Brasil x Argentina: a promoção disfarçada do ódio

Por Bruno Marinoni*

Todos eles foram levados para dentro de uma pequena casa à beira-mar, trancafiados e eliminados. Mais um filme sobre o genocídio nazista? Não. Trata-se de uma “humorada” publicidade de cerveja sobre a “rivalidade” entre brasileiros e argentinos, que vem sendo veiculada desde a partida Argentina e Nigéria, no dia 25 de junho. Qual o problema de os nossos veículos de comunicação alimentarem a xenofobia? De fazerem graça com a proposta de que os hermanos devem ser lançados ao mar, ou ao espaço por nós?

O portal Diário na Copa, do grupo Diário do Nordeste (CE), no mesmo dia 25, publicou uma matéria com a manchete “Argentinos assaltam torcedores e roubam ingressos antes de partida em Porto Alegre”. O conteúdo da notícia aponta que os suspeitos são argentinos, pois vestiam camisas da seleção argentina. E, assim, nossa imprensa acredita possuir elementos suficientes para associar as imagens do crime à de uma nacionalidade específica. Essa é uma equação bem conhecida pelas vítimas de campanhas racistas e xenófobas. Qual o problema de chamar de “assaltantes argentinos” pessoas que vestem camisa da argentina e roubam ingressos?

Uma matéria do site do Globo Esporte do dia 21 anunciava que “a Copa do Mundo registrou na madrugada deste sábado a primeira grande briga entre brasileiros e argentinos”. Qual o problema de se naturalizar a briga entre representantes das duas nacionalidades, já insinuando que ela é a primeira de uma série?

Temos assim exemplos nos quais o espetáculo da Copa do Mundo, a grande competição entre as nações, mostra-se um prato cheio para que a nossa indústria cultural alimente e se alimente da violência (simbólica?). Promover a criminalização de um determinado grupo, a naturalização da violência e a necessidade de eliminação do outro: eis um mecanismo comum que se volta de diferentes maneiras para diversos atores no nosso cotidiano e para o qual é preciso estarmos atentos.

Enquanto na publicidade temos um exemplo que se vale do humor para tentar neutralizar qualquer possibilidade de crítica, tem-se por outro lado a imprensa utilizando a estratégia do “realismo”, na qual o “relato objetivo do fato” esconde o papel ativo do jornalismo na construção do discurso sobre a realidade. Dessa forma, o discurso que demoniza um determinado grupo tenta nos seduzir tanto de forma indireta (foi só uma piada!) como de forma direta (essa é a verdade).

Alguém pode minorar o fato de que o futebol é um fenômeno midiático e argumentar que essa rivalidade entre brasileiros e argentinos não foi criada pela mídia. Tá legal, eu aceito o argumento. O que não dá para aceitar é que nossa mídia promova tendências à xenofobia e ao preconceito na sua busca por vender cervejas e aumentar sua audiência. Seu papel deveria ser problematizar e combater, ao invés de estimular, o espetáculo do ódio travestido de rivalidade.

* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A grande farsa do avanço em Telecom para a Copa

A Copa do Mundo era uma desculpa para o Brasil resolver as questões de infraestrutura do País. Entre elas, a de telecomunicações, especialmente no que diz respeito à internet. Esse é, pelo menos, o discurso oficial. Analisando os avanços no setor, contudo, o que se percebe é que ficamos com os custos de garantir a transmissão para a FIFA, mas pouco avançamos em ampliação de acesso à conexão ou em preço e em infraestrutura.

A realidade é que, após uma queda de braço entre o governo brasileiro e a FIFA, a organizadora do evento venceu. Em outubro de 2012, durante a Futurecom, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, sustentou: “Eles [FIFA] colocam tudo como infraestrutura, mas temos que negociar. E vamos fazer isso. Não vamos ficar com a conta toda”. Não foi o que ocorreu.

Assim como em diversas outras disputas, o governo Dilma cedeu e, por Medida Provisória, viabilizou a oferta de serviço pela Telebras. A MP 600, de 28 de dezembro de 2012, definiu que a prestação seria feita por meio da subsidiária Telebras Copa.

A Telebras tornou-se, assim, a empresa responsável pela construção da rede de fibra óptica que está sendo usada na transmissão de imagens de alta definição (HDTV – vídeo e áudio) entre as 12 arenas e o Centro Internacional de Coordenação de Transmissão (IBC), no Rio de Janeiro. De 2012 até maio de 2014, a companhia investiu R$ 89,4 milhões na implantação dessa infraestrutura para atender as demandas da Copa do Mundo de 2014.

A rubrica equivale a quase todo um ano de aporte no desenvolvimento de rede para o Plano Nacional de Banda Larga (em 2013, foram investidos R$ 112,8 milhões no PNBL. Em 2012, o valor foi de R$ 104,4 milhões, conforme relatórios apresentados à Comissão de Valores Mobiliários).

A opção pelo investimento em infraestrutura de transmissão para a Fifa parece ainda mais chocante quando se tem em mente que, até dezembro de 2013, a Telebras podia atender diretamente apenas 295 municípios, onde vivem 30% da população brasileira (cerca de 18,3 milhões de domicílios). Em 2012, a estatal atendia o PNBL em 268 municípios. Ou seja, em um ano, a Telebras chegou apenas a 22 novos municípios, de um universo de mais de 5 mil existentes no país – que, sim, tem proporções continentais.

Ou seja, o desafio de interiorizar o acesso à banda larga por meio de provedores regionais e avançar na concorrência de links no atacado para forçar para baixo os preços praticados ainda segue como uma promessa. E mais de mil provedores regionais de conexão à internet (ISPs) aguardam ansiosamente, segundo informa a própria estatal, para contratar o serviço da Telebras e oferecer acesso mais barato e de maior capacidade, nas diversas localidades nas quais as grandes operadoras ainda não chegaram com suas redes fixas.

Para piorar, se coube à Telebras investir no anel óptico que interliga os 12 palcos dos jogos da Copa do Mundo ao centro da Fifa no Riocentro (RJ), a conta do serviço de transmissão foi entregue diretamente a ele, Paulo Bernardo. Ou a nós. Apesar de aparentemente ter esboçado resistência, o ministro das Comunicações sentou na ponta da mesa e desembolsou R$ 110 milhões para pagar os serviços de telecomunicações e transporte de dados para a transmissão de áudio e vídeo durante a Copa do Mundo 2014. Mais uma vez, estamos falando do orçamento anual da Telebras para o PNBL. Enquanto a conta vai ser paga pelo contribuinte, os lucros do evento ficarão com a Fifa.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Uma torcida e muitas vozes pela democratização da mídia

O futebol é uma paixão nacional. E o exercício da nossa liberdade de expressão também precisa ser. Infelizmente, a intensa campanha midiática em torno do Mundial no Brasil tem dado pouco espaço a setores que apresentam, legitimamente, críticas à organização e realização da Copa do Mundo em nosso país. A grande mídia brasileira foi rápida ao destacar os atrasos na construção dos estádios e aeroportos – se aproveitando disso para atacar o governo federal –, mas deixou de lado problemas resultantes das imposições da Fifa ao país e dos lucros estratosféricos que o próprio setor midiático terá com a Copa.

A realidade é que, mais que um grande evento esportivo, a Copa do Mundo tornou-se um gigantesco espetáculo midiático. Mas alguns fatos ficaram longe do centro do noticiário nacional:

* Acesso à informação sobre os impactos da Lei Geral da Copa: a Lei 12.663/13 estabelece uma série de exigências para a realização do Mundial no Brasil – entre elas, o direito da Fifa e aos grupos por ela indicados terem exclusividade de vender produtos nas chamadas Áreas de Restrição Comercial, que agregam tudo o que existe em um perímetro até 2 km em volta dos locais oficiais de competição. Pesquisa feita pela StreetNet Internacional, que reúne organizações de vendedores informais de diversos países, mostra que faltam informações para a população em geral sobre as condições estabelecidas pela Fifa através da Lei. Em um caso como a Copa, a informação deveria ser primordial para participarmos efetivamente como cidadãos/ãs sobre o que estão fazendo em nosso país e o que deixarão para nós como legado deste grande evento.

* O monopólio da TV Globo sobre os direitos de transmissão do evento: o negócio para a transmissão da Copa de 2014 foi fechado há oito anos, no final de 2006. A Globo não informou o valor pago à Fifa para conquistar esse direito. Mas a parceria é antiga: desde 1970 as duas poderosas fazem acordos entre si. Para a detentora dos direitos, também não importa se o valor a ser pago é cada vez mais alto. O retorno é garantido. Só com o que é pago pelos patrocinadores, a Globo embolsou cerca de R$ 1,44 bilhão. O preço de tabela por cota de patrocínio era de cerca de R$ 180 milhões. Adicione à conta o que o grupo ganha com a retransmissão dos jogos para outros veículos. Tal medida reforça a concentração de poder midiático deste conglomerado das comunicações, na contramão de toda a luta pela democratização da comunicação no país, transformando a principal festa do futebol mundial num grande comércio de venda de marcas e produtos e excluindo as redes públicas de comunicação de todos os países de poderem oferecer este produto em suas mídias aos seus respectivos povos.

* Os serviços agregados aos direitos de transmissão dos jogos: o investimento na compra dos direitos de transmissão também volta para a empresa de mídia com uma mãozinha generosa do poder público. Um exemplo foi a festa que antecedeu o sorteio das eliminatórias da Copa, em 2011, no Rio de Janeiro. Prefeitura e Governo do Rio pagaram R$ 30 milhões para a Globo comandar o evento. Entre recursos públicos e privados, o faturamento originado por toda a divulgação da Copa chega a um valor inestimável, já que não há transparência em sua divulgação.

* Repressão às rádios comunitárias: enquanto os grandes grupos de comunicação lucram com a Copa, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) anuncia, como já mostrou este blog, que, durante todo o Mundial, seu aparato de fiscalização – e repressão – às emissoras comunitárias estará reforçado. Em comunicado oficial enviado às organizações que trabalham com a comunicação comunitária, a agência anunciou que vai reforçar a fiscalização para “garantir a viabilidade das comunicações para a Copa do Mundo de 2014”.

Diante desses fatos, é fundamental a defesa do acesso à informação e do exercício da liberdade de expressão dos mais diferentes setores da população. Desde os protestos na Copa das Confederações, diferentes coletivos de mídia, ao fazer a cobertura dos atos, viabilizar a transmissão ao vivo de protestos e apresentar imagens que desmontaram falácias policiais, provocaram um importante debate importante sobre a produção e difusão de informação e conteúdos audiovisuais no país. Ao mesmo tempo, a mídia hegemônica foi, ela mesma, justamente em função do histórico de manipulação da informação que tem em nosso país, alvo de protestos em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Tudo isso deixou muito clara a necessidade dos diferentes movimentos sociais, organizações da sociedade civil, coletivos e ativistas debaterem a sério o tema das comunicações e lutarem pela democratização da mídia no país. Na Copa e durante outros importantes momentos da história do nosso país, o oligopólio dos meios de comunicação invisibiliza e tenta calar as lutas populares. Mais uma vez, em relação ao direito à comunicação, é a população que está perdendo a partida. E virar este jogo é um desafio de depende de cada um/a de nós.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Midialivrista é espancada e detida durante ato público contra a Copa em MG

Por Bruno Marinoni*

“Cala essa boca! Já mandei você calar a boca!”, grita o policial, ao “abordar” Karinny de Magalhães. A integrante da Mídia NINJA cobria as manifestações em Belo Horizonte no dia da abertura da Copa do Mundo, 12 de junho. Pouco depois de sofrer uma série de violências (como ouvir palavrões) dos agentes de polícia mineiros, a garota foi levada em uma viatura.

Segundo informações veiculadas pela Mídia NINJA, Karinny foi mantida por cerca de uma hora nesta viatura, conduzida em sigilo a um quartel, espancada por cinco policiais até ficar desacordada e depois deixada em uma delegacia da polícia civil. Por um infortúnio da garota, o exame de corpo delito se perdeu por aí… Da delegacia, Karinny foi levada para o Centro de Remanejamento do Sistema Prisional Centro-Sul. O alvará de soltura, que liberou a midialivrista e dois ativistas – Henrique de Souza Dutra e Rhuan Joseph Campos – foi expedido somente na noite de sexta-feira (13).

Quem quer que Karinny cale sua boca? Quem pode mandar uma cidadã calar a boca? O que diz Karinny de tão insuportável para que seja necessário uma surra de cinco policiais?

Ouve-se no registro feito, por meio do celular, Karinny dizendo: “você sabe que não pode abordar assim, né?”. Ora mais! Quem ela pensa que é para questionar uma autoridade? Uma cidadã com direitos?

Plano geral

Esse caso de cerceamento da liberdade de expressão mostra de forma clara a sobreposição de dois níveis de violação do direito humano à comunicação. Por um lado, a violência sistemática e estrutural cometida pelo Estado brasileiro e personificada em suas “autoridades”, por meio da intimidação e da violência física e verbal contra alguém que exerce seu direito à comunicação. Por outro, a sonegação e deturpação dos fatos, negando à população seu pleno direito de acesso à informação. Embora o vídeo que transmitia ao vivo mostre o contrário, Karinny está sendo acusada de causar dano ao patrimônio público durante a manifestação.

Num contexto de decisão dos governantes de intensificar a repressão contra manifestantes durante a Copa do Mundo, por interesses político-eleitoreiros ou econômicos, os midialivristas viraram alvo predileto da ação das polícias. Além da detenção de Karinny em Belo Horizonte, quando transmitia ao vivo a manifestação, no Rio de Janeiro, no mesmo dia, a polícia militar tentou deter o “Carioca”, também da Mídia NINJA, porque ele transmitia uma das típicas “abordagens” policiais em manifestações. Carioca só conseguiu se livrar porque foi protegido por outros manifestantes.

Outros midialivristas foram detidos, no Rio de Janeiro, no dia anterior ao início da Copa do Mundo e dos protestos que criticam o campeonato. A imprensa internacional também não passou incólume. As jornalistas Barbara Arvanitidis e Shasta Darlington, da rede de TV CNN, foram feridas por um estilhaço de bomba “de efeito moral” durante a ação da PM em São Paulo, no dia 12.

Resistência

Diante da detenção de Karinny Magalhães, o Ministério Público de Minas Gerais veio a público, por meio de uma recomendação, cobrar a garantia do exercício da liberdade de expressão, informação e de imprensa. O texto destaca que a Constituição Federal “assegura o direito de reunião e de livre manifestação do pensamento a todas as pessoas”. Além disso, expressa que essa liberdade não deve ser garantida apenas a profissionais dos veículos tradicionais. Segundo a recomendação, devem ser “tomadas medidas para garantir o direito de ir, vir e permanecer e o livre exercício da profissão dos repórteres e jornalistas que estejam cobrindo qualquer evento, especialmente, no contexto de possíveis manifestações, independentemente de estarem credenciados ou vinculados a empresas jornalísticas”.

O órgão público constata o que há tempos os movimentos e ativistas que lutam pelo direito à comunicação têm denunciado: “[…] durante os protestos ocorridos em junho de 2013, especialmente durante a Copa das Confederações e no dia 12 de junho de 2014, primeiro dia da Copa do Mundo, vários foram os relatos de ações repressivas e violentas das forças policiais contra os comunicadores que cobriam os protestos, cerceando o exercício legítimo da profissão e o direito da população de ter acesso à informação”.

O MP afirma ainda que a tropa deve ser “orientada no sentido de abster-se de apreender equipamentos de trabalho e memória das mídias dos comunicadores no âmbito da cobertura midiática” e que “possíveis danos causados a equipamentos e objetos alheios, no exercício da função, poderão configurar crime de dano”.

O que está em jogo​

Ao contrário daqueles que associam as críticas à Copa do Mundo a uma “desconexão com a realidade” ou a um sentimento de “anti-brasilidade”, o que aconteceu com Karinny em Belo Horizonte é exatamente o retrato da realidade violenta que ela denuncia – e que agora, provavelmente mais do que nunca, vivenciou na pele. E não há como negar que o mega-evento foi, no último período, o principal intensificador das dimensões tenebrosas dessa realidade, algo que nenhum cálculo político ou comercial seja capaz de tornar menos real.

O cala boca dirigido a Karinny e demais comunicadores, porém, não vem só do policial. O agente é apenas a boca que fala e que reproduz o autoritarismo herdado de geração em geração. É a fala da Casa Grande que se generalizou. Observado em um quadro mais amplo, Karinny foi agredida porque estava em meio a uma manifestação, veiculando críticas à Copa do Mundo e aos seus promotores. As forças repressivas foram enviadas para fazer Karinny e outros se calarem. Creem que já temos democracia demais.

Como apontamos no post anterior desse blog, ficou claro que os governos brasileiros (incluindo a polícia militar de Minas Gerais, no caso estadual, e das Forças Armadas, no caso federal) mobilizaram todo o aparato repressivo do Estado para estancar as críticas à condução da Copa do Mundo. Infelizmente, os fatos tem comprovado que um amplo espectro político conservador está interessado no sucesso do megaevento, mesmo ao custo da suspensão de direitos fundamentais.

*Bruno Marinoni  é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Mídia e forças de segurança em guerra contra críticos

Por Bruno Marinoni*

Acordei nesta quarta, dia 11, com a notícia de que a polícia estava levando para detenção um punhado de ativistas, dentre eles, dois midialivristas (Tiago Rocha e Eduardo Castro). As justificativas estavam relacionadas à convocação de manifestações, formação de quadrilha, incitação à violência e compra irregular de fogos de artifício. Em outras palavras, algo que poderia facilmente se dizer de qualquer grupo que se organize para assistir a uma partida de futebol.

Desde a quarta série, tenho problemas de concentração em véspera e em dia de jogo do Brasil. A equação que começou a se formar na minha cabeça após ler a notícia que envolvia 10 pessoas detidas, 14 delegacias, 17 mandados de detenção, busca e apreensão, 15 mil homens extras nas ruas do Rio de Janeiro (entre policiais e militares), 15 mil seguranças privados contratados pela Fifa, 57 mil homens das Forças Armadas mobilizados pelo país, 100 mil homens das polícias estaduais e federais, 12 prefeituras, 11 governos estaduais, 1 Distrito Federal, 1 governo federal, 1 federação internacional de futebol, 1 rede nacional de televisão, X empreiteiras, Y marcas de cerveja… Não consegui fazer o cálculo. O resultado, porém, me pareceu assustador.

Suspeitei que estivesse havendo algum “excesso”. Afinal, que perigo representariam um punhado de garotos liderados pela famosa Sininho?! A fadinha das histórias infantis é conhecida (apropriadamente ou não) por ser a mentora intelectual do grupo conhecido como “garotos perdidos” (vulgo Black Blocks), que têm por objetivo principal da vida promover a anarquia na Terra do Nunca (vulgo, Copa do Mundo). Teve sua foto estampada na capa d’O Globo no ano passado, como se fosse uma bandida. Nunca lhe deram o direito de resposta. Mas ela não foi a única. O jornal também estampou a condenação prévia de diversos ativistas, sob o título nada discreto “Crime e Castigo”, em outubro, quando 70 dos 190 presos em uma manifestação no centro do Rio foram indiciados pela nova lei do crime organizado.

Notícias do front

De acordo com o relatório “Violações à Liberdade de Expressão”, publicado pela Artigo 19, agentes do Estado (polícia, políticos e agentes públicos) estariam envolvidos em 23 (77%) dos casos graves de violência contra comunicadores registrados em 2013 como mandantes. Uma boa amostra da participação e disposição do Estado no projeto de silenciamento da sociedade em “dias normais”.

Agora, já é tarde para afirmar: imagina na Copa! Pode-se dizer que o juiz já apitou e foi dada a partida. Os detidos de ontem, embora já liberados, estão tendo a suas vidas devassadas. As operações policiais convergiram para a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) e seus computadores estão sendo vasculhados. Curiosamente, ninguém os acusou ainda de tráfico de pó de pirilimpimpim. Liberdade de expressão e privacidade que se vão para as cucuias!

A operação de criminalização e intimidação está em processo. Reúne um amplo espectro partidário que vai dos governos do DEM aos do PT, mobilizando todo o aparelho repressivo do Estado. Já havia acontecido algo semelhante na terça-feira (10), no Distrito Federal, quando membros do Comitê Popular da Copa foram “visitados” por supostos fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o que mobilizou a Anistia Internacional e a OAB na defesa das liberdades políticas. Até agora o caso não foi esclarecido.

De um lado, o interesse econômico das empresas e corruptos (lucro da Fifa, dos patrocinadores, das empreiteiras, da mídia etc) e, de outro, o interesse político dos governos e partidos no poder (cálculo eleitoral e afirmação ideológica de projetos políticos) precisam, nesse contexto, de um grande discurso autoritário capaz de sintetizar as variadas dimensões do ufanismo e do terror que podem paralisar e mobilizar a população. Para isso, porém, não operam sozinhos. Obviamente, os donos da mídia, proprietários dos meios de produção de ideologias, não deixariam nossos caros conservadores na mão.

Propaganda de guerra

Vejamos as principais manchetes da página na internet d’O Globo que se referem à Copa do Mundo na noite do dia 11, véspera da abertura da Copa: “Polícia do Rio investiga ativistas ligados a Black Block”, “Protestos no dia da abertura preocupam Forças Armadas”, “Dilma: não teremos tolerância com vandalismo”, “Metroviários de SP descartam greve na abertura da Copa” e “Em clima de Mundial, Congresso fica esvaziado na véspera”.

O recado está dado: as forças de segurança estão mobilizadas para deter “ativistas, vândalos e manifestantes”; estes estão mobilizados e preocupam as forças de segurança; o resto da sociedade se mobiliza para assistir a Copa. Cada um no seu quadrado. No quadrado do discurso da mídia, esquadrinhou-se o lugar dos “criminosos” e dos “cidadãos de bem” (vulgo, torcedores). Chamem a polícia, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica para garantir uma distância segura!

Uma das matérias da segunda-feira (9) do mesmo jornal poderia ser considerada um verdadeiro desfile militar impresso. A manchete dizia praticamente tudo que desfila pelas linhas que se seguem: “Militares assumem policiamento de estradas, aeroportos, hotéis e centros de treinamento”. Nunca antes na história desse país… Ou, quem sabe, nos tempos de Ditadura Civil-Militar.

Esse mesmo grupo que fomenta o discurso ideológico da criminalização e intimidação tem tido, além dos lucros advindos da exclusividade de transmissão (leia-se monopólio), alguns benefícios dos nossos beneficentes governantes. Segundo matéria do portal UOL de fevereiro, a prefeitura do Rio de Janeiro vai gastar, por meio da Rio Eventos, mais de R$ 3,8 milhões em um estúdio de TV em Copacabana para emissoras privadas cobrirem a Copa do Mundo. Assim, quem se beneficia com o dinheiro público é a Rede Globo, que detém os direitos de transmissão no Brasil. Além disso, utiliza o espaço da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) para realizar a cobertura. Apropriação privada do bem público, você vê por aqui! Plim-plim.

Enquanto isso, a direita tradicional vem a público dizer que se a Copa não der certo a culpa é do governo federal. O governo federal e seus defensores vêm a público dizer que se a Copa não der certo a culpa é da direita e dos manifestantes. Espremidos em meio à politicagem e a máfia das megacorporações encontram-se os removidos, os silenciados, os devassados, os manifestantes, os grevistas, os NINJAS e uma série de sujeitos de uma sociedade em ebulição.

* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.