Violência e medo são valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria
Por Tamara Terso*
“Foi mídia no mundo todo, arrancamos várias cabeças”.
Esta frase, que circulou nas redes sociais nas últimas semanas, faz parte de um funk supostamente composto pela facção criminosa Família do Norte (FDN).
O grupo é acusado, juntamente com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), de ser responsável pelos massacres nos presídios de Amazonas e Roraima (a agora Rio Grande do Norte).
Ele é chave para entender que o fenômeno da violência tem um circuito maior do que a carnificina presenciada nos primeiros dias de 2017, ponta do iceberg da crise vivida na política de segurança pública brasileira.
Desde que os conflitos nos presídios do Norte foram iniciados, a nacionalização da violência midiática compôs a paisagem de violação dos direitos humanos dos presidiários e familiares envolvidos ou não nos episódios de massacre.
As violações, que na maioria dos casos começam com prisões arbitrárias e provisórias, falta de acesso à Justiça, estrutura desumanizada nas detenções, invariavelmente também são encontradas nas coberturas realizadas em TVs e jornais.
Na cobertura dos acontecimentos recentes sites e jornais impressos expuseram corpos sem vida. Foram cabeças, pernas e braços por todos os lados “dando mídia” na primeira página, galerias de fotos e vídeos sem cortes.
A prática de exibir muito sangue e identificar testemunhas se tornou padrão na cobertura das chacinas pelo jornalismo de referência, como o do Estado de S.Paulo, e até mesmo da ala mais ou menos progressista como Folha de S.Paulo e El País Brasil.
Parece que na ânsia de noticiar em primeira mão os acontecimentos, os jornais esqueceram-se das normas que orientam as práticas jornalísticas (Código de Ética dos Jornalistas), o direito à privacidade e à imagem, garantidos pela Constituição, e mesmo alguns marcos internacionais sobre a preservação da dignidade humana.
A Carta Magna brasileira diz em seu art. 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Ainda em seu art. 5º, inciso III, a Constituição assegura ao preso o respeito à integridade física e moral e certifica que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
O direito de informar à sociedade, constitucionalmente garantido aos veículos de imprensa, não pode, portanto, confrontar o direito à privacidade. Há que se promover o equilíbrio entre ambos.
Este equilíbrio, no entanto, tem estado longe dos veículos de mídia brasileiros. Há alguns anos temos denunciado, por exemplo, a veiculação indevida em programas de televisão de pessoas que estão sob a tutela do Estado e a incitação à violência.
Algo que ocorre principalmente nos programas policialescos, que entram nas delegacias com o aval das secretarias de segurança pública, expõem indevidamente vítimas e agressores e desrespeitam a presunção de inocência dos acusados.
Se levarmos em conta que 40% dos detidos hoje no sistema penitenciário brasileiro sequer foram julgados pelos crimes dos quais estão sendo acusados (Relatório Uso da Prisão Provisória nas Américas CIDH/OEA, 2014), implica dizer que parte significativa dos que estão sendo expostos nos veículos de mídia são suspeitos e não criminosos.
Esta tem sido uma prática institucionalizada pelas redações brasileiras, sejam de jornais impressos ou programas de TV.
Para além dos direitos individuais da pessoa humana, há algo nestas coberturas que deve ser levado em conta, e que se expressa pela frase que abre este texto.
Até que ponto noticiar intensamente a ação de facções criminosas, dando visibilidade aos atos de violência extrema, contribui para uma discussão aprofundada sobre o sistema carcerário brasileiro?
Será que a espetacularização da notícia não serve apenas para reforçar uma cultura de violência, dando ao crime organizado, inclusive, maior poder de barganha junto aos poderes institucionalizados?
Infelizmente, violência e medo se consolidaram como valores-notícia do jornalismo brasileiro e a economia criminal absorve estes elementos para desenvolver sua indústria, que cresce a passos largos e tem tentáculos no sistema político, econômico, judiciário e também nos meios de comunicação (ou não é comum políticos eleitos serem apresentadores de programas policialescos que violam os diretos humanos ao mesmo tempo em que são financiados por empresas administradoras de presídios, que por sua vez convivem harmoniosamente com o crime organizado?).
Está ligação perigosa é um prato cheio para o reforço da política de guerra às drogas e encarceramento em massa, rentável para poucos e à custa de vidas pobres, jovens e negras.
O discurso da violência é um fator determinante para que esta economia se mantenha em pleno desenvolvimento e reforce a afirmação genocida de que “bandido bom é bandido morto”.
Não é à toa que vários estados com grandes índices de violência, encarceramento e mortes – São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Distrito Federal – são os que têm os programas que mais violam direitos humanos, com recorde de denúncias na plataforma “Mídia sem Violação de Direitos”, organizada pelo Intervozes, em parceria com a ANDI Comunicação e Direitos e apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.
Daí, chegamos à conclusão que a aderência de 57% dos entrevistados à frase “bandido bom é bandido morto” (pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016), não vem apenas da violência concreta vivida por homens e mulheres das grandes e pequenas cidades, mas do reforço cotidiano narrativo-simbólico de sangue, cabeças e corpos dando mídia nas TVs, PCs e rádios país afora.
Para estancar o sangue nos presídios, o governo de Michel Temer anunciou a construção de cinco novas prisões federais e um conjunto de outras medidas de cunho estritamente punitivista e bélico.
Parece que as ações, um tanto quanto (des)governadas, continuarão, contudo, apostando em tapa-buracos que não levam em consideração a macro-organização da violência, no qual a mídia tem um papel fundamental no reforço ou desconstrução.
*É jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social