Desde que o debate sobre a extensão das restrições à publicidade de bebidas alcoólicas para a menina dos olhos do mercado anunciante – a cerveja – ganhou espaço nos noticiários, há pouco menos de um ano, não há mais espaço livre dos anúncios alarmistas de que a regulação da propaganda é uma afronta à liberdade de expressão. Para os defensores de projetos que estabelecem ou revêem os limites da publicidade de produtos diversamente controversos, o que o mercado publicitário desta vez tenta vender é uma idéia completamente fora do lugar.
O auge da campanha contra qualquer regulação da atividade publicitária foi o 4o Congresso Brasileiro de Publicidade, realizado em São Paulo entre os dias 14 e 16 de julho. Organizado pelas maiores agências do país, a programação do evento contou com um desfile de autoridades do mercado de comunicação pregando a liberdade de expressão comercial. No documento final do evento, destaca-se a denúncia e o repúdio dos congressistas a “todas as iniciativas de censura à liberdade de expressão comercial, inclusive as bem intencionadas”.
A lista das iniciativas diretamente atacadas pela “indústria da comunicação” nos últimos meses incluem uma nova portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a propaganda de medicamentos; a proposta de portaria da mesma agência sobre publicidade de alimentos não-saudáveis e o projeto de lei, aprovado por comissões da Câmara dos Deputados, que proíbe a publicidade infantil. Além, é claro, do projeto de lei que reduz de 13 para 0,5 GL (graus Lussac) a medida para se considerar uma bebida como alcoólica. Com isso, cervejas e vinhos passariam a também ser cobertas pela regulamentação que impede a veiculação de publicidade de bebidas alcoólicas no rádio e na TV entre as 6h e as 21h.
“O mais incrível é que, seja qual for o tema, o debate gira sempre em torno da palavra censura, conceito que nada tem a ver com a regulação da publicidade, e nunca com o mérito da questão”, impressiona-se a advogada Isabella Henriques, coordenadora do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana. “As indústrias – seja a da publicidade, sejam as anunciantes – não querem discutir a obesidade infantil, os efeitos do consumismo entre as crianças, porque as grandes corporações atuam de uma forma nos Estados Unidos e de outra aqui no Brasil, porque continuam vendendo brindes colecionáveis com alimentos não-saudáveis.”
O jornalista Álvaro Nascimento, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz especialista em publicidade de medicamentos, é veemente ao falar do deslocamento das discussões sobre a regulação de diferentes formas de propaganda para o discurso do atentado contra a liberdade de expressão. “É uma forma pusilânime de esconder o debate”, afirma, lembrando que nenhuma indústria farmacêutica menciona que a cada 42 minutos, uma pessoa é atendida pelo Sistema Único de Saúde vítima de intoxicação medicamentosa.
Comércio e liberdades
A estratégia não se restringe, entretanto, aos representantes dos setores da comunicação comercial. O apelo de um “atentado à liberdade de expressão” em um país cuja história é marcada por sucessivos períodos ditatoriais é forte e assumido também pelos anunciantes.
Nascimento cita como exemplo a audiência pública sobre mudanças no modelo regulador da propaganda de medicamentos, realizada em 30 de junho em Brasília. O jornalista conta que, em determinado momento, foi acusado pelo representante do Sindicato da Indústria Farmacêutica de pregar a volta da censura e da mordaça. “Tive de lembrar a ele que censura também é esconder as reações adversas e contra-indicações de um remédio e só expor a parte boa de um produto”, comenta.
Mas na ponta-de-lança da campanha que desfralda a bandeira da liberdade de expressão, estão mesmo as agências de publicidade e o Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar). Este último é responsável pela publicação que, no ano 2000, defendeu publicamente, pelo primeira vez, o conceito de liberdade de expressão comercial. Naquele ano, o Brasil discutia e aprovava medidas que restringiram de forma contundente a propaganda de cigarros, proibindo inclusive o patrocínio de eventos esportivos e culturais.
Nos últimos dois anos, a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) foi além, lançando dois vídeos veiculados nos intervalos do horário nobre televisivo. No primeiro, um grupo de amigos passa por apuros no bar por não saber o nome das cervejas disponíveis. Em seguida, um locutor exalta o papel informativo da publicidade.
No segundo, o ataque é mais direto. Letreiros sobre uma tela branca afirmam que a publicidade não é responsável por motoristas que bebem ou pela violência provocada pela bebida, para em seguida afirmar que “o problema não está na liberdade de expressão da maioria que respeita as leis”.
A carta aprovada pelo GT de Liberdade de Expressão Comercial do 4o Congreso de Publicidade reafirma estes princípios e reforça a noção de que o mercado pode se auto-regular. Afirma com todas as letras que “a publicidade não causa obesidade, alcoolismo, acidentes domésticos ou de trânsito” e que “leis existentes já são suficientes para garantir ampla proteção ao consumidor e seria demais pedir a um anunciante que proponha o desestímulo ao consumo”.
Os argumentos com a palavra liberdade vão além. Diz a carta: “É a publicidade que viabiliza do ponto de vista financeiro a liberdade de imprensa e a difusão de cultura e entretenimento para toda a população.”
Direitos constitucionais
Para a gerente de monitoramento e fiscalização de propaganda da Anvisa, Maria José Delgado, há um desvio conceitual claro no ideário defendido pelo mercado publicitário. Maria José lembra da hierarquia entre direitos, e também deveres, estabelecida na Constituição.
Segundo ela, por estar na ordem do comercial, a publicidade está protegida pelos preceitos do direito econômico: a livre concorrência, a iniciativa privada, o lucro. Porém, estes são direitos subalternos a garantias constitucionais fundamentais, como o direito à saúde, à educação, à habitação, a proteção de crianças e adolescentes, entre outros.
A gerente da Anvisa lembra que, inclusive e especialmente, a liberdade de expressão é um direito fundamental. Mas ressalta: “A publicidade é um ato puramente comercial. A liberdade de expressão, por sua vez, protege idéias, crenças. Onde já se viu 'vender uma idéia'?”
Álvaro Nascimento, da Fiocruz, é incisivo. “O texto constitucional garante o direito à plena informação. Pela natureza da publicidade, a informação que ela faz circular é parcial. Então, o que o mercado defende é a liberdade de dar uma informação parcial.”