Arquivo da tag: OberCom (www.obercom.pt)

A televisão pública portuguesa na era digital e outras reflexões

O final do mês de Agosto é também início do regresso às publicações e análises sobre a produção em livros sobre o sector da comunicação. Daí que o regresso da Newsletter do OberCom passe por apresentar um livro e relembrar outro editado na década de oitenta, mas ainda actual.

Os jornais da segunda quinzena do mês de Agosto trouxeram à discussão o futuro da gestão empresarial da RTP. Semanários e diários preocuparam-se em saber se as pessoas actualmente em gestão serão as mesmas após o final do actual mandato de gestão ou se darão lugar a outras ou ainda se ficarão umas e outras partirão. A discussão é certamente apaixonante, pois todos gostamos de tentar acertar nos resultados de coisas que ainda não aconteceram. Mas, na essência é uma discussão desinteressante quando se resume a “nomes”. Mais interessante do que saber quem irá gerir é saber o que irá gerir. E esse conhecimento da realidade não pode deixar de ter em atenção que as mesmas preocupações, ou seja sobre o que é e será a televisão pública, são comuns a toda a Europa.

“Public Television in the Digital Era” é o novo livro de Petros Isofidis director do Media and Communciation Program da City University em Londres. A pergunta que o livro procura responder é a mesma que gestores, políticos e concorrência no mercado televisivo tentam há mais de três décadas responder. Ou seja, qual deve ser a missão dos operadores de Televisão Pública?

O livro pode não responder na totalidade à pergunta mas contém uma abordagem refrescante a uma análise que, não poucas vezes, cai na repetição levada ao extremo com as habituais questões sobre como se deve posicionar a TV pública em torno do que é qualidade, do que é pluralismo, do que são as suas obrigações, etc. O livro de Isofidis foge assim à definição negativa do que é serviço público, a que normalmente é dada, isto é: ser diferente do que fazem as televisões que não são públicas.

Para responder à pergunta atrás formulada o autor sugere uma resposta à questão: “Em que sociedade queremos viver? Quais os valores a serem protegidos?”.

Numa sociedade com rosto humano e não totalitária os valores chave são de facto o pluralismo, a independência, acessibilidade, qualidade de conteúdos, coesão social e protecção da privacidade. No entanto, essa é uma carta de princípios que deve estar presente nas direcções de programas e de informação de todas as televisões, públicas ou privadas. Não chega para diferenciar qual a missão da TV Pública. Para falarmos em missão da TV pública temos de ir mais além e passar para lá do informar, educar e entreter e focar a atenção na criação de autonomia dos cidadãos, dando-lhes a opção de escolha de qualidades diferentes, no leque de programas oferecidos, e inovação face ao actualmente feito nos outros canais e ao já experimentado no passado.

A TV pública tem de tratar os seus telespectadores não apenas enquanto audiências mas também como cidadãos. No campo do financiamento, o modelo actual Europeu (onde coexistem modelos duais de publicidade e financiamento do Estado) deve evoluir, no espaço das próximas décadas, para um modelo assente apenas no financiamento público de gestão de longo prazo. Pois, o facto de existir subvenção dos estados só se pode justificar se houver verdadeira inovação de programas, diferenciação de oferta e qualidade (como sempre um conceito subjectivo) sem demasiadas amarras publicitárias e de audiências.

A missão da TV pública terá também de passar pela dimensão digital. Não só pela criação de serviços informativos online de referência, como também pela experimentação de modelos de negócios que possam depois vir a ser adoptados pelo sector privado. Para os países do Sul da Europa a TV pública tem ainda outra missão a desempenhar: a de diminuir a info-exclusão.

Nos países de menor penetração da Internet, a TV digital terrestre terá de colmatar o facto de muitos cidadãos nunca irem, por sua própria escolha, vir a optar pelo uso da Internet. A TV pública terá assim de apostar e inovar e compreender como dar novos modelos de informação e entretenimento e como fomentar a autonomia dos seus telespectadores.

Obviamente que todas essas mudanças implicam também mudanças na gestão das empresas públicas de televisão. Embora a sua missão seja diferente da das empresas de TV privadas a sua gestão terá de ser cada vez mais assente num modelo de negócio. Ou seja, a reorganização da estrutura em divisões de negócio, o encorajamento da gestão e funcionários em alinhar custos com receitas e modelos de gestão de recursos humanos assentes em modelos de incentivo à inovação bottom-up.

Será que estas análises e recomendações se aplicam ao universo da TV Pública Portuguesa? Creio que sim. Toda a história passada e a revolução recente na sua gestão indicam que os mesmos ventos que sopram no resto da Europa também em Portugal estão presentes. Obviamente não há nenhuma inevitabilidade, há sempre escolhas.

No entanto, como se escrevia em 1984 no texto introdutório do livro “A Comunicação no Quotidiano Português” onde surgiam textos de, entre outros, José Manuel Paquete de Oliveira, José Bragança de Miranda, José Mário Grilo “Seremos nós capazes – temos meios, condições, consciência possível – para alterarmos a ordem estabelecida?”. Se não formos capazes teremos certamente um sistema dos media mais enfraquecido com menor vitalidade e capacidade de inovação. O que quer dizer também um mercado com menores taxas de crescimento e menores rendimentos das empresas de media. Um mercado onde todos, privados e público, perdem. Por essas, e outras razões, tão importante quanto as pessoas são as ideias que as pessoas têm. 

* Gustavo Cardoso é director do Observatório da Comunicação de Portugal