A expulsão de um agressor do reality show mostra o novo padrão Globo para lidar com casos de machismo
Por Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão*
Ontem, depois de ampla mobilização do movimento feminista nas redes sociais e da atuação da Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, a Rede Globo decidiu expulsar da edição 17 do Big Brother Brasil o participante Marcos Harter. A conclusão da emissora, após consulta a especialistas – como explicou o apresentador Tiago Leifert – foi a de que a participante Emilly Araújo foi vítima de agressão física na madrugada deste domingo, após uma das festas do programa.
Diante do ocorrido, a Rede Mulher e Mídia – articulação que reúne dezenas de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas de todo o País – emitiu nota para manifestar sua indignação e repúdio diante da postura da Rede Globo. Este artigo é baseado na nota da Rede, da qual o Intervozes faz parte, e também numa análise sobre o recente posicionamento da Globo em relação a outros casos de machismo.
Ao contrário do que a produção do programa tenta fazer o público acreditar, a emissora não agiu imediatamente para garantir a integridade de Emilly, muito menos para combater a violência dentro da “casa do BBB”. Quem acompanhou o programa viu, mesmo com as edições do conteúdo registrado, que a estudante, de 20 anos, foi vítima de inúmeras e diversas formas de violência, caracterizadas pela lei Maria da Penha.
A lei, em vigor desde 2006 no País, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8o, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.
Ao longo desta edição do BBB, as cenas exibidas pela Rede Globo na TV aberta já vinham mostrando a repetição e o agravamento de uma postura agressiva e machista por parte de Marcos, marcada por gritos, ameaças e violência psicológica, atitudes que caracterizam claramente um relacionamento abusivo, enquadrados como crime na legislação vigente.
As agressões não se limitaram a Emilly, parceira de Marcos no programa. O médico agrediu verbalmente outras participantes e cenas também mostraram situações de violência contra a mulher envolvendo outros integrantes da casa.
Tais episódios seriam motivos mais do que suficientes para que a emissora agisse e impedisse que a violência se naturalizasse naquele ambiente de confinamento. Mas não. Em vez de cumprir com a finalidade educativa de uma concessão pública de televisão, conforme dispõe a Constituição Federal, a Rede Globo, em busca de manter a audiência do programa e supostamente entreter os telespectadores com as brigas do casal, optou por aproveitar do sensacionalismo e das posturas inquestionavelmente abusadoras e agressivas do participante.
Mesmo alegando que alertava o casal sobre as agressões mútuas, a emissora permitiu que Emilly seguisse submetida a toda sorte de constrangimento, decorrente da exposição pública de sua imagem e da convivência com seu agressor.
Marcos Harter não foi punido pela violência psicológica a que submeteu dia após dia sua colega de programa: só foi expulso do BBB depois que uma lesão física foi comprovada. Ou seja, além de transmitir uma ideia de permissividade diante de agressões, este triste episódio faz crer que, para o Grupo Globo, a violência contra a mulher é tão somente circunscrita à violência física.
Necessário lembrar que não é a primeira vez que assistimos a casos de violência contra a mulher no Big Brother Brasil. Na edição veiculada em 2012, a Rede Mulher e Mídia chegou a enviar representação ao Ministério Público Federal pedindo a responsabilização da Rede Globo diante de um caso de violência sexual.
Na ocasião, uma das participantes foi vítima de estupro presumido quando, embriagada e dormindo, teve sua dignidade violada por outro participante. Infelizmente, cinco anos depois, fica explícito que as condições a que os e as participantes do Big Brother Brasil são submetidas e as “regras do jogo” definidas pela Rede Globo estão longe de respeitar os princípios constitucionais previstos para o serviço de radiodifusão no país.
A agressão a que foi submetida Emilly diz respeito não só a ela, nem às demais participantes confinadas nessa edição do reality. Trata-se de mais uma agressão a todas nós, que assistimos, doloridas, à principal emissora de TV do Brasil explorar comercialmente uma situação que, cotidianamente, oprime, violenta e mata milhares de mulheres.
Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada cinco minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato é, para nós, mais que omissão; é cumplicidade.
Sendo assim, a Rede Mulher e Mídia, uma vez mais, solicitou que o Ministério Público Federal analise o caso em questão e, além das providências que a Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro já está tomando, envolvendo Emilly e Marcos, avalie a responsabilidade da Rede Globo em silenciar durante semanas sobre a violência praticada diante de suas câmeras.
Globo feminista ou reposicionamento de marca?
O novo episódio de machismo no BBB acontece menos de duas semanas depois de a Globo ter sido palco de outro caso de violência contra a mulher. Dessa vez, nos bastidores, praticado e sofrido por funcionários da empresa: na coluna de 31 de março da Folha de S. Paulo chamada #AgoraÉQueSãoElas, a figurinista Su Tonani denunciou ter sido vítima de assédio sexual praticado pelo galã José Mayer.
A resposta da empresa foi a suspensão do ator de qualquer produção dos estúdios por tempo indeterminado, e o caso não foi abafado. Funcionárias da emissora vestidas com camisetas com os dizeres “Mexeu com uma, mexeu com todas” foram ouvidas em programas do canal. Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, enviou comunicado interno reforçando o posicionamento de não abafar esse tipo de violência.
A nota justificava a suspensão de Mayer para “não dar visibilidade a uma das partes envolvidas numa questão que é visceralmente contra tudo que a Globo acredita”; afirmava conhecer e apoiar a campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”; reforçava que o “respeito à diversidade, ao ser humano” fazem parte do Código de Ética e de Conduta do Grupo; e, por fim, num importante post scriptum, deixava claro que esse posicionamento deveria ser compartilhado: “Sinta-se à vontade de mandar estas respostas para suas equipes”. Além da comunicação interna, o caso virou notícia no Jornal Nacional e em outros telejornais da emissora, com divulgação de nota pública da Globo e de mea culpa escrito por José Mayer.
Em fevereiro deste ano, um caso diferente, por não ter acontecido nos estúdios da emissora, já dava sinais do novo posicionamento da Globo. O cantor Victor, da dupla Victor e Leo, um dos jurados do programa The Voice Kids, pediu afastamento para se dedicar ao tratamento da acusação de violência doméstica registrada numa delegacia de Belo Horizonte por sua esposa dias antes. O apresentador André Marques, no início do programa seguinte, anunciou o pedido de saída do cantor e afirmou que “a Globo repudia toda e qualquer forma de violência e acredita que essa acusação precisa ser apurada com rigor, garantindo direito de defesa na busca da verdade”.
Também deixou claro que não haveria nenhuma espécie de silenciamento para proteger o cantor: “O jornalismo da Globo vai acompanhar esse caso para que você saiba tudo que está acontecendo”. André Marques justificou ainda a veiculação de programas com a presença de Victor, por já estarem gravados, para não atrapalhar a competição das crianças. Cenas em que ele aparecia, entretanto, foram cortadas.
Entre críticas pela insuficiência das atitudes tomadas pela Globo (por que Mayer foi apenas suspenso, não demitido? Por que a demora em atuar no caso do BBB?) e celebrações a vitórias da pauta feminista, cabe-nos refletir sobre a relação entre o posicionamento dos telespectadores e as posições tomadas pela emissora. No caso do BBB, assim como no de Mayer, fica evidente o papel que a mobilização do movimento feminista, pelas redes sociais, desempenhou para os desfechos conquistados.
Nesta segunda-feira, durante todo o dia, a hashtag #GloboApoiaViolencia esteve entre os temas mais comentados do Twitter. Nesta terça, #EuViviUmRelacionamentoAbusivo é a bola da vez. A própria coluna #AgoraÉQueSãoElas nasceu como um movimento de ocupação da mídia por mulheres em 2015. A saída de Victor do The Voice Kids certamente não teria ocorrido se o debate feminista não tivesse ocupado espaço na arena pública como fez no último período – algo de que a própria Globo já havia se apropriado na nova temporada do seu Amor & Sexo.
Neste jogo de consensos e dissensos, a Globo se viu obrigada, não apenas por uma questão mercadológica, mas também para se manter em sintonia com os desejos de uma parcela de seu público, a mudar seu padrão de silenciamento. O jogo, entretanto, está longe de ser ganho. Há muito pouco tempo, o apresentador Faustão fez uma clara apologia à violência contra a mulher em seu programa dominical. O pedido de direito de resposta feito à Globo pela Rede Mulher e Mídia foi solenemente ignorado.
Tais mudanças, como já dissemos neste blog, também estão longe de alterar estruturalmente o conteúdo que ela veicula. Enquanto abre espaço para falar da violência contra a mulher e de temas como transexualidade, a Globo segue silenciando as manifestações contra a Reforma da Previdência e defendendo a proposta de retirada de direitos pela gestão Temer – que terá impactos sobretudo sobre as mulheres. Ou seja, a incorporação das pautas feministas tem limites bem delineados ali. E não se pode fechar os olhos para isso.
Porém, num país com altos índices de violência contra a mulher, numa esfera pública que ainda legitima as ações de agressores – basta o pavoroso exercício de ler os comentários das notícias sobre o tema -, o reposicionamento da Globo pode representar avanços. O que é inegável é que eles só vieram como resposta a uma luta diária de nós, mulheres.
*Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão são jornalistas, feministas e integrantes do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes.