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Quando ação por difamação fere a liberdade de expressão

Quando um processo por difamação fere a liberdade de expressão? Para tirar as dúvidas, o Ifex, Intercâmbio Internacional pela Liberdade de Expressão, divulgou um guia de princípios para seus membros. Com sete pontos, o guia do Ifex è muito claro: legislação que prevê cadeia para crime de difamação, penas desproporcionais à ofensa, multas que inviabilizam a saúde econômica, são todos sinais que juntos ou isoladamente identificam a violação da liberdade de informação.

Com 78 membros em todo o mundo, o Ifex monitora violações a liberdade de expressão, recebe e retransmite alertas sobre esses abusos e coordena a troca de experiências para prevenção e combate a esse tipo de violação. Desde o último dia 11, a organização é representada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) A candidatura foi apresentada durante o encontro anual da entidade, em Montevidéu. Outras nove associações de diversos continentes, que têm a questão da liberdade de expressão entre seus principais focos, também foram aprovadas.

Ameaças, agressões físicas ou verbais, intimidações, limitações em virtude do trabalho jornalístico, entre outros, sãoviolações à liberdade de expressão. Quem souber de alguma situação deste tipo, deve avisar a Abraji pelos emails laura@abraji.org.br e abraji@abraji.org.br, para que a associação possa apurar o caso. Se comprovado o abuso, a notícia serve como registro para pressionar autoridades competentes e o caso ganha repercussão mundial a partir dos contatos da rede Ifex.

Leia o guia do Ifex sobre processos por difamação Nem todos os processos por difamação violam a liberdade de expressão. Não endosse qualquer alerta sobre ações por difamação. Uma ação por difamação só viola a liberdade de expressão quando pelo menos uma das condições abaixo está presente. Tais condições devem ser claramente explicadas no alerta:

1) Se a legislação local prevê a pena de prisão para o crime de difamação. O Ifex considera que ofensas tidas como difamatórias jamais devem ser punidas com penas que levem à cadeia.

2) Se a pena pedida ou imposta é desproporcional à ofensa.

3) Se a pena pedida ou imposta é tão grande que pode inviabilizar economicamente o veículo de comunicação acusado ou impedir o jornalista de exercer o jornalismo.

4) Se as alegações sobre a pessoa supostamente difamada são verdadeiras (numa democracia somos facultados a dizer a verdade, mesmo se a revelação dessa verdade resulte em dano à reputação de alguém). Note: há limitações nessa questão, uma vez que publicar certas informações ou fotos, em especial as obtidas de forma ilegal, pode violar o direito legal à privacidade das pessoas.

5) Se a redação ou o jornalista dispõem de razões para acreditar que as acusações contra as pessoas supostamente difamadas eram verdadeiras (mesmo que mais tarde se prove que não eram), em razão da credibilidade da fonte de informação, e da confirmação da informação por outras fontes confiáveis.

6) Se a ação por difamação tem motivação política e é direcionada a constranger a redação ou o jornalista quando tiver de criticar o governo.

7) Se a redação de posição crítica contra o governo é a única processada por difamação, enquanto são poupadas outras redações, que divulgaram o mesmo tipo de informação.

Portanto, os membros do Ifex devem remeter alertas nos casos em que se aplique, pelo menos,uma das condições acima mencionadas.

Rádio Digital Exclusivo

As tecnologias de digitalização apresentam um efeito muito interessante em relação à inclusão social e ao desenvolvimento das pessoas. Na telefonia móvel, por exemplo, a digitalização das redes gerou melhoria na qualidade e aumento da capacidade de serviço para a periferia; ainda, provocou a queda no custo do sistema e maior profusão de aparelhos. Cresceu muito o acesso ao serviço de telefonia móvel pelas pessoas mais humildes de nossa sociedade. Acontecimento bom, pois favoreceu à comunicação, número de empregos, serviços, comércio e tantas outras coisas positivas decorrentes que, ainda, proporcionaram melhoria na qualidade de vida destas populações atendidas.

Numa outra tecnologia, a TV digital brasileira vem com um apelo interessante: resolver os problemas de recepção para aqueles aparelhos de TV que estão mais distantes da área central das cidades. Por exemplo, nos testes experimentais de transmissão da TV Digital, que ora ocorrem na área central da capital paulista, é possível captar-se o sinal transmitido até mesmo no município de Jacareí, a cerca de 100 km de distância. Isso denota uma significativa melhoria na capacidade de cobertura do sinal de televisão – bom para as emissoras e bom para a população. Quem reside na periferia vai receber um sinal digital com boa qualidade, bastante robusto e, também por isso, valerá a pena investir na compra de um receptor da tecnologia digital.

Na digitalização da radiodifusão sonora, todavia, ocorre algo diferente do que é obtido na TV Digital e no telefone celular. O modelo proposto por alguns radiodifusores e defendido pela Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão baseia-se no sistema norte-americano Iboc, onde o “novo sinal” digital é transmitido junto ao “antigo sinal” analógico. Porém, a transmissão do sinal digital apresenta um alcance menor do que aquele da transmissão do sinal analógico e, consequentemente, a área de cobertura digital é cerca de 4 vezes menor do que a área do analógico. O serviço digital na radiodifusão sonora proposta não será disponibilizado para todos.

De fato, quem estiver na periferia, longe dos transmissores, continuará recebendo apenas o sinal analógico. Não adiantará possuir um receptor digital, pois, com a distância, não será possível receber o sinal digital e usufruir das grandes maravilhas que estão prometidas para o rádio digital.

As áreas periféricas apresentam infra-estrutura de suporte social menos elaborada, com pessoas mais carentes, para as quais os serviços e inovações do rádio digital poderiam ser benéficos em seu desenvolvimento social, naturalmente, além do histórico bom entretenimento oferecido no rádio. As pessoas da periferia, em seus lares, estarão excluídas da nova tecnologia digital no rádio.

Torna-se incompreensível, e inaceitável, a adoção de um sistema tecnológico para o suporte de um modelo de negócios da radiodifusão sonora onde a população distal – a periferia – estará excluída.

Não faz sentido trazer essa reflexão para aqueles que defendem tal sistema, pois já explicitaram não relevar o problema. Porém, torna-se cada vez mais importante trazer tal reflexão para aqueles que defendem o progresso da sociedade e, principalmente, para aqueles que estarão “de fora” da radiodifusão sonora digital. Essa reflexão também é pertinente para aqueles que se comprometeram em defender a sociedade brasileira e que, por algum motivo, ainda permanecem calados.

Ao adotar-se o sistema Iboc, como será que os órgãos de defesa do consumidor irão agir quando uma pessoa reclamar que comprou um rádio digital, mas que o aparelho “só pega o analógico”, estará com defeito, como saber, o quê fazer? A deficiência estará no sistema tecnológico proposto: é excludente; o reclamante reside na periferia onde não chega o sinal digital. Com tal desencadeamento de acontecimentos, o Ministério Público também deverá ser acionado, pois um grande número de pessoas estarão prejudicadas.

* Marcus Manhães é pesquisador em Telecomunicações.

Desafios para a universalização da 2G e da 3G no Brasil

Dezessete anos após a implantação do primeiro celular no Brasil e uma década após a implantação do celular digital de segunda geração, mais de 2 mil municípios ainda não contam com qualquer tipo de serviço móvel. As freqüências ali se encontram disponíveis para implantação imediata da 2G, mas os avanços da respectiva cobertura são lentos, dada a falta de interesse comercial na exploração do respectivo serviço.   

Através da Consulta Pública (CP802), a Anatel lançou a proposta da concessão de licenças 3G nas grandes cidades, condicionando-as ao provimento de cobertura 2G em todos os municípios com menos de 30 mil habitantes, no período de dois anos, assim como ao provimento de cobertura 3G em 60% desses mesmos municípios, num período de até cinco anos. Em síntese, a idéia lançada é a de que o novo negócio da 3G seja tão vantajoso para as operadoras a ponto de estas poderem bancar a universalização da cobertura da 2G e, em grande parte, da 3G, num curtíssimo espaço de tempo.   

Em sintonia com o elevado número de contribuições à CP802, parece-nos válido indagar se a licença 3G constitui uma real contrapartida à realização da universalização das coberturas 2G e 3G, lembrando que, em muitos desses municípios, nem a primeira geração do celular ali chegou, tantos anos após o lançamento do serviço móvel no Brasil.   

Absteremo-nos aqui de fazer conjecturas pormenorizadas sobre custos, mesmo porque se trata de um tema afeto às operadoras. Também não nos ateremos aos aspectos jurídicos envolvidos. Preferimos avaliar o tema à luz do mercado mundial já estabelecido, geralmente um juiz razoavelmente imparcial, pairando acima de teorias e opiniões.   

Visão mundial    

Aproximando-se de 3 bilhões de usuários ao redor do mundo, a 2G inequivocamente representa um dos maiores mercados de massa do planeta. Contando com economias de escala imbatíveis, ela continua avançando para as camadas sociais cada vez mais baixas da população mundial. Nos países desenvolvidos, no entanto, a 2G começa a ser substituída pela 3G, de forma cada vez mais rápida e intensa.   

Temos, portanto, dois grandes movimentos no mercado móvel mundial e não apenas um: 2G em direção à baixa renda e 3G em direção à alta renda. Ilusão acreditar que estaremos atendendo os próximos dois bilhões de usuários da base da pirâmide social mundial, com renda entre US$1,- e  US$4,- diários, unicamente através da tecnologia 3G, cujos custos de produtos e de prestação de serviços se encontram num patamar mais elevado que o da 2G. Desconhecemos, aliás, casos mundiais significativos de implantação da 3G com objetivo de atender populações de baixa renda, ao menos em bases economicamente sustentáveis.    

Quanto ao Brasil, a prática indica que o país se encontra aderente a esse panorama internacional. Ao tempo em que se verifica grande unanimidade dentro da sociedade quanto à necessidade de promover a cobertura 2G para todos os brasileiros, os grandes atores do mercado sinalizam que o tiro de largada para a implantação da 3G nos grandes centros urbanos já foi dado. A pressão pela implantação do UMTS em 850MHz, por exemplo, é um sinal evidente dessa situação.   

Nessas condições podemos afirmar, ao menos dentro da ótica mundial, que tanto a implantação da 3G nos grandes centros urbanos quanto a universalização da 2G nos pequenos municípios se alinham com os movimentos globalmente observados. A universalização da cobertura da 3G nestes mesmos municípios, no entanto, indica ser uma política exclusivamente local, fora da rota dos grandes movimentos internacionais.     

Assim sendo, acreditamos que a exigente meta de cobertura 3G estabelecida na CP802 mereça uma reflexão, mesmo porque, muito provavelmente, ela nos colocaria na posição de um dos poucos países do mundo emergente a contar com tão elevado nível de cobertura, em tão pouco tempo.   

A macro equação financeira 2G + 3G   

A transição da 2G para a 3G reflete um caso típico de mudança de geração tecnológica e que se soma ao fenômeno da convergência. Estruturalmente falando, trata-se de um cenário de ampliação dos serviços prestados pelas operadoras e de aumento de suas margens de comercialização. Além dos serviços 2G de voz e de SMS já amplamente comoditizados, serão oferecidos aos usuários os novos serviços multimídia da 3G, com melhores margens de comercialização, aí incluído o acesso a internet e intranets corporativas, música, programas de TV e muito mais.   

Por essa razão, pode-se afirmar que os novos negócios da 3G, se bem estruturados financeiramente, acabarão por apoiar o avanço da penetração da 2G. Há quem queira acreditar que a 3G possa drenar recursos do avanço da 2G, prejudicando sua disseminação. Isso valia, no Brasil, alguns anos atrás, quando a equação financeira da 3G ainda não fechava. Com a queda dos preços, ela passa a ser uma fonte de recursos adicional para ajudar na universalização da 2G e não o contrário. Lembre-se aqui do repique de contratações 2G em países europeus após a implantação da 3G. A conseqüência foi a de que, em alguns países daquele continente, a penetração do serviço celular acabou saltando para muito além dos 100%.   

Finalmente, vale informar que alguns atores do mercado já reconhecem a necessidade de ter que se assegurar a saúde financeira dos negócios 2G no longo prazo, principalmente à medida que ela avança para a base da pirâmide social, que na maior parte se encontra em regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Para isso, torna-se imprescindível reformular os tradicionais modelos de negócios no sentido de adequá-los ao respectivo entorno, garantindo que sejam economicamente sustentáveis a despeito da baixa e baixíssima renda dos consumidores. Um exemplo concreto de atendimento a esse tipo de objetivo encontra-se reportado no adendo mais abaixo.   

3G para a inclusão digital   

Certamente a 3G pode ser considerada uma excelente solução de apoio à inclusão digital, principalmente pela qualidade e estabilidade superior da conexão de dados, cobertura, login instantâneo, segurança, etc., assim como pela capacidade de reunir num único aparelho celular multimídia, mais econômico que um computador, boa parte da funcionalidade deste último. O problema é que nos pequenos municípios onde a 2G ainda não existe, a implantação da 3G ainda não se justifica pelo lado econômico. Na verdade, as dificuldades acabam sendo praticamente as mesmas com as quais o Governo atualmente se defronta na busca do equacionamento da inclusão digital: os projetos não são auto-sustentáveis e por isso exigem a intervenção e o aporte de recursos pelo Estado.   

Síntese    

Como contribuição aos debates associados à implantação da 3G no Brasil, acreditamos ter deixado aqui nossa opinião quanto aos potenciais problemas decorrentes da associação do licenciamento 3G nos grandes centros urbanos, com a obrigação da quase-universalização da cobertura 3G no país. Caso, no entanto, isso seja uma diretriz política do Governo, parece-nos haver dois caminhos principais para assegurar o avanço da 3G nas pequenas localidades:  

a)estimulá-la no Edital 3G através de contrapartidas perenes (redução de impostos, taxas, etc) e/ou,  
b)realizá-la através de projetos específicos de inclusão digital, com verbas para isso destinadas.    

Novos modelos de negócios    

Tradicionalmente os modelos de negócios de telecomunicações vieram sendo desenvolvidos nos países industrializados, com foco no nível de renda de suas populações. À medida que esses modelos evoluíam no tempo, os respectivos produtos e serviços se massificavam, tornando-se acessíveis aos mercados emergentes. Muito lentamente, eles migravam em direção à base da pirâmide social mundial, sem ali nunca se enraizar. Seu vigor também nunca permitiu que se chegasse com serviços ubíquos aos pequenos povoados isolados e de baixa renda dos países pobres e emergentes.   

Se esses modelos de desenvolvimento não são ótimos, eles sempre existiram e assim foram aceitos, mesmo porque nunca houve quem conseguisse viabilizar tecnologia de ponta a custo reduzido, de outra maneira. Por outro lado, esse tipo de modelo de desenvolvimento acabou deixando metade da população mundial sem acesso aos serviços de telecomunicações. Mas, se agora, em pleno século XXI, autoridades e atores do mercado desejarem promover a universalização dos serviços de telecomunicações, haverá que se desenvolver novos modelos de negócios exclusivamente focados nos mercados de baixa e baixíssima renda.   

Dentro desse espírito, a Nokia Siemens Networks vem implantando experiências no continente asiático, com apoio de autoridades, para levar o serviço móvel às pequenas localidades afastadas e às pessoas com capacidade de desembolsar US$3,- mensais para os serviços de telecomunicações. Tal modelo baseia-se na existência da figura do microempresário de telecomunicações que, atuando em parceria com uma operadora, passa a operar, manter e administrar a base de usuários de um pequeno vilarejo.    

Todo o modelo proposto é suportado por soluções tecnológicas inovadoras do padrão mundial GSM, extremamente simples, de baixo custo de aquisição e de operação, com equipamentos de telecomunicações alojados na própria residência do microempresário. Todos ganham com a solução: a operadora que passa a explorar comercialmente um mercado que de outra forma lhe seria deficitário, o microempresário que passa a ambicionar um negócio cada vez maior e os usuários que passam a alcançar serviços públicos à distância, aos quais antes não tinham acesso, senão pessoalmente. Obviamente que esse modelo inovador e de baixo custo exige atenção dos reguladores e dos formuladores de políticas, na medida em que não se pode atender aos assinantes dessas pequenas localidades exatamente dentro dos mesmos padrões estabelecidos para os grandes centros urbanos.   

Até o momento, as experiências realizadas em solo asiático têm sido bem-sucedidas, podendo ser replicadas em países como o Brasil.

* Mario Baumgarten é engenheiro e Head of Corporate Affairs da Nokia Siemens Networks Latin America

TV Brasil: os midiocratas contra a publicidade

Estava demorando, mas agora voltou a normalidade no processo de implantação da nova televisão federal, constituída sob a também nova EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). O estranho silêncio das emissoras comerciais sobre a TV Brasil chegava a dar, a alguns, a impressão de neutralidade, ou até de indiferença, como se a montagem de uma rede nacional de televisão, apoiada em dotação estatal de R$ 350 milhões anuais e ainda com liberdade para captar publicidade, não tivesse maior significado no restrito e oligopolizado mercado da mídia eletrônica. Mas os empresários do setor já começaram a alvejar a Medida Provisória 398, por intermédio de sua vasta tropa de choque no Congresso Nacional, e o jogo agora transcorre de forma mais habitual e previsível.

Qual é a bronca dos "midiocratas" com a nova TV? Certamente não é com o fato de estar sendo criada por medida provisória, em vez de projeto de lei a ser debatido no Congresso. Os resmungos em torno dessa formalidade são apenas isso, muxoxos, posto que é tão possível discutir a proposta governamental na forma de MP quanto de PL, assim como obstruí-la, se houve vontade para uma ou outra coisa. O que a mídia comercial não deseja é que se fortaleça a estrutura pública de televisão, sobretudo pelo acesso a recursos publicitários. Não quer um competidor que lhe roube audiência, depreciando suas tabelas de publicidade, e ainda dispute com ela as verbas dos anunciantes. Acha que isso é concorrência desleal.

Fora do bolo

Assim é que os artilheiros da radiodifusão comercial no Congresso já assestaram seus canhões contra a MP, fazendo com que boa parte das 132 emendas apresentadas tenham por alvo a questão da publicidade. Como o texto proíbe "anúncios de produtos e serviços", mas autoriza a "publicidade institucional de entidades de direito público e privado, a título de apoio cultural, admitindo-se o patrocínio de programas, eventos e projetos", os adversários da televisão pública querem definições legais precisas – na verdade, interdições – para os conceitos de "publicidade institucional" e "apoio cultural". Querem diferí-los bem da publicidade comercial convencional, para impedir que a TV Brasil ponha as mãos no bolo de R$ 60 milhões que estima obter com a captação de recursos privados.

O curioso é que, mesmo sem amparo legal sólido, a venda de publicidade nas emissoras públicas ocorre já há muitos anos, quase duas décadas, sem que os midiocratas e seus parlamentares se dessem ao trabalho, até agora, de contestá-la. E por que não o faziam?

Por um lado, porque defendem o enxugamento do Estado e achavam ótimo que os governos, federal e estaduais, reduzissem progressivamente os aportes que fazem às emissoras públicas. E por outro lado, porque não se preocupavam com migalhas.

Para se ter uma idéia, os recursos de publicidade captados pela TV Cultura de São Paulo, a maior emissora pública do país, estão em torno dos R$ 30 milhões anuais, ou 120 vezes menos do que faturou a TV Globo em 2006 (R$ 3,6 bilhões). Estima-se que todo o campo público, reunindo as emissoras educativas abertas e as estações públicas da TV a cabo – canais legislativos, comunitários e universitários – opere com um orçamento anual na faixa de R$ 400 milhões, dos quais apenas uma parte, inferior a 20%, vem da publicidade.

Os R$ 60 milhões ambicionados pela TV Brasil, nesse contexto, não provocariam nenhum abalo estrutural nos fundamentos do negócio televisivo. Mas podem ser apenas a meta inicial da nova rede pública, que surge vitaminada por investimento estatal e apoio governamental de proporções inéditas. Se a rede alcançar seu objetivo de comunicar-se com a grande massa telespectadora, produzindo índices de audiência superiores ao máximo de 5% obtido pelas atuais emissoras públicas, entrará no jogo para competir com as redes comerciais. E, obviamente, fará os R$ 60 milhões iniciais multiplicarem-se, porque será atrativa aos anunciantes.

Equipe competente, rede competitiva

As condições para isso estão dadas. A equipe de gestão é competente e, mantido o aporte anual de R$ 350 milhões do orçamento federal, até o final do governo Lula a TV Brasil terá obtido R$ 1,4 bilhão para custeio e investimentos, o que é dinheiro suficiente para fazer uma boa e atraente programação. Não lhe será difícil captar outros R$ 300 milhões em publicidade comercial, se pontuar no Ibope e repercutir na opinião pública. De grão em grão, encherá o papo e poderá incomodar os interesses privados em poucos anos. É tudo o que os midiocratas não querem.

Daí que vejam "desvirtuamento", quando a televisão pública deseja formalizar em lei o direito de captar publicidade que já exerce na prática. O fato de explorarem uma concessão pública para fins privados sem qualquer contrapartida ao Estado, salvo os impostos que pagam (quando pagam), certamente não vem ao caso, na análise que fazem. Ou seja: as emissoras comerciais podem faturar bilhões sem pagar um tostão pelas concessões que utilizam, mas o Estado não pode arrecadar esse mesmo tostão no mercado publicitário, porque é "antiético". É uma lógica mais que conveniente.

Quer dizer, então, que a publicidade em televisão pública não deve ser regulada? Que não se deve aclarar o que significam, na prática, "publicidade institucional" e "apoio cultural"? Que a precariedade legal e a rotina do fato consumado que imperam no mercado televisivo em geral devem eternizar-se, porque a boa regulação é aquela que não atrapalha os negócios – sejam eles privados ou públicos?

Certamente não. A publicidade em TV pública deve ser regulada, mas para que seja autorizada. A injeção de recursos captados no mercado anunciante é um instrumento de equilíbrio financeiro que protege as emissoras públicas das idiossincrasias de governantes, sempre tentados a fechar a torneira dos repasses de verbas na primeira dificuldade de caixa que enfrentam. Uma televisão pública que tenha independência política do governo, mas dependa do dinheiro que venha dele, nunca terá real autonomia. O acesso à publicidade, se não garante, reforça essa autonomia.

Responsabilidade social e interesse público

O mercado anunciante, as agências de publicidade e as emissoras comerciais sabem muito bem o que significam "publicidade institucional" e "apoio cultural". As Casas Bahia, por exemplo, sabem que não vão explodir em vendas quando inserem publicidade na TV Cultura, para financiar a digitalização do acervo da emissora, um patrimônio da cultura brasileira (serviço que, aliás, já está bem adiantado). Sabem que estão fazendo uma ação de responsabilidade social, de amplo interesse público, e que o seu retorno é de imagem, é a simpatia que merecem pelo esforço, portanto um retorno institucional. Sua agência também sabe disso, e as emissoras comerciais idem.

A confusão que se estabelece entre publicidade institucional e comercial vem da ausência de tradição do mercado brasileiro, na produção de peças publicitárias do primeiro tipo. Ainda é anti-econômico para os anunciantes investir em filmes institucionais, para veiculação exclusiva em TV pública. Se tiverem custos de produção, além dos custos de veiculação, a equação ficará pesada e desmotivará o apoio cultural que desejam dar às emissoras públicas. Mas isso pode se resolver se emissoras, anunciantes e agências trabalharem juntas, na produção de materiais institucionais que sejam adequados à grade da televisão não-comercial e tenham custo compatível.

Sim, muito bem, mas ao fim e ao cabo a inserção de publicidade não vai desvirtuar mesmo a programação, produzindo também ali as baixarias e os programas de apelo fácil, vazios de ética e de conteúdo? Não, se a publicidade for minoritária no conjunto das receitas das emissoras públicas, para que a lógica comercial não domine, e se for rigidamente concebida, aplicada e controlada, com espírito público e no interesse coletivo. É algo plenamente possível, tanto que a TV Cultura de São Paulo, a TVE do Rio de Janeiro, a Rede Minas, a TVE-Bahia, a TVE-RS e tantas outras mantém intacta a sua credibilidade, mesmo com os comerciais que veiculam.

Em resumo, se a idéia de regular a publicidade da futura TV Brasil vem para viabilizá-la e para fortalecer todo o campo público da televisão, que seja bem-vinda e discutida com a seriedade que merece. Mas se vem, como em muitos outros assuntos, como álibi para que a televisão comercial iniba o crescimento do setor público na radiodifusão, deve ser rechaçada com todo o vigor.

Quem são os inimigos da TV Brasil?

Três notícias recentes da mídia impressa, publicadas sem qualquer alarde, revelam quem são os principais inimigos da TV pública, que deve entrar no ar em dezembro. “O presidente do PSDB, Tasso Jereissati, fez ao ministro Guido Mantega uma exigência adicional para que os tucanos concordem em votar a favor da CPMF. Querem que o governo, ‘para mostrar que está mesmo disposto a cortar seus gastos correntes’, arquive a idéia ou, pelo menos, adie a implementação da Empresa Brasil de Comunicação”, afirma a primeira. Já a segunda registra que “o DEM, ex-PFL, deve questionar na Justiça a medida provisória que criou a TV Pública. O partido afirma que ingressará no Supremo Tribunal Federal com uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), argumentando que não há ‘urgência e relevância’ que justifique a edição da MP”.

Além da oposição de direita, as poderosas redes privadas de televisão também estão preocupadas com a TV Brasil. Segundo notícia publicada na coluna Outro Canal, do jornal Folha de S.Paulo, elas estão agindo nos bastidores para sabotar a iniciativa. “Globo, Record e SBT decidiram pedir aos parlamentares que apresentem emendas definindo o que é publicidade institucional e apoio cultural. A idéia é limitar o financiamento da TV pública com publicidade… ‘A radiodifusão não é contra a TV pública. Nossa preocupação é com a captação de publicidade. Ou as emissoras são comerciais ou sobrevivem apenas de recursos oficiais’, diz Daniel Pimentel, presidente da Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão)”.

Abalo na hegemonia

A pressão da mídia privada para sabotar ou limitar o alcance da TV Brasil será violenta e terá o apoio explícito ou enrustido da influente bancada parlamentar dos radiodifusores – a mesma que sabota a instalação da CPI para averiguar a sinistra venda da TVA, da Abril, para a Telefônica ou que renova, sem critérios ou transparência, as concessões públicas. Acostumada a reinar sozinha, usufruindo dos milionários recursos em publicidade e manipulando as consciências, ela teme a concorrência de uma rede pública de qualidade, mais plural e democrática. A ditadura da mídia, que sofreu forte desgaste na sucessão presidencial e que teme os efeitos da convergência digital, sabe que a TV Brasil, com subsídios e competência, pode comer importantes fatias da audiência.

Neste sentido, a medida provisória 398, que criou da Empresa Brasil de Comunicação, gestora da nova rede pública, representa um abalo no poder hegemônico da mídia privada. Ela ficará ligada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, hoje comandada por Franklin Martins. Surgirá da união do patrimônio da Radiobrás e da Associação Educativa Roquete Pinto, que dirige a TVE do Rio de Janeiro. Além da direção executiva, que será presidida pela jornalista Tereza Cruvinel, terá um conselho curador composto por 20 membros, sendo quatro ministros de Estado, um representante dos funcionários e 15 pessoas da “sociedade civil”, indicadas segundo a “representação regional, diversidade cultural e pluralidade de experiências profissionais”.

Avanços e limites

De acordo com a MP, a Empresa Brasil de Comunicação terá como diretrizes a complementação ao sistema privado; promoção do acesso à informação por meio da pluralidade; produção com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; e a promoção da cultura nacional, com estímulo à produção regional e independente. Além disso, a MP determina a sua atuação de forma autônoma em relação ao governo federal e a participação da sociedade civil no controle da aplicação destes princípios. Quanto ao financiamento, a MP prevê diversas fontes: dotações orçamentárias, exploração de serviços de radiodifusão, publicidade, doações, incentivo fiscal, entre outras. Calcula-se que ela terá uma receita inicial de R$ 350 milhões.

Mas o avanço expresso pela TV Brasil, ao enfrentar a ditadura midiática e contemplar princípios mais democráticos, não anula as críticas dos movimentos sociais. Manifesto assinado por várias entidades, como a CUT e o MST, condena o modelo de gestão da emissora com a imposição dos nomes da sua direção executiva e conselho curador. “Com um conselho indicado pelo presidente, a TV pode já nascer sem autonomia e independência, objetivo maior de uma emissora que se pretende pública. Não é a mera existência do órgão gestor que confere à emissora este caráter. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência em relação a governos e mercado, funcionando com base na gestão democrática e participativa”, afirma o documento.

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi).