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PL que permite espionagem na internet será votado nesta terça

A mais importante comissão da Câmara dos Deputados, a de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), pode aprovar nesta semana um projeto de lei que vai, na prática, legalizar a espionagem generalizada, sem autorização da Justiça, dos dados pessoais dos usuários de internet. Se isso se confirmar, abre-se caminho para uma mudança radical no Marco Civil da Internet (MCI), lei aprovada em 2014 e que tornou-se referência internacional como garantia de direitos na rede mundial de computadores.

O texto que vai à votação nesta terça-feira 22 é um substitutivo do deputado Juscelino Filho (PRP-MA) ao Projeto de Lei 215/2015, de autoria do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), e que traz propostas de outros dois projetos apensados – PL 1547/2015, do deputado Expedito Netto (SD/RO), e PL 1589/2015, da deputada Soraya Santos (PMDB/RJ), que apresentou mudanças significativas ao texto.

Ele não apenas altera o MCI prevendo que os registros de conexão (o número IP, a data e horário da sua conexão à rede) e de acesso a aplicações de internet (que sites ou aplicativos você visitou ou utilizou) possam ser obtidas por “autoridade competente”, sem depender de ordem judicial – como hoje. Mas também autoriza tais órgãos a acessar seus dados pessoais e o conteúdo de suas comunicações privadas (e-mails e mensagens no Whatsapp, por exemplo).

Ou seja, se ele for aprovado, uma “autoridade competente” – sobretudo a polícia e o Ministério Público – não precisará mais justificar para o Poder Judiciário por que precisa dos dados de um determinado usuário que está sendo investigado. Não haverá um juiz para avaliar se aquele acesso é aceitável ou não. E, sem uma definição clara do que é “autoridade competente”, qualquer órgão que se diga “competente” pode acessar seus dados pessoais.

O projeto também explicita que qualquer pessoa poderá solicitar judicialmente a retirada de um conteúdo publicado na internet que possa ser entendido como calúnia, injúria e difamação ou que a associe a um crime do qual já tenha sido absolvida.

Assim, reforça-se a possibilidade de qualquer site receber uma ordem judicial para remover um fato (com ou sem julgamento) que possa ser considerado prejudicial à honra de alguém (inclusive dos políticos e autoridades públicas). Em casos de ofensa online, deixaria de ser obrigatória inclusive a existência de uma queixa do atingido, abrindo a possibilidade do Ministério Público poder ajuizar processo por conta própria.

O projeto também avança na linha punitivista e dobra a pena no caso de crimes que tenham o “emprego de equipamento, aparelho, dispositivo ou outro meio necessário à realização de telecomunicação, ou por aplicação de internet” (Art. 2o). Para qualquer um desses crimes, não caberá fiança, ou seja, a pessoa acusada vai presa e não pode responder em liberdade. Quando o crime resultar na morte da vítima, a pena seria ampliada cinco vezes.

#PLespião

Da forma como está, o substitutivo do deputado Juscelino Filho representa um ataque à privacidade dos usuários de internet, já que dados e conteúdos das comunicações poderão ser acessados de forma bastante generalizada, sem qualquer crivo judicial. Com o fim da exigência de ordem judicial, assegurada no Marco Civil, cairá por terra a necessidade de que esse acesso seja concedido após o exame de um juiz em relação aos diferentes direitos em jogo. De acordo com o art. 23-A, incluído na proposta de substitutivo, qualquer autoridade policial poderá requerer esses registros do provedor de conexão ou das aplicações online e acessá-los sem maiores garantias.

Você, usuário, pode ter seus e-mails, mensagens no Facebook ou Whatsapp invadidas e lidas diante de uma mera solicitação da polícia se tiver, por exemplo, feito qualquer manifestação na rede que possa caluniar, injuriar ou difamar alguém. Será que os deputados estão legislando em causa própria para perseguir e reprimir aqueles que os criticam?

Essa postura vai na contramão de toda a construção e mobilização para a aprovação do Marco Civil da Internet, que teve como fundamento básico o reconhecimento da Internet como um espaço que potencializa o exercício de direitos e o usuário como o sujeito desses direitos. Ao contrário, o PL 215/2015 reforça a concepção do internauta como um criminoso em potencial e pune a prática de crimes na rede com mais severidade do que no contexto offline.

Ao criar o direito de acesso aos registros de conexão e aplicações e até mesmo aos conteúdos das comunicações privadas sem ordem judicial, o texto tenta destruir um dos pilares do Marco Civil, conquistado a partir de longas e complexas negociações com diversos setores, e que instituiu na obrigatoriedade de autorização judicial o elemento chave para a proteção da privacidade em equilíbrio à investigação de ilícitos na Internet.

É por este motivo que entidades de defesa dos direitos dos usuários classificaram esse projeto como #PLespiao.

Com o discurso do crescimento dos crimes na internet, mais uma vez parlamentares tentam ressuscitar o vigilantismo, quando no restante do mundo a tendência é de legislações que protegem a privacidade das pessoas. Pior: pretendem fazer isso sem qualquer debate com a sociedade, já que os projetos estão previstos para tramitar apenas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, sem passar por nenhuma comissão de mérito antes de irem ao Plenário.

O que está por trás do texto é flexibilizar os direitos conquistados no Marco Civil, justamente no momento em que o Parlamento e também o governo federal discutem uma lei para a proteção de dados pessoais.

A aprovação do PL 215/2015 neste contexto está sendo considerado um retrocesso por diversas entidades da sociedade civil, em especial aquelas reunidas na Articulação Marco Civil Já, que lutaram pela aprovação da lei no ano passado, defendem os direitos dos usuários nas redes e estão conclamando os internautas preocupados com a sua privacidade a pressionarem os parlamentares.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Como o governo pode economizar bilhões restringindo a propaganda de bebida na TV

O Senado deve votar no segundo semestre o PLC 83/2015, que prevê mudanças na Lei 9.294/96, proibindo a propaganda de bebida alcoólica nas emissoras de televisão e de rádio e demais meios de comunicação.

Um em cada três brasileiros deixou de fumar depois que o Congresso Nacional proibiu a publicidade de cigarros na TV, no final dos anos 90.

Ainda assim, em 2011 o governo gastou mais de R$ 20 bilhões no tratamento de pacientes com doenças relacionadas ao cigarro. O valor equivale a 30% do orçamento do Sistema Único de Saúde daquele ano e é 3,5 vezes maior do que a Receita Federal arrecadou com produtos derivados do tabaco no mesmo período.

O Brasil perde 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em decorrência de problemas relacionados ao álcool. O custo do uso abusivo de bebida alcoólica atingiu, em 2014, algo como R$ 372 bilhões.

Todo ano, motoristas embriagados matam 50.000 pessoas. As vítimas de traumatismo chegam a 500 mil pessoas. A maioria dos feridos são levados para um pronto-socorro público. Os planos de saúde não devolvem nada ao SUS. Quem paga a conta dos feridos e mutilados é o cidadão, com seus impostos.

Dilma enviou um orçamento com previsão de déficit de R$ 30,5 bilhões, o que corresponde a 0,5% do produto interno bruto do país, e pediu ajuda ao Congresso para que encontrem saídas juntos.

O governo precisa cortar sem dó seus excessos e fazer muitos ajustes, mas é importante que, assim como a corrupção, certos comportamentos não sejam mais tolerados.

Por que aumentar impostos da população e cortar certos benefícios sociais se existem alternativas que podem beneficiar a todas as classes sociais?

Fazendo uma conta rápida, dá para ver onde economizar bilhões, salvar milhares de vidas e ainda ter um bom troco para investir em prevenção e educação, assim como aconteceu com o cigarro.

Os dois maiores adversários de uma decisão corajosa e responsável do Congresso para evitar o desperdício inestimável de vidas e de dinheiro são, pela ordem: o modelo de financiamento de campanhas eleitorais e o regime de concessão de rádio e TV.

No primeiro caso, várias carretas lotadas com R$ 242 milhões foram entregues pela indústria de bebidas para 76 deputados de 16 partidos nas últimas eleições.

Somente Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, recebeu sozinho um caminhãozinho com mais de 1 milhão de uma empresa da Ambev.

O financiamento de campanhas de políticos deixa evidente que os interesses de algumas empresas são opostos aos interesses da população e do país.

No segundo caso, a indústria de bebidas despeja anualmente mais de 4 bilhões de reais em publicidade em emissoras de rádio e TV e estima-se que mais de 80 senadores e deputados possuem centenas de concessões de rádio e TV espalhadas em todo pais. Os congressistas são parte deste negócio bilionário.

O Ministério da Saúde, a OMS (Organização Mundial de Saúde) e centenas de organizações não governamentais são radicalmente contra qualquer publicidade de cerveja na TV.

A opinião pública, diferentemente do que aconteceu com o cigarro, ainda não está ciente da relação direta entre a publicidade de cerveja e as tragédias urbanas com acidentes de carros, especialmente com os jovens.

As grandes empresas de comunicação silenciam sobre este tema. Há, inclusive, a regra interna de uma grande emissora de TV de jamais mostrar latas de cerveja em reportagens a respeito de acidentes automobilísticos.

A ABERT, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, atua fortemente para manter seu território, as agências de publicidade lucram com as comissões das emissoras e o Conar, Conselho Nacional de Auto Regulamentação Publicitária, que reúne empresários de comunicação, alega que qualquer restrição a publicidade de bebidas seria “bullying” da liberdade de expressão (sic).

A consequência do atual estado de coisas é que as empresas de bebidas e de mídia ampliam seus lucros enquanto os cidadãos ficam com o ônus dos problemas de saúde e pagam sozinhos uma conta cada vez mais alta, em todos os sentidos.

Cada um faz suas escolhas, não se está discutindo no Congresso o direito de beber ou fumar, nem proibir seu uso. Mas estimular o consumo de álcool, da forma como a publicidade faz na TV e no rádio, não falar abertamente sobre isso e nem tentar impedir esta epidemia de mortes, é uma covardia sem fim e uma falta de amor ao próximo — além de não ajudar em nada a economia do país.

Escrito por Marcelo Godoy
para Diário do Centro do Mundo

Canal da Cultura pode inovar com TV pública não-estatal e descentralizada

Por Arthur William*

Depois do anúncio da criação dos canais da Cidadania e da Educação, previstos no decreto de 2006 que instituiu o padrão de TV digital no Brasil, o governo federal divulgou, na última semana, a criação do Canal da Cultura. Agora, é o Ministério da Cultura (MinC) que tem, em suas mãos, uma poderosa ferramenta para inovar a comunicação pública no Brasil. E ouvir a sociedade é o primeiro passo. A medida surge como possibilidade para a construção de um sistema público de comunicação plural com TVs não-estatais. Mas para tal é preciso fugir dos erros do passado e acelerar sua implementação.

Infelizmente, antes de um diálogo com a sociedade, foi assinada a portaria sobre o tema, em parceria com o Ministério das Comunicações. É verdade que trata-se de um texto genérico, que não apresenta definições sobre como se dará o funcionamento do novo canal. Mas a própria portaria, como já ocorreu com outras ações da pasta, poderia ter passado por um processo de consulta pública antes de ter sido firmada. Tampouco o Ministério tornou público um estudo realizado no ano passado, em parceria com a Universidade de Brasília, sobre a viabilidade de implantação do Canal da Cultura. A pesquisa analisou questões como gestão, financiamento, plataformas e conteúdo, e é fundamental que seja aproveitada no processo de implantação do novo canal.

A radiodifusão está em crise e um novo modelo de televisão pública pode dar novos horizontes a este tipo de comunicação. Por isso não é possível esperar muito para acertar o passo.

O Canal da Cultura deve ser um espelho das demais políticas públicas do MinC, descentralizando suas ações e a produção do conteúdo a ser veiculado, e permitindo a cogestão da emissora com a sociedade. Esta foi a indicação do ministro Juca Ferreira durante debate com artistas da Baixada Fluminense; sinalização confirmada pelo secretário do Audiovisual, Pola Ribeiro. Centralizar sua operação e a programação do canal, mesmo que em forma de curadoria, seria um erro. Uma das grandes falhas na regulamentação do Canal da Cidadania foi justamente conceder a exclusividade de sua operação por parte do poder público. A medida do Ministério das Comunicações tem impedido a instalação da emissora em municípios onde não há vontade do Poder Executivo local – mesmo havendo interesse da sociedade civil e já funcionando um canal comunitário na TV por assinatura.

Resultado dessa opção do Canal da Cidadania é que apenas 6% dos municípios brasileiros solicitaram a outorga e, quase três anos depois da sua regulamentação, apenas a cidade de Salvador avançou no processo. Isso porque, na verdade, a TVE Bahia transformou-se em Canal da Cidadania.

Já o Canal da Educação depende 100% da ação do MEC para se concretizar, num cenário de grandes cortes de recursos na TV Escola e recentes demissões na Acerp, responsável pela produção da TV.

Aprendendo com o passado recente, o Canal da Cultura poderia experimentar um modelo que deu certo na Rádio Cúpula dos Povos da Rio+20. A emissora comunitária, que funcionou temporariamente durante o encontro paralelo da sociedade civil à convenção da ONU sobre o clima, teve sua outorga concedida pela EBC, porém era operada pela própria sociedade. Uma das possibilidades para o novo Canal da Cultura é esta. O MinC poderia viabilizar a outorga para a operação direta do Canal por Pontos de cultura, TVs comunitárias e Pontões de Mídia Livre. Isso ajudaria na rápida implementação da política pública e fortaleceria a comunicação pública não-estatal, ainda muito pouco valorizada no Brasil.

É claro que seriam necessários investimentos de fomento à produção e distribuição de conteúdos. Mas o Ministério da Cultura tem capacidade de envolver a ANCINE (agência reguladora e fomentadora do audiovisual) e sua própria estrutura interna, que já possuem programas de incentivo ao Canal da Cidadania, e as próprias TVs do chamado campo público. Pastas como a Educação, a Saúde e até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) desenvolvem ações de cultura e comunicação que poderiam se somar na implementação do Canal da Cultura – antes mesmo da criação do sonhado fundo para a comunicação pública no país.

Além do financiamento do Canal da Cultura, a gestão é outro desafio a ser superado. A manutenção de modelos centralizados e verticais de gerenciamento de redes bate de frente com as redes distribuídas da mídia livre e da cultura digital. A sociedade não quer apenas exibir programas na grade desta nova TV. Ela quer ir além da produção e cogerir a emissora. Isso significa implantar o funcionamento de conselhos, audiências, consultas e debates, primordiais para que uma televisão seja realmente pública.

Outro ponto diz respeito à tecnologia. O sistema de TV digital adotado no Brasil é extremamente subutilizado. Quase nenhuma emissora faz uso da multiprogramação ou da interatividade, tampouco pensa estratégias para mobilidade. A grande maioria dos canais apenas repete a programação do sistema analógico em alta definição, desperdiçando os avanços que a digitalização proporciona. O Canal da Cultura tem a oportunidade de experimentar a multiprogramação, com iniciativas que atendam às diretrizes normativas, sejam elas produzidas por universidades, comunidades ou pelos poderes públicos locais.

Estabelecer espaços fechados aos quais as iniciativas devem se adequar é o que o Ministério das Comunicações faz com as rádios e TVs comunitárias há anos, tendo como consequência a ilegalidade de boa parte das emissoras realmente comunitárias e a legalização de muitos canais controladas por grupos políticos e religiosos.

Em outras políticas públicas, o MinC já optou pelo reconhecimento dessas iniciativas. Da mesma forma que pontos de cultura de Santarém, no Pará, e de uma favela carioca são diferentes, os Canais da Cultura devem considerar o atendimento à política pública – o que pode ser secundarizado se tiverem que obedecer a dezenas de requisitos burocráticos.

Para agilizar seu processo de implantação, é possível utilizar a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que já possui infraestrutura instalada em vários estados, e compartilhar desta rede. Isso garantiria a veiculação de conteúdos em alta definição, a recepção por dispositivos móveis, a interatividade e a multiprogramação com outros canais culturais. Isso não significa, contudo, dividir a atual frequência da TV Brasil com os demais canais públicos previstos no decreto da TV Digital, mas sim compartilhar espaços e equipes para viabilizar a transmissão em frequência própria.

Um acordo firmado esta semana entre Ministério das Comunicações, MEC, MinC, Secom, Ministério da Saúde e EBC vai justamente neste sentido. O objetivo anunciado é ampliar o alcance dos “Canais de TV Digital do Poder Executivo”. É importante lembrar, entretanto, que o decreto que criou a TV Digital no Brasil fala em “canais públicos”, e não estatais. O maior erro que o governo federal pode cometer neste momento é se apropriar dos canais da Cidadania, da Educação e da Cultura para transmitir programação de entes governamentais. Outro risco é que, no processo de compartilhamento da infraestrutura da EBC, desista-se da concessão de outorgas próprias para cada um desses canais e eles sejam obrigados a se contentar com uma faixa de programação da atual TV Brasil – o que reduziria brutalmente o espaço no espectro para os novos canais públicos. A íntegra do documento de acordo ainda não foi publicizada.

Mas, para o Canal da Cultura, são muitas as possibilidades. É preciso abrir já este processo de construção, para além do GT interno do Ministério da Cultura. Muita gente tem contribuições a dar: artistas, movimentos, ONGs, sindicatos, entre outros coletivos. A atual gestão deve pensar políticas públicas que não dependam dela mesma. Elas passarão e a sociedade não pode ficar refém dos gestores de plantão para ter garantido um direito que lhe é fundamental: a comunicação. O canal é da
cultura e não do ministério.

* Arthur William é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

No 7 de Setembro, gritemos por uma comunicação democrática

Por Paulo Victor Melo*

Denunciar a manipulação e a violação de direitos pela mídia e anunciar a necessidade de democratização dos meios de comunicação. Essa é a síntese do tema da comunicação no Grito dos Excluídos deste ano, que tem como lema “Que país é esse, que mata gente, que a mídia mente e nos consome?”.

Ao chegar a sua 21ª edição, o Grito dos Excluídos – manifestação popular realizada anualmente desde 1995 – evidencia que o debate sobre comunicação é atual, diz respeito ao caráter da democracia brasileira e, por isso, deve ser amplo, com a participação de todos e todas.

E nada melhor que os setores que organizam o Grito dos Excluídos – movimentos sociais, organizações populares e coletivos de direitos humanos – para protagonizar esse debate nas ruas de todo o País, durante o 7 de Setembro. Afinal, são esses segmentos que, dia após dia, têm seus direitos violados pelos meios de comunicação, em especial pela televisão.

Assistida cotidianamente por 94% da população, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, a televisão brasileira tem como um dos seus pilares justamente a propagação de conteúdos que violam direitos de mulheres, jovens, idosos, negros e negras, indígenas, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência e população LGBT.

Dois formatos são emblemáticos nesse sentido: os programas de auditório que exploram conflitos pessoais e abusam da exposição das mazelas de pessoas em situação de vulnerabilidade psicológica e social; e os programas policiais, que, com base no discurso de ódio e do preconceito, incitam o crime e a violência, criminalizam a pobreza, invadem domicílios e desrespeitam, de todas as formas, a dignidade humana.

Somam-se a esse cenário comentaristas e apresentadores que, utilizando-se de espaços públicos (é sempre importante lembrar que rádio e televisão são concessões públicas), estimulam a “justiça com as próprias mãos” como saída para resolução dos nossos conflitos sociais, comemoram ao vivo o extermínio da juventude negra e defendem a redução da maioridade penal. Exemplos não faltam: José Luiz Datena, Marcelo Rezende, Rachel Sheherazade, Luiz Carlos Prates e tantos outros pelo País afora.

E cabe frisar: essa realidade de permanente violação de direitos humanos pelos meios de comunicação tem como aliadas a omissão e a conivência do Estado brasileiro. O mesmo Estado que, como diz o lema do Grito dos Excluídos, “mata gente”. Omissão e conivência que são verificadas, por exemplo, no fato de o Ministério das Comunicações quase não se manifestar diante das constantes violações ou no fato da legislação estabelecer 89 mil reais como valor máximo para pagamento de multas pelas emissoras que violem direitos, uma cifra irrisória para as principais redes de TV do País.

Mas não encerram por aí a omissão e conivência do Estado que mata gente com a mídia que mente. A permissão para que políticos com cargo possuam propriedade de radiodifusão, desrespeitando o artigo 54 da Constituição Federal; a permissão do oligopólio, também em oposição ao que diz a Carta Magna; a ausência de regulamentação da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal; e a negativa em garantir o conteúdo regional e independente na programação do rádio e da TV são outros exemplos de como a relação entre Estado e meios de comunicação se constituiu ao longo da nossa história.

Diante disso, não restam dúvidas que, no dia em que se celebra a independência oficial do Brasil, é preciso denunciar a mídia que mente e viola direitos e ampliar, nas ruas, o coro dos que gritam por uma comunicação democrática. Só assim a diversidade de vozes, cores e ideias existentes na sociedade, e que caracteriza o Grito dos Excluídos, será refletida nos meios de comunicação.

*Paulo Victor Melo é jornalista, doutorando em Comunicação e Política na Universidade Federal da Bahia e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A violência que cala toda a sociedade

Por Helena Martins*

O assassinato da repórter Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, jornalistas de uma TV afiliada à rede norte-americana CBS, na quarta-feira 26, enquanto faziam uma entrevista ao vivo, chocou o mundo. Mostrou a vulnerabilidade humana, bem como a perversidade de quem, friamente, dispara contra outros humanos sem se esquecer de registrar cada segundo com uma câmera. Afinal, no império da imagem, um “caso” como esse não poderia passar despercebido.

Mas a brutalidade do que ocorreu, cujas circunstâncias ainda não foram totalmente esclarecidas, pode ter a força de suscitar o debate sobre o cotidiano de violência ao qual é submetida a pessoa que trabalha com comunicação.

Tensões, ameaças, conflitos e mesmo mortes são mais comuns do que imaginamos. E os motivos que geram essas situações envolvem, na maior parte dos casos, a defesa do interesse público, a investigação e a denúncia daqueles que controlam o poder – e, muitas vezes, também os meios de comunicação, numa associação que tem sido apontada, no Brasil, como coronelismo midiático.

Também na última quarta, em uma audiência pública que tratou sobre o tema na Assembleia Legislativa do Ceará, o presidente da Associação de Imprensa do Sertão Central do estado, Wanderley Barbosa, foi claro ao relacionar as questões. De acordo com ele, conforme consta na reportagem do jornal O Povo: “No Interior, o rádio é um meio de comunicação muito poderoso e tudo que se fala tem repercussão. A grande maioria das emissoras pertence a políticos, e o radialista está no meio dessa história de rivalidade”.

A audiência foi motivada pelo assassinato do radialista Gleydson Carvalho no estúdio da Rádio FM Liberdade, em Camocim (CE), enquanto trabalhava, no dia 6 de agosto. Na mesma data, o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), Edison Lanza, estava no Brasil a convite de organizações, entre elas o Intervozes, para debater a garantia dos direitos no País. Ao saber do ocorrido, a relatoria manifestou preocupação com a situação. No Ceará, apenas este ano, quatro radialistas foram assassinados.

Todas as mortes ocorreram em cidades do interior e envolveram discussões políticas, conforme apuração dos órgãos competentes. No caso de Gleydson, a denúncia do Ministério Público é clara. Ela cita como motivo o “desprezível sentimento de intolerância às concepções diferentes e críticas feitas à gestão de Martinópole por mais virulentas que fossem”.

Esse tipo de crime mostra a perpetuação da lógica de resolução de conflitos com a imposição do poder pela força. Fica claro, portanto, que, além de calar uma voz, a violência extrema é utilizada para calar a dissidência, o debate, a livre opinião. E as violações não atingem apenas um indivíduo, mas toda a sociedade que, ou acaba privada do acesso à informação, ou recebe apenas aquilo que não gerará incômodo, muito menos abalará as estruturas do poder.

Essa cultura perversa coloca o Brasil em terceiro lugar na lista de países onde o exercício da profissão de jornalista é mais perigoso na América Latina, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras. Os números são alarmantes.

Já o relatório do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), hoje Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), mostra que entre 2009 e 2014 ocorreram pelo menos 321 casos de violações de direitos. As situações são diversas e envolvem agressões, ameaças de morte, atentado a veículo de comunicação, assédio moral, cerceamento da atividade profissional, detenção arbitrária, hostilização, perseguição, sequestro e assassinatos – que chegaram a 18 no período citado.

Importante salientar que o “envolvimento de autoridades e policiais locais na violência contra comunicadores é uma das evidências mais importantes apreendidas dos depoimentos apresentados” ao grupo, de acordo com o relatório. A essa conclusão também chegou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que contabilizou 190 casos de detenção ou violência contra jornalistas em protestos ocorridos entre maio de 2013 e junho de 2014. Do total, 88% dos casos foram provocados por policiais. Em quase metade dos casos (44%), a violência foi intencional.

É fato que, assim como outras muitas violências que vemos cotidianamente, essa é difícil de ser enfrentada por se tratar de um problema estrutural, organicamente relacionado à arquitetura de poder político e econômico historicamente constituída em nosso País. Não obstante, é preciso desenvolver medidas para romper com essa lógica e assegurar o direito à liberdade de expressão, à comunicação e à vida dessas pessoas. E o pontapé inicial disso é tirar os casos de agressão da invisibilidade.

Nesse sentido, as organizações que participaram do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” apontaram a necessidade de constituição do Observatório da Violência contra Comunicadores. O órgão, segundo a proposta apresentada pelo grupo, deveria ser consolidado por meio de cooperação com o Sistema ONU, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Sua gestão deveria ser feita por meio de um Comitê Gestor tripartite, composto por organizações da sociedade civil que atuem na área de combate à violência contra comunicadores, setores do Estado considerados estratégicos para o tema e o Sistema ONU. A proposta é que o observatório conte com unidade de recebimento de casos, sistema de indicadores e, a fim de desenvolver medidas efetivas, mecanismos de proteção. Hoje, a demanda está sendo discutida pelo CNDH e deve voltar à tona com o início dos trabalhos da Comissão sobre Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão do conselho, a qual foi criada recentemente.

Além disso, outras medidas podem ser efetivadas por diversos sujeitos – das empresas de comunicação ao Estado brasileiro. A adoção de equipamentos de proteção, a criação de linhas específicas para comunicadores em programas que objetivam proteger defensores de direitos e a elaboração de um protocolo padronizado de atuação das forças de segurança pública no âmbito das manifestações sobre aplicação do princípio da não violência em circunstâncias como manifestações e eventos públicos são algumas delas. Urge tratá-las com prioridade e envolver a sociedade na luta pela vida e contra todas as formas de violência.

*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.