Culpados, até que se prove o contrário

Por Mônica Mourão*

A negação do pedido de habeas corpus para 23 manifestantes que tiveram sua prisão preventiva decretada a partir de investigação do Ministério Público traz novamente à tona a atuação da mídia na criminalização das lutas sociais.

Apesar das manifestações contrárias às prisões por parte de mandatos parlamentares e instituições como sindicatos, federações profissionais, além de organizações como a Anistia Internacional, Tortura Nunca Mais e a Ordem dos Advogados do Brasil, que chamam atenção principalmente para a falta de respaldo legal e as evidências de perseguição política nas ações, o enquadramento das matérias produzidas pela mídia conservadora prioriza a versão do Judiciário.

O tom da cobertura dos jornais da TV Globo e do diário impresso O Globo reforça a visão de que, quando se tratam de manifestantes, todos são culpados até que se prove o contrário. Obviamente, isso é feito de forma a pontuar “o outro lado”, jargão usado para manter, na prática, um ideal de objetividade e neutralidade que serve bem ao discurso de autoridade jornalístico, mas pouco a uma cobertura efetivamente equilibrada. “O outro lado” está, nesse caso, sempre se defendendo de acusações já colocadas anteriormente como verdadeiras. “O outro lado” está acuado, está se defendendo no tribunal midiático e no de justiça.

A matéria do Bom Dia Brasil desta terça-feira (22/7), que repetia trechos também veiculados na noite anterior no Jornal Nacional e domingo no Fantástico, foi aberta com a apresentadora afirmando que, das pessoas acusadas de praticar atos violentos nas manifestações de rua no último ano, cinco já estão presas. As demais são consideradas, pelo Judiciário e pela mídia, “foragidas”.

O “já” de alívio pela garantia da ordem pública conduzia o restante da matéria. Logo depois de apresentar o trecho de um vídeo em que a advogada Eloísa Samy, que teve a prisão preventiva decretada e pediu asilo político ao Uruguai, nega qualquer envolvimento com atos violentos, a edição da matéria é cortante. Um “mas” abre a sequência de acusações feitas contra ela em inquérito policial. O jogo textual e de imagens forma um discurso lógico: a culpa recai sobre aqueles ombros, sem sombra de dúvidas.

Além da falsa neutralidade, as matérias têm mostrado uma tendência antiga no jornalismo brasileiro: a relação de subserviência com fontes que são autoridades, como a policial. Faz parte de tal relação tanto o uso acrítico de informações oriundas da polícia como a cessão, muitas vezes com exclusividade para certos meios de comunicação, de materiais sigilosos da investigação. (Paradoxalmente, os próprios acusados e seus advogados não conseguem ter acesso aos autos dos processos). Para não restar dúvidas da isenção das informações policiais, o tempo de investigação para se chegar às prisões preventivas, de sete meses, foi repetido como mais uma ferramenta de respaldo da dupla autoridade imprensa-polícia.

A veiculação midiática de gravações feitas para inquéritos policiais está banalizada e foi fartamente utilizada nas matérias de TV dos últimos três dias. Uma delas, em que a ativista Elisa Quadros, conhecida como Sininho, pede ajuda de seu padrasto para ficar longe de cidades onde pode ser perseguida, prova muito mais o seu temor por uma punição do que qualquer ação criminosa praticada por ela.

Sininho, inclusive, é um caso emblemático na cobertura criminalizante, feita desde 2013, sobre os atos de massa. A moça foi catapultada à condição de líder pela própria mídia, desde matéria no jornal O Globo, cuja capa tratava da prisão de “70 vândalos”, em outubro de 2013. A condição de liderança sempre foi negada por ela e por movimentos sociais e, até hoje, quase um ano depois, nenhuma prova contundente foi apresentada. Desde então, o jornalismo se retroalimenta de sua própria cobertura. E Sininho se vê presa – também – num emaranhado de narrativas que se sustentam umas nas outras.

E os demais casos? O casal que comemora o lançamento de um coquetel molotov e as amigas que combinam uma oficina de fabricação de “drinks” (código para o coquetel)? Mesmo aqui cabe uma reflexão básica: estão sendo presas ou procuradas pessoas que ainda não tiveram seu julgamento concluído. Não se sabe ainda se são ou não culpadas. E, se forem, não se sabe qual pena terão de cumprir. A ação, contrária às normas democráticas, de punir primeiro para averiguar depois é feita pelo Judiciário com a aclamação e o reforço de parte da grande mídia. Prática corriqueira com presos comuns em programas policialescos, com a repercussão política das atuais prisões preventivas, o modus operandi ganha mais fortes contornos de absurdo.

Outra reflexão simples que parece ter faltado ao setor de jornalismo das Organizações Globo é sobre como são feitas as coberturas quando a violência está do lado de lá. O que seus jornais tiveram a dizer quando, no ano passado, milhares de pessoas – muitas que simplesmente tentavam ir embora das manifestações – foram encurraladas pelas ruas do Centro da cidade e da Lapa, no Rio de Janeiro, com bombas de gás lacrimogêneo? O que disseram quando, no dia da final da Copa do Mundo, policiais mantiveram pessoas em cárcere a céu aberto no entorno da praça Saens Peña, na Tijuca, em meio a bombas de gás e chuvas de cassetetes? O silêncio pode ser tão revelador quanto as palavras.

Enquanto isso, longe (de uma distância outra, nem sempre geográfica) das grandes avenidas e praças da cidade, quantas vezes Cláudias e Amarildos precisam provar o que estão fazendo naquele lugar e naquela hora, são sempre aquele “outro lado” que se defende de não ser traficante, de não ser criminoso?

No jornal impresso O Globo, pouco espaço para brechas, sutilezas, não ditos. Na edição de hoje (22/7), a matéria com o título “Conexão sindical” associa sindicatos de professores, da saúde e de petroleiros (Sepe, Sindprev e Sindpetro) do Rio de Janeiro a “protestos violentos”, conforme escrito pelo jornal e mostrado em foto com jovem provocando um incêndio na rua. Boxes com a retranca “Opinião” deixam muito evidente: para o veículo, tratar as prisões como casos de repressão política é “balela”, conforme edição de 15 de julho. Dois dias depois, manifestantes em geral e uma professora (Camila Jourdan) foram comparados a grupos que “desembocaram no terrorismo” na Alemanha, na Itália e no Peru. Também no último dia 15, o jornal alertou: “O Estado apenas cumpre sua função de defender a sociedade da ação de grupos violentos”.

E quem nos defende do Estado? Quem nos defende do discurso criminalizante do maior conglomerado de mídia do país? Melhor buscar rapidamente uma defesa, pois do crime de livre pensamento, manifestação e expressão, do crime de teimar em viver numa democracia, também somos culpados.

*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Edward Snowden: agora é a nossa vez de colaborar

Por Bruno Marinoni*

No dia 16 de julho, foi apresentada no parlamento australiano, terra de Julian Assange, uma proposta de lei para perseguir e prender jornalistas que noticiarem informações vazadas sobre operações de espionagem. A ação acontece às vésperas de expirar o prazo de asilo concedido pela Rússia à Edward Snowden e expressa a mobilização das forças conservadoras para defender nacionalismos tacanhos contra o avanço dos direitos humanos no plano internacional.

No mesmo dia 16, mais de 60 entidades brasileiras entregaram, no Ministério da Justiça, uma carta dirigida à presidenta Dilma Roussef, reivindicando um posicionamento sobre o pedido de asilo para Snowden no Brasil. A ação faz parte de uma campanha em apoio ao exilado, que tem sua permanência na Rússia garantida apenas até o dia 31 de julho.

Snowden afirmou, em entrevista exclusiva à Rede Globo, que havia oficializado o seu pedido de asilo no Brasil, mas o chanceler brasileiro Luiz Alberto Figueiredo alegou que o Ministério das Relações Exteriores não recebeu a solicitação. O analista de sistemas teria solicitado também a prorrogação da sua permanência na Rússia, além da colaboração de outros países como o Equador, que hoje abriga o australiano Julian Assange, outro perseguido por revelar informações ultrassecretas da diplomacia internacional.

Motivos para colaborarmos com Edward Snowden não nos faltam. Podemos começar, por exemplo, pelo mais elementar: retribuição. O ex-funcionário da CIA revelou um esquema estadunidense de espionagem por meio da agência NSA que tinha como um dos seus principais alvos o Brasil. Agora que o conhecemos, podemos tomar algumas medidas necessárias para nos proteger. Por isso, somos gratos.

Se tivermos alguma inclinação para qualquer tipo de nacionalismo, mais uma vez temos motivos para ajudar Snowden. O analista de sistemas permitiu que conhecêssemos um mecanismo que roubava informações relativas à estratégia política e econômica do Brasil, penetrando nos sistemas de comunicação dos mais altos escalões do governo. Até mesmo as investidas sobre as comunicações pessoais da presidenta da República foram reveladas. Mais um ponto para ele.

Destacamos, porém, o motivo que nos aparece como o principal. A ação de Snowden trouxe para o centro da discussão internacional a importância de se regular os sistemas de telecomunicação tendo em vista direitos fundamentais como a privacidade e o direito à informação.

Os direitos fundamentais sobrepuseram-se, assim, às estratégias de concorrência entre nações e as telecomunicações se revelaram como ambiente no qual a tensão entre a violação e a garantia desses direitos se coloca em plano global.

Com o empurrãozinho que nos foi dado pelo caso Snowden, conseguimos fortalecer nossa luta em defesa da garantia de direitos fundamentais, o que resultou na aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil e na realização do NET Mundial, primeiro encontro mundial e multissetorial tendo como agenda central o debate sobre o futuro de uma nova governança da Internet. Defender esse exilado contra a perseguição que vem sofrendo atualmente é reafirmar como prioridade a salvaguarda desses direitos.

A carta entregue no Ministério da Justiça pode ser acessada aqui: http://www.fndc.org.br/system/uploads/ck/files/CartaAbertaaPresidenta-AsiloaoSnowdenPT%282%29.pdf

Mais informações sobre a campanha em: https://www.facebook.com/asiloparasnowden

*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A face repressiva da democracia durante a Copa

Por Mônica Mourão*

Em que ano estamos? O blog do Intervozes faz hoje um jogo de adivinhação com leitoras e leitores. Confira as respostas na sequência.

01. Um jornal passa de mão em mão. Muita gente quer lê-lo, mas poucas pessoas têm coragem de assiná-lo, pois essa lista poderia cair nas mãos da polícia.

02. Policiais entram armados com um fuzil em casa onde estavam uma senhora idosa e uma criança, em busca do pai da menina, que havia se manifestado contra o governo vigente.

03. Jornais e garrafas com material inflamável são usados como prova para prisão preventiva de dezenas de pessoas.

04. Livros considerados subversivos são apreendidos pela polícia.

05. Repórter que cobria ação policial é presa, espancada e xingada por policiais.

06. Jornalistas são chamados para dar depoimento e acabam sendo presos, mas são bem tratados pela polícia.

07. Cinegrafista têm equipamento interceptado para que não realize seu trabalho.

08. Veículo alternativo é impedido de participar de coletiva de imprensa.

09. Credenciais para cobrir setores do governo são negadas a jornalistas.

10. Dezenas de pessoas são presas em suas próprias casas ou locais de trabalho como medida preventiva contra distúrbios civis.

Mais uma vez: em que ano estamos? Essa pergunta teima em vir à cabeça quando aparecem notícias das arbitrariedades cometidas contra manifestantes em 2013 e 2014, pela assombrosa semelhança com ações repressivas feitas pela ditadura civil-militar (1964-1985). Veja agora em que circunstâncias aconteceram os casos.

01. Os leitores do jornal Opinião temiam ter seu nome associado ao veículo, que circulou de 1972 a 1977.

02. A família de Luiz, conhecido como Game Over, está sofrendo investidas da polícia em busca do manifestante, de acordo com relato dele do dia 12 de julho de 2014.

03. Foram expedidos dezenas de mandados de prisão preventiva (os números informados pela imprensa variam entre 30 e 60), dois de apreensão (por serem de pessoas com menos de 18 anos) e três flagrantes, entre sexta (11/7) e sábado (12/7). O crime: suposta organização de atos violentos no ano passado e suspeita de violência na final da Copa do Mundo, neste domingo. Uma garrafa com “material que parece gasolina”, edições do jornal Estudantes do Povo, coletes de imprensa e máscaras de gás fazem parte do material apreendido.

04. No dia 1º de julho desse ano, em protesto na praça Roosevelt, em São Paulo, um exemplar de uma biografia de Carlos Marighella, que estava na mochila de um estudante, foi apreendido pela polícia. Dias antes, também em São Paulo, dois ativistas foram (e ainda estão) presos com base em acusações forjadas.

05. A repórter da Mídia Ninja Karinny de Magalhães foi presa no dia 12 de junho de 2014, quando cobria a abertura da Copa do Mundo. Karinny foi mantida por cerca de uma hora numa viatura, conduzida em sigilo a um quartel, espancada por cinco policiais até ficar desacordada e depois deixada em uma delegacia da polícia civil.

06. Quase toda a redação d’O Pasquim foi presa, em 1970. A edição de número 74 do jornal justificava a ausência da equipe a um surto de gripe. Relatos dos jornalistas dão conta do bom tratamento recebido na prisão, com direito a rodinha de violão com um dos guardas responsáveis pelo grupo.

07. O coletivo cearense Nigéria teve sua câmera “apreendida” por seguranças particulares da Fifa Fan Fest na cidade de Fortaleza, na abertura da Copa do Mundo de 2014.

08. O jornal A Nova Democracia foi proibido de participar da coletiva de imprensa realizada neste sábado (12/7) na Cidade da Polícia, complexo com delegacias especializadas no Rio de Janeiro. O motivo alegado foi que vários dos detidos nesta véspera de final de Copa tinham, em suas casas, exemplares do jornal.

09. Entre 1975 e 1979, 20 jornalistas da sucursal de O Estado de S. Paulo em Brasília tiveram seus pedidos de credenciais negados, e as credenciais de outros 25 foram canceladas.

10. Houve prisões de dezenas de pessoas nas vésperas dos seguintes acontecimentos: golpe de 1964; promulgação do Ato Institucional nº 05 (AI-5), em 1968; abertura e encerramento da Copa do Mundo da Fifa, em 2014.

Uma diferença substancial entre o regime instalado em 1964 e hoje deveria ser que atualmente vivemos sob a vigência da Constituição de 19Adicionar Novo88, considerada um grande avanço democrático pela forma participativa como foi elaborada e pelos preceitos que assegura. Um deles é justamente a liberdade de manifestação, que por envolver a livre divulgação de ideias, valores e reivindicações, relaciona-se diretamente com o direito humano à comunicação. Esse direito inclui a garantia de falar e de ser ouvido, o que, no contexto em que vivemos, passa necessariamente pelo acesso aos meios de comunicação.

Contudo, o quadro atual de violações revela o cerceamento das mídias alternativas e populares, ao mesmo tempo em que a cobertura da imprensa tradicional criminaliza uma vez mais os manifestantes, se apropria do jargão policial e considera todos os ativistas como integrantes de uma “quadrilha armada”, considerando as pessoas perseguidas “foragidas”. Neste cenário, máscaras de proteção contra gás lacrimogêneo, celulares, computadores e até joelheiras viram “objetos suspeitos apreendidos” pela Polícia.

Tragicamente, o apelo cantado por Chico Buarque, em 1974, ainda ecoa: “acorda, amor, eu tive um pesadelo agora”. Quarenta anos depois, o sono e o despertar permanecem intraquilos, e o termo “democracia” soa cada vez mais vazio.

*Mônica Mourão é integrante do Intervozes. Colaborou Juliana Lugão, jornalista.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

“Para que usar o controle remoto?”

Há pouco mais de oito anos, o jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho está, desde a estreia, à frente do programa VerTV, uma produção da TV Brasil, que discute, com especialistas, os conteúdos apresentados pela televisão brasileira, trazendo uma boa dose de reflexão para os telespectadores.

Pesquisador na área de Políticas da Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Lalo acompanha as tendências e novas abordagens da televisão brasileira. Não é à toa que já escreveu quatro livros sobre a sociedade e a televisão.

Em entrevista à revistapontocom, o apresentador faz uma breve análise da atual programação da televisão brasileira. Na opinião dele, a audiência está mais exigente, mas ainda há muito a se fazer. “Infelizmente o público brasileiro, pela história de nossa TV, dificilmente tem a oportunidade de conhecer outros tipos de programas e programações. Fica difícil para o telespectador exigir níveis melhores de qualidade sem que ele conheça um referencial desse tipo. São várias gerações educadas para acreditar que esse modelo de TV é o único possível de existir”, destaca.

Acompanhe a entrevista:

Na avaliação do senhor, qual é o mérito do VerTV?

Laurindo Lalo Leal Filho – O programa estreou no dia 16 de fevereiro de 2006. Está portanto há mais de oito anos no ar. Acredito que o mérito principal tem sido o de colocar em debate o papel da televisão na sociedade brasileira sobre a qual ela exerce grande influência. Costumo dizer que a TV no Brasil trata, bem ou mal, de uma gama praticamente universalizada de assuntos, só não trata dela mesma. O VerTV procura, na medida do possível, realizar esse trabalho.

E de que forma isso acontece na prática?

L.L.L.F. – O programa procura levar ao público análises críticas sobre a televisão brasileira e, a partir daí, mostra, com exemplos nacionais e internacionais bem sucedidos, que um outro tipo de televisão é possível. Infelizmente o público brasileiro, pela história de nossa TV, dificilmente tem a oportunidade de conhecer outros tipos de programas e programações. Fica difícil para o telespectador exigir níveis melhores de qualidade sem que ele conheça um referencial desse tipo. São várias gerações educadas para acreditar que esse modelo de TV é o único possível de existir. Uma outra contribuição do VerTV para esse debate é dada pela sua reprodução e análise realizadas por professores em diferentes cursos no país. O programa acabou se tornando um importante instrumento didático, utilizado em salas de aula.

O senhor acabou de falar sobre o público que não tem outras referências de TV. Mas o senhor não acha que essa ‘audiência brasileira’ está mais exigente?

L.L.L.F. – Acredito que sim. Já houve momentos piores em nossa TV. Basta lembrar o que ocorria nos auditórios na década de 1990. Nessa época surgiu a Ong Tver e depois a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” como tentativas de enfrentar aquela situação. O próprio programa VerTV é resultado daquele momento. Essas iniciativas contribuíram para ampliar a visão critica da sociedade sobre os produtos oferecidos pela televisão. As coisas mudaram um pouco. Já não se vê, por exemplo, “teste de DNA” nos palcos ou ataques homofóbicos desferidos por apresentadores. Isso não quer dizer que não exista ainda muito a fazer. A exploração da violência como espetáculo segue revelando os níveis ainda rasteiros de nossa TV. Mas creio que o principal fator do aumento das exigências do público esteja sendo o grande crescimento dos níveis de escolaridade registrados no Brasil nos últimos anos. Pessoas mais ilustradas tendem a se tornar mais exigentes em termos de informação e entretenimento, dos quais a TV é parte importante.

E, por outro lado, o senhor acredita que os canais estão mais preocupados em oferecer qualidade?

L.L.L.F. – Isso não. Infelizmente o referencial único dos canais comerciais são os índices de audiência cujo resultado determina a obtenção maior ou menor de receitas publicitárias. Então as mudanças só ocorrem quando o público começa a se afastar deste ou daquele programa. As mudanças são realizadas apenas para fazer com que a audiência não caia. O critério qualidade é secundário.

E o que seria um programa de qualidade?

L.L.L.F. – São programas que despertem o espírito crítico do telespectador. Que elevem a sua sensibilidade em relação ao mundo e à vida. Ou numa síntese feliz de alguns fundadores da televisão pública europeia: que tornem os temas simples respeitáveis e os complexos agradavelmente simples. Vou dar um exemplo de um programa de qualidade que vi há alguns anos na TV Globo: a Paixão de Cristo, encenada pelo Grupo Galpão nas ruas de Ouro Preto. Excepcional. Reuniu a competência técnica da emissora e o alto nível de qualidade artística do grupo teatral mineiro na abordagem de um tema de fácil assimilação para o público. Pena que tenha sido apenas um raro exemplo de qualidade e não uma constante.

O senhor citou uma TV comercial e o seu foco na audiência. E o que dizer dos outros tipos de TVs, a pública e a estatal?

L.L.L.F. – Essa divisão ainda é muito precária. Na verdade nós temos uma televisão comercial hegemônica, ditando os padrões da TV brasileira, ao lado de um grupo pequeno de emissoras estatais e de outro, ainda mais reduzido, de emissoras que podem ser consideradas públicas. A programação das comerciais apresenta padrões muito semelhantes, todas reproduzindo as mesmas formas que consideram eficazes na luta pela audiência. É por isso que torna-se falaciosa a frase “o melhor controle é o controle remoto”. Para quê usar o controle remoto se ao trocar de canal se vê a mesma coisa? Mudam os cenários, os apresentadores, mas os conteúdos são os mesmos. As poucas experiências em busca daqueles padrões de qualidade que mencionei anteriormente vêm das emissoras não comerciais. Experiências que, quase sempre, não têm continuidade pelos eternos problemas de recursos e de gestão.

O que podemos apontar, hoje, como avanços e desafios na TV brasileira?

L.L.L.F. – A diversidade de ofertas através das TVs por assinatura (para uma parcela privilegiada economicamente da população) e da proliferação das antenas parabólicas têm sido fatores positivos na medida em que oferecem a um público maior canais não comerciais, cuja referência principal não é a busca de elevados índices de audiência. Alguns desses canais, dentro de suas limitações, têm oferecido programas de melhor qualidade, inexistentes nas emissoras comerciais. O desafio maior neste momento é aprovar uma Lei de Meios semelhante a que está em vigor na Argentina. É a única forma de ampliar o número de vozes na televisão brasileira, dividindo o espectro eletromagnético em partes iguais para que emissoras públicas, comunitárias e comerciais. Só assim, a riqueza e a diversidade cultural existente no pais poderá ser vista e assimilada por todo o público brasileiro por meio da TV.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada em revistapontocom e reproduzida de Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

A novela da derrota da Copa na mídia brasileira

Por Ana Carolina Westrup*

Bastou um pouco mais de 90 minutos de jogo – e, claro, o resultado atípico em termos históricos – para que assistíssemos a algo que, se bem analisado, pode se tornar tão intrigante quanto o resultado da semi-final que Brasil e Alemanha protagonizaram. A derrota da seleção brasileira, com o fatídico 7×1 em favor da Alemanha, trouxe à tona mais um episódio de incoerência e superficialidade na cobertura da maioria da imprensa brasileira.

Ninguém questiona a surpresa gerada pelo placar. Mas tão surpreendente quanto foi a rápida mudança na linha editorial de dezenas de emissoras de rádio e TV, sites, jornais e revistas. Do patriotismo exacerbado, com direito a aterrissagem de helicóptero global nos treinos da seleção, ao quase que linchamento público de alguns jogadores e da comissão técnica, salvo raras e honrosas exceções.

Editoriais e opiniões que antes denotavam a seleção alegre, feliz, o grupo unido do menino “Ney’ e de Felipão rapidamente mudaram o tom e elevaram as críticas àquela que já chamam como a pior seleção brasileira dos últimos tempos. Uma situação que beira, inclusive, a esquizofrenia, quando o peso recai sobre os próprios privilégios.

O aspecto mais emblemático é a critica acerca da exagerada exposição da seleção, com a abertura dos treinos e da concentração à imprensa, quando, na realidade, são as grandes emissoras, principalmente a Rede Globo, que se beneficiaram com links diretos, entregas de carta das mães para os respectivos filhos/jogadores e até participação ao vivo em programas de TV.

Já no que diz respeito à exposição dos jogadores, não é exagero falar no circo de horrores ao qual os jogadores da seleção brasileira, de forma quase que punitiva, foram expostos em entrevistas e imagens nos minutos seguintes ao final do jogo.

As desculpas de David Luiz para o público que lotava o Mineirão, acompanhadas pelas câmeras do “plim-plim”; o choro desconsolado de Thiago Silva, filmado quase que na íntegra; e as perguntas ácidas dirigidas aos jogadores dão a esse enredo um contorno sádico e sensacionalista, como se a exposição da imagem sofrida dos jogadores fosse um castigo justificado pelo resultado apresentado, ou uma das melhores formas de consolar a população brasileira e tangenciar o verdadeiro debate a ser feito: os problemas estruturais que enfrenta o futebol brasileiro.

De heróis a vilões, meninos, em sua grande maioria, foram taxados como culpados no julgo midiático, a ponto, inclusive, de serem  comparados a um outro “algoz” do Brasil da Copa de 50. Em entrevista concedida e reproduzida pelos mais diversos canais de televisão, rádios e sites de notícia, a filha de Barbosa – goleiro que tomou um gol do Uruguai no Maracanã – chegou a dizer que, agora, seu pai poderia descansar em paz. Para ela, Barbosa finalmente havia sido libertado de uma maldição de mais de 50 anos e quem deveria carregar esse peso a partir de então seriam os jogadores da atual seleção. Quase um pecado original.

Trata-se de um viés que esconde a última característica dos elementos que foram destacados na cobertura da grande mídia: a superficialidade do debate feito pelos analistas esportivos. Quase em uníssono, as maiores emissoras do país, de forma consciente, definiram um ângulo onde a exposição dos jogadores e da comissão técnica acabaram desviando do foco o debate central e invisibilizado por tanto tempo que pode ter levado a este resultado: o modus operandi do futebol brasileiro, com seus cartolas, privilégios e muitas cifras, sobretudo.

Com poucas exceções, como o programa Linha de Passe na ESPN e o comentário de Kennedy Alencar na CBN, na noite trágica do dia 8 de julho não se discutiu a atual formatação do futebol brasileiro, não foram problematizadas as questões que envolvem a CBF e os seus dirigentes e, tampouco, foi levada à tona uma análise sobre a organização dos campeonatos de futebol no Brasil e o montante financeiro que isso envolve.

Nada disso é à toa. Os números revelam, por exemplo, o lucro que a mais concentrada empresa de comunicação do país angariou nesses últimos dias de Copa. Somente a Rede Globo de Televisão faturou mais de 1,4 bilhão de reais com cotas de patrocínios. Segundo a própria emissora, este seria um dos maiores pacotes de patrocínio em uma Copa do Mundo.

Em uma entrevista ao Portal Lance Net, Alex, o meio campo do Coritiba e membro do Bom Senso Futebol Clube, traduziu o que se passa no futebol brasileiro e a verdade entre a Rede Globo e o CBF:  “A CBF cuida apenas da Seleção Brasileira. Quem realmente cuida do futebol brasileiro é a Globo”, afirmou.

Em uma situação de vacas tão gordas, democratizar a discussão sobre o cenário atual do futebol brasileiro seria extremamente arriscado. Melhor, portanto, criar uma novela da derrota da seleção, onde nenhum capítulo, até agora, retratou ou problematizou a reforma estrutural tão necessária para a nossa dita paixão nacional.

* Ana Carolina Westrup é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.