiu comprar de Silvio Santos a carioca TV Corcovado: nascia a Rede OM (Organizações Martinez).

Com o fim do governo Collor, os Martinez decidiram que era hora de criar uma nova imagem para a rede de televisão, abalada pelas denúncias de corrupção do “esquema PC Farias”. Rebatizada como CNT, e sem os recursos que abundaram no governo do caçador de marajás, a emissora passou a boiar à deriva no espectro eletromagnético, vendendo quase toda a sua grade de programação, ora para cultos pentecostais ora para tele-vendas de tapetes e anéis.

Com a morte do neo-lulista Martinez, em 2003, a rede entrou definitivamente em queda. Mas, em 2007, novamente a “sorte” sorriu aos Martinez. A emissora recebeu uma proposta de ceder o seu sinal para a transmissão da TV JB, de propriedade de Nelson Tanure (dono do JB, da Gazeta Mercantil e da revista Forbes Brasil – e outro empresário que cresceu à sombra do governo Collor, dessa vez graças à sua amizade com a então ministra Zélia Cardoso de Melo). Mas, a parceria durou apenas até o dia 5 de setembro.

Desde então, a emissora não possui mais uma grade de programação (como pode ser verificado em seu site – www.cnt.com.br). Na tela de nossas TVs aparecem um desfile de tele-vendas e cultos pré-gravados.

Ocorre que, graças ao Decreto Presidencial 5820/2006, essa anomalia ocupará dois canais da TV aberta durante os próximos dez anos (período de transição entre a TV analógica e a digital). No caso das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo a situação é gravíssima, pois faltam canais disponíveis para as emissoras do “campo público”: TVs comunitárias, as TVs universitárias, a TV Justiça e os canais legislativos (TV Senado, TV Câmera, TVs de assembléias legislativas e TVs de câmaras de vereadores). Enquanto isso, os Martinez desfilam sua inoperância nos canais 9 (Rio de Janeiro) e 26 (São Paulo) e ainda terão direito a mais um canal em cada cidade.

Vale lembrar que estes canais são concessões públicas que, segundo a Constituição Federal, têm finalidades culturais, educativas e informativas.

TV Pública: independência, regionalização, horizontalidade

No Workshop de Programação para TV Pública, realizado em agosto, em Salvador, foram reafirmados os conceitos básicos para o desenho da nova TV pública, que iniciará sua instalação em dezembro com o lançamento da TV Brasil. Foram ratificados e aperfeiçoados os conceitos discutidos e aprovados no I Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em dezembro de 2006, em Brasília. Ratificou-se a composição de uma programação generalista, que absorva produção e conteúdos regionais no limite máximo de possibilidades e que tem na produção independente seu principal pilar de sustentação, com exceção da produção telejornalística diária. Foi ratificado o entendimento de que a TV Brasil será o carro chefe de um sistema de comunicação operando com igual ênfase na web e em rádio AM e FM.

Quanto à formação de Rede, ficou claro o interesse de colaboração por parte do conjunto de emissoras estaduais da ABEPEC, a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais. A horizontalidade na prática de Rede foi definida como meta a ser construída a médio prazo, considerando-se como etapa inicial uma relação mais vertical, a partir da liderança da TV Brasil na programação telejornalística diária e no desenvolvimento de conteúdos. Previu-se a articulação da rede a partir de três ações: disponibilização de programação, investimento em produção de conteúdos, investimento em infra-estrutura técnica para produção e transmissão.

Os profissionais de televisão, os representantes dos distintos segmentos da televisão pública, os técnicos, os economistas, os acadêmicos e as autoridades federais e estaduais que estão trabalhando desde junho de 2006, ininterruptamente, na elaboração desse desenho, pautaram-se pela certeza de que a refundação da TV Pública é tema chave não apenas para o desenvolvimento do audiovisual no País, mas sim para o desenvolvimento econômico e espiritual da nossa sociedade. O encontro da Bahia ratificou a necessidade essencial, alicerçante, para que a TV Brasil seja inovadora e popular, da diversidade cultural e da multiplicidade de pontos-de-vista e opiniões. O desafio da diversidade ao qual ela se propõe vai além de garantir espaço e voz para todos: não quer mostrar um carnaval de temas, um desfile de identidades, mas sim expor conflitos, interações e imaginações com a perspectiva de formação crítica do cidadão. Esse desafio se ramificanos esforços que estão sendo aplicados à criação de novos modelos de sustentação, de novas conformações negociais, de novos formatos e de construção da audiência.

A TV Brasil nasce em um momento de mudanças tecnológicas. A digitalização altera não apenas a qualidade da imagem, mas a forma como se assiste e como se faz televisão. Este processo se aprofunda com o funcionamento integrado com a internet, que alça o espectador à condição de programador e de produtor. Em um país como o Brasil, os desafios da interatividade também apontam para a necessidade de alcançar objetivos educacionais e inclusivos. A chegada de serviços públicos à população de baixa renda é uma preocupação permanente e a interatividade é parte da resposta a ela. As escolhas de uso das tecnologias podem fazer com que se moldem com mais clareza os espaços dos canais comerciais e dos públicos. Muito além da alta definição alardeada pelas emissoras comerciais e da venda de produtos pelos canais de retorno, a TV Pública pode se diferenciar por uma interatividade educativa e cidadã.

Frente aos campos que se abrem, as TVs Públicas seguem com a necessidade de superar o atraso tecnológico em que se encontram, questão que só será resolvida se aliada ao debate de financiamento dos canais, que deverão ser oriundos, como diz a Carta de Brasília, de fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis. A formação expansiva da rede pública passará pela revitalização das estruturas estaduais, pela ampliação de sua capacidade de produção, garantindo material qualificado para a rede e o fortalecimento de cada emissora nos cenários regionais. Para tanto, para ser realmente pública, esta TV obrigatoriamente terá autonomia em relação ao poder político e ao poder econômico, com gestão operada por órgão colegiado representativo da sociedade, sem maioria do governo ou do Estado. O papel do Estado na comunicação pública não é o de determinar conteúdos, mas o de ser um agente que fomenta a participação democrática, sistematiza os acúmulos, garante regulação da atividade e o financiamento deste instrumento de universalização dos direitos àcomunicação, à educação e à cultura. 

* Orlando Senna é Secretario Nacional do Audiovisual/MinC