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Desafios para a universalização da 2G e da 3G no Brasil

Dezessete anos após a implantação do primeiro celular no Brasil e uma década após a implantação do celular digital de segunda geração, mais de 2 mil municípios ainda não contam com qualquer tipo de serviço móvel. As freqüências ali se encontram disponíveis para implantação imediata da 2G, mas os avanços da respectiva cobertura são lentos, dada a falta de interesse comercial na exploração do respectivo serviço.   

Através da Consulta Pública (CP802), a Anatel lançou a proposta da concessão de licenças 3G nas grandes cidades, condicionando-as ao provimento de cobertura 2G em todos os municípios com menos de 30 mil habitantes, no período de dois anos, assim como ao provimento de cobertura 3G em 60% desses mesmos municípios, num período de até cinco anos. Em síntese, a idéia lançada é a de que o novo negócio da 3G seja tão vantajoso para as operadoras a ponto de estas poderem bancar a universalização da cobertura da 2G e, em grande parte, da 3G, num curtíssimo espaço de tempo.   

Em sintonia com o elevado número de contribuições à CP802, parece-nos válido indagar se a licença 3G constitui uma real contrapartida à realização da universalização das coberturas 2G e 3G, lembrando que, em muitos desses municípios, nem a primeira geração do celular ali chegou, tantos anos após o lançamento do serviço móvel no Brasil.   

Absteremo-nos aqui de fazer conjecturas pormenorizadas sobre custos, mesmo porque se trata de um tema afeto às operadoras. Também não nos ateremos aos aspectos jurídicos envolvidos. Preferimos avaliar o tema à luz do mercado mundial já estabelecido, geralmente um juiz razoavelmente imparcial, pairando acima de teorias e opiniões.   

Visão mundial    

Aproximando-se de 3 bilhões de usuários ao redor do mundo, a 2G inequivocamente representa um dos maiores mercados de massa do planeta. Contando com economias de escala imbatíveis, ela continua avançando para as camadas sociais cada vez mais baixas da população mundial. Nos países desenvolvidos, no entanto, a 2G começa a ser substituída pela 3G, de forma cada vez mais rápida e intensa.   

Temos, portanto, dois grandes movimentos no mercado móvel mundial e não apenas um: 2G em direção à baixa renda e 3G em direção à alta renda. Ilusão acreditar que estaremos atendendo os próximos dois bilhões de usuários da base da pirâmide social mundial, com renda entre US$1,- e  US$4,- diários, unicamente através da tecnologia 3G, cujos custos de produtos e de prestação de serviços se encontram num patamar mais elevado que o da 2G. Desconhecemos, aliás, casos mundiais significativos de implantação da 3G com objetivo de atender populações de baixa renda, ao menos em bases economicamente sustentáveis.    

Quanto ao Brasil, a prática indica que o país se encontra aderente a esse panorama internacional. Ao tempo em que se verifica grande unanimidade dentro da sociedade quanto à necessidade de promover a cobertura 2G para todos os brasileiros, os grandes atores do mercado sinalizam que o tiro de largada para a implantação da 3G nos grandes centros urbanos já foi dado. A pressão pela implantação do UMTS em 850MHz, por exemplo, é um sinal evidente dessa situação.   

Nessas condições podemos afirmar, ao menos dentro da ótica mundial, que tanto a implantação da 3G nos grandes centros urbanos quanto a universalização da 2G nos pequenos municípios se alinham com os movimentos globalmente observados. A universalização da cobertura da 3G nestes mesmos municípios, no entanto, indica ser uma política exclusivamente local, fora da rota dos grandes movimentos internacionais.     

Assim sendo, acreditamos que a exigente meta de cobertura 3G estabelecida na CP802 mereça uma reflexão, mesmo porque, muito provavelmente, ela nos colocaria na posição de um dos poucos países do mundo emergente a contar com tão elevado nível de cobertura, em tão pouco tempo.   

A macro equação financeira 2G + 3G   

A transição da 2G para a 3G reflete um caso típico de mudança de geração tecnológica e que se soma ao fenômeno da convergência. Estruturalmente falando, trata-se de um cenário de ampliação dos serviços prestados pelas operadoras e de aumento de suas margens de comercialização. Além dos serviços 2G de voz e de SMS já amplamente comoditizados, serão oferecidos aos usuários os novos serviços multimídia da 3G, com melhores margens de comercialização, aí incluído o acesso a internet e intranets corporativas, música, programas de TV e muito mais.   

Por essa razão, pode-se afirmar que os novos negócios da 3G, se bem estruturados financeiramente, acabarão por apoiar o avanço da penetração da 2G. Há quem queira acreditar que a 3G possa drenar recursos do avanço da 2G, prejudicando sua disseminação. Isso valia, no Brasil, alguns anos atrás, quando a equação financeira da 3G ainda não fechava. Com a queda dos preços, ela passa a ser uma fonte de recursos adicional para ajudar na universalização da 2G e não o contrário. Lembre-se aqui do repique de contratações 2G em países europeus após a implantação da 3G. A conseqüência foi a de que, em alguns países daquele continente, a penetração do serviço celular acabou saltando para muito além dos 100%.   

Finalmente, vale informar que alguns atores do mercado já reconhecem a necessidade de ter que se assegurar a saúde financeira dos negócios 2G no longo prazo, principalmente à medida que ela avança para a base da pirâmide social, que na maior parte se encontra em regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Para isso, torna-se imprescindível reformular os tradicionais modelos de negócios no sentido de adequá-los ao respectivo entorno, garantindo que sejam economicamente sustentáveis a despeito da baixa e baixíssima renda dos consumidores. Um exemplo concreto de atendimento a esse tipo de objetivo encontra-se reportado no adendo mais abaixo.   

3G para a inclusão digital   

Certamente a 3G pode ser considerada uma excelente solução de apoio à inclusão digital, principalmente pela qualidade e estabilidade superior da conexão de dados, cobertura, login instantâneo, segurança, etc., assim como pela capacidade de reunir num único aparelho celular multimídia, mais econômico que um computador, boa parte da funcionalidade deste último. O problema é que nos pequenos municípios onde a 2G ainda não existe, a implantação da 3G ainda não se justifica pelo lado econômico. Na verdade, as dificuldades acabam sendo praticamente as mesmas com as quais o Governo atualmente se defronta na busca do equacionamento da inclusão digital: os projetos não são auto-sustentáveis e por isso exigem a intervenção e o aporte de recursos pelo Estado.   

Síntese    

Como contribuição aos debates associados à implantação da 3G no Brasil, acreditamos ter deixado aqui nossa opinião quanto aos potenciais problemas decorrentes da associação do licenciamento 3G nos grandes centros urbanos, com a obrigação da quase-universalização da cobertura 3G no país. Caso, no entanto, isso seja uma diretriz política do Governo, parece-nos haver dois caminhos principais para assegurar o avanço da 3G nas pequenas localidades:  

a)estimulá-la no Edital 3G através de contrapartidas perenes (redução de impostos, taxas, etc) e/ou,  
b)realizá-la através de projetos específicos de inclusão digital, com verbas para isso destinadas.    

Novos modelos de negócios    

Tradicionalmente os modelos de negócios de telecomunicações vieram sendo desenvolvidos nos países industrializados, com foco no nível de renda de suas populações. À medida que esses modelos evoluíam no tempo, os respectivos produtos e serviços se massificavam, tornando-se acessíveis aos mercados emergentes. Muito lentamente, eles migravam em direção à base da pirâmide social mundial, sem ali nunca se enraizar. Seu vigor também nunca permitiu que se chegasse com serviços ubíquos aos pequenos povoados isolados e de baixa renda dos países pobres e emergentes.   

Se esses modelos de desenvolvimento não são ótimos, eles sempre existiram e assim foram aceitos, mesmo porque nunca houve quem conseguisse viabilizar tecnologia de ponta a custo reduzido, de outra maneira. Por outro lado, esse tipo de modelo de desenvolvimento acabou deixando metade da população mundial sem acesso aos serviços de telecomunicações. Mas, se agora, em pleno século XXI, autoridades e atores do mercado desejarem promover a universalização dos serviços de telecomunicações, haverá que se desenvolver novos modelos de negócios exclusivamente focados nos mercados de baixa e baixíssima renda.   

Dentro desse espírito, a Nokia Siemens Networks vem implantando experiências no continente asiático, com apoio de autoridades, para levar o serviço móvel às pequenas localidades afastadas e às pessoas com capacidade de desembolsar US$3,- mensais para os serviços de telecomunicações. Tal modelo baseia-se na existência da figura do microempresário de telecomunicações que, atuando em parceria com uma operadora, passa a operar, manter e administrar a base de usuários de um pequeno vilarejo.    

Todo o modelo proposto é suportado por soluções tecnológicas inovadoras do padrão mundial GSM, extremamente simples, de baixo custo de aquisição e de operação, com equipamentos de telecomunicações alojados na própria residência do microempresário. Todos ganham com a solução: a operadora que passa a explorar comercialmente um mercado que de outra forma lhe seria deficitário, o microempresário que passa a ambicionar um negócio cada vez maior e os usuários que passam a alcançar serviços públicos à distância, aos quais antes não tinham acesso, senão pessoalmente. Obviamente que esse modelo inovador e de baixo custo exige atenção dos reguladores e dos formuladores de políticas, na medida em que não se pode atender aos assinantes dessas pequenas localidades exatamente dentro dos mesmos padrões estabelecidos para os grandes centros urbanos.   

Até o momento, as experiências realizadas em solo asiático têm sido bem-sucedidas, podendo ser replicadas em países como o Brasil.

* Mario Baumgarten é engenheiro e Head of Corporate Affairs da Nokia Siemens Networks Latin America