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BBB 2017 e Globo: atuação exemplar ou reposicionamento da emissora?

A expulsão de um agressor do reality show mostra o novo padrão Globo para lidar com casos de machismo

Por Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão*

Ontem, depois de ampla mobilização do movimento feminista nas redes sociais e da atuação da Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro, a Rede Globo decidiu expulsar da edição 17 do Big Brother Brasil o participante Marcos Harter. A conclusão da emissora, após consulta a especialistas – como explicou o apresentador Tiago Leifert – foi a de que a participante Emilly Araújo foi vítima de agressão física na madrugada deste domingo, após uma das festas do programa.
Diante do ocorrido, a Rede Mulher e Mídia – articulação que reúne dezenas de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas de todo o País – emitiu nota para manifestar sua indignação e repúdio diante da postura da Rede Globo. Este artigo é baseado na nota da Rede, da qual o Intervozes faz parte, e também numa análise sobre o recente posicionamento da Globo em relação a outros casos de machismo.

Ao contrário do que a produção do programa tenta fazer o público acreditar, a emissora não agiu imediatamente para garantir a integridade de Emilly, muito menos para combater a violência dentro da “casa do BBB”. Quem acompanhou o programa viu, mesmo com as edições do conteúdo registrado, que a estudante, de 20 anos, foi vítima de inúmeras e diversas formas de violência, caracterizadas pela lei Maria da Penha.

A lei, em vigor desde 2006 no País, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8o, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

Ao longo desta edição do BBB, as cenas exibidas pela Rede Globo na TV aberta já vinham mostrando a repetição e o agravamento de uma postura agressiva e machista por parte de Marcos, marcada por gritos, ameaças e violência psicológica, atitudes que caracterizam claramente um relacionamento abusivo, enquadrados como crime na legislação vigente.

As agressões não se limitaram a Emilly, parceira de Marcos no programa. O médico agrediu verbalmente outras participantes e cenas também mostraram situações de violência contra a mulher envolvendo outros integrantes da casa.

Tais episódios seriam motivos mais do que suficientes para que a emissora agisse e impedisse que a violência se naturalizasse naquele ambiente de confinamento. Mas não. Em vez de cumprir com a finalidade educativa de uma concessão pública de televisão, conforme dispõe a Constituição Federal, a Rede Globo, em busca de manter a audiência do programa e supostamente entreter os telespectadores com as brigas do casal, optou por aproveitar do sensacionalismo e das posturas inquestionavelmente abusadoras e agressivas do participante.

Mesmo alegando que alertava o casal sobre as agressões mútuas, a emissora permitiu que Emilly seguisse submetida a toda sorte de constrangimento, decorrente da exposição pública de sua imagem e da convivência com seu agressor.

Marcos Harter não foi punido pela violência psicológica a que submeteu dia após dia sua colega de programa: só foi expulso do BBB depois que uma lesão física foi comprovada. Ou seja, além de transmitir uma ideia de permissividade diante de agressões, este triste episódio faz crer que, para o Grupo Globo, a violência contra a mulher é tão somente circunscrita à violência física.

Necessário lembrar que não é a primeira vez que assistimos a casos de violência contra a mulher no Big Brother Brasil. Na edição veiculada em 2012, a Rede Mulher e Mídia chegou a enviar representação ao Ministério Público Federal pedindo a responsabilização da Rede Globo diante de um caso de violência sexual.

Na ocasião, uma das participantes foi vítima de estupro presumido quando, embriagada e dormindo, teve sua dignidade violada por outro participante. Infelizmente, cinco anos depois, fica explícito que as condições a que os e as participantes do Big Brother Brasil são submetidas e as “regras do jogo” definidas pela Rede Globo estão longe de respeitar os princípios constitucionais previstos para o serviço de radiodifusão no país.

A agressão a que foi submetida Emilly diz respeito não só a ela, nem às demais participantes confinadas nessa edição do reality. Trata-se de mais uma agressão a todas nós, que assistimos, doloridas, à principal emissora de TV do Brasil explorar comercialmente uma situação que, cotidianamente, oprime, violenta e mata milhares de mulheres.

Numa sociedade em que uma mulher é agredida a cada cinco minutos, aproveitar-se de uma situação de violência para acumular índices de audiência até o ponto em que uma agressão física chega a ser praticada de fato é, para nós, mais que omissão; é cumplicidade.

Sendo assim, a Rede Mulher e Mídia, uma vez mais, solicitou que o Ministério Público Federal analise o caso em questão e, além das providências que a Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro já está tomando, envolvendo Emilly e Marcos, avalie a responsabilidade da Rede Globo em silenciar durante semanas sobre a violência praticada diante de suas câmeras.
Globo feminista ou reposicionamento de marca?

O novo episódio de machismo no BBB acontece menos de duas semanas depois de a Globo ter sido palco de outro caso de violência contra a mulher. Dessa vez, nos bastidores, praticado e sofrido por funcionários da empresa: na coluna de 31 de março da Folha de S. Paulo chamada #AgoraÉQueSãoElas, a figurinista Su Tonani denunciou ter sido vítima de assédio sexual praticado pelo galã José Mayer.

A resposta da empresa foi a suspensão do ator de qualquer produção dos estúdios por tempo indeterminado, e o caso não foi abafado. Funcionárias da emissora vestidas com camisetas com os dizeres “Mexeu com uma, mexeu com todas” foram ouvidas em programas do canal. Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da Globo, enviou comunicado interno reforçando o posicionamento de não abafar esse tipo de violência.

A nota justificava a suspensão de Mayer para “não dar visibilidade a uma das partes envolvidas numa questão que é visceralmente contra tudo que a Globo acredita”; afirmava conhecer e apoiar a campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”; reforçava que o “respeito à diversidade, ao ser humano” fazem parte do Código de Ética e de Conduta do Grupo; e, por fim, num importante post scriptum, deixava claro que esse posicionamento deveria ser compartilhado: “Sinta-se à vontade de mandar estas respostas para suas equipes”. Além da comunicação interna, o caso virou notícia no Jornal Nacional e em outros telejornais da emissora, com divulgação de nota pública da Globo e de mea culpa escrito por José Mayer.

Em fevereiro deste ano, um caso diferente, por não ter acontecido nos estúdios da emissora, já dava sinais do novo posicionamento da Globo. O cantor Victor, da dupla Victor e Leo, um dos jurados do programa The Voice Kids, pediu afastamento para se dedicar ao tratamento da acusação de violência doméstica registrada numa delegacia de Belo Horizonte por sua esposa dias antes. O apresentador André Marques, no início do programa seguinte, anunciou o pedido de saída do cantor e afirmou que “a Globo repudia toda e qualquer forma de violência e acredita que essa acusação precisa ser apurada com rigor, garantindo direito de defesa na busca da verdade”.

Também deixou claro que não haveria nenhuma espécie de silenciamento para proteger o cantor: “O jornalismo da Globo vai acompanhar esse caso para que você saiba tudo que está acontecendo”. André Marques justificou ainda a veiculação de programas com a presença de Victor, por já estarem gravados, para não atrapalhar a competição das crianças. Cenas em que ele aparecia, entretanto, foram cortadas.

Entre críticas pela insuficiência das atitudes tomadas pela Globo (por que Mayer foi apenas suspenso, não demitido? Por que a demora em atuar no caso do BBB?) e celebrações a vitórias da pauta feminista, cabe-nos refletir sobre a relação entre o posicionamento dos telespectadores e as posições tomadas pela emissora. No caso do BBB, assim como no de Mayer, fica evidente o papel que a mobilização do movimento feminista, pelas redes sociais, desempenhou para os desfechos conquistados.

Nesta segunda-feira, durante todo o dia, a hashtag #GloboApoiaViolencia esteve entre os temas mais comentados do Twitter. Nesta terça, #EuViviUmRelacionamentoAbusivo é a bola da vez. A própria coluna #AgoraÉQueSãoElas nasceu como um movimento de ocupação da mídia por mulheres em 2015. A saída de Victor do The Voice Kids certamente não teria ocorrido se o debate feminista não tivesse ocupado espaço na arena pública como fez no último período – algo de que a própria Globo já havia se apropriado na nova temporada do seu Amor & Sexo.

Neste jogo de consensos e dissensos, a Globo se viu obrigada, não apenas por uma questão mercadológica, mas também para se manter em sintonia com os desejos de uma parcela de seu público, a mudar seu padrão de silenciamento. O jogo, entretanto, está longe de ser ganho. Há muito pouco tempo, o apresentador Faustão fez uma clara apologia à violência contra a mulher em seu programa dominical. O pedido de direito de resposta feito à Globo pela Rede Mulher e Mídia foi solenemente ignorado.

Tais mudanças, como já dissemos neste blog, também estão longe de alterar estruturalmente o conteúdo que ela veicula. Enquanto abre espaço para falar da violência contra a mulher e de temas como transexualidade, a Globo segue silenciando as manifestações contra a Reforma da Previdência e defendendo a proposta de retirada de direitos pela gestão Temer – que terá impactos sobretudo sobre as mulheres. Ou seja, a incorporação das pautas feministas tem limites bem delineados ali. E não se pode fechar os olhos para isso.

Porém, num país com altos índices de violência contra a mulher, numa esfera pública que ainda legitima as ações de agressores – basta o pavoroso exercício de ler os comentários das notícias sobre o tema -, o reposicionamento da Globo pode representar avanços. O que é inegável é que eles só vieram como resposta a uma luta diária de nós, mulheres.
*Bia Barbosa, Iara Moura e Mônica Mourão são jornalistas, feministas e integrantes do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes. 

Crônica de uma morte anunciada: cobertura da guerra às favelas no Rio

Falta de aprofundamento, mito da exceção e tom policial marcam matérias sobre o tema nos jornais cariocas

Por Camila Nobrega e Iara Moura*

Até o dia 30 de março de 2017, Maria Eduarda Alves Ferreira era só mais uma aluna de uma escola municipal no Rio de Janeiro. Naquele dia, ela foi atingida por quatro tiros enquanto fazia aula de Educação Física, na quadra da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza. Da noite para o dia, a menina de 13 anos tornou-se assunto principal dos jornais da cidade e do país.

A partir daí, as selfies sorridentes ao lado das amigas dividiam espaço com as imagens da mãe desconsolada, carregando as medalhas da filha penduradas no peito, do corpo já inerte estendido na quadra da escola, do caixão atropelando a vida.

Agora, todos sabiam que a menina sonhava em ser atleta de basquete. Sabiam também o exato percurso que tinha feito até a escola e as últimas palavras que disse à mãe. Nas páginas de jornais, Maria Eduarda ganhou uma biografia no momento em que perdeu a vida. A história parecera começar pelo fim, como na prosa de García Marquez, em Crônica de uma Morte Anunciada.

E, ao contrário do que contam a maior parte das reportagens, a história é exatamente isso, uma tragédia mais do que anunciada, no mínimo alardeada pelos dados, pelas circunstâncias. Por outro lado, absolutamente silenciada.

Como a maioria de seus colegas de escola, Maria Eduarda convivia com a intensa violência cotidiana no bairro onde morava, Acari. O local concentra 20% das mortes decorrentes de ações policiais registradas apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano. Isso quer dizer que houve cerca de 36 mortes na área, sob cobertura do 41o Batalhão de Polícia Militar, em apenas dois meses.

No total, foram 182 mortes decorrentes de operações policiais no Estado do Rio de Janeiro, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP). Todas sem nome estampado em jornal, a esmagadora maioria sem direito à investigação ou até mesmo a uma mínima perícia, identificadas com um mesmo “sobrenome” nos boletins de ocorrência – “autos de resistência”, expressão que, desde a ditadura militar, é usada pela Polícia Militar para justificar morte em legítima defesa de policiais, sem necessidade de mais explicações. Todas traduzidas em, no máximo, estatísticas frias que mantêm a cidade funcionando alienada. Todas só mais um Silva.

No entanto, a história de Maria Eduarda percorreu um outro caminho. No jornal “O Globo” de 31 de março, a interrupção violenta da saga de Eduarda foi reportada como uma “tragédia com desdobramento aterrorizante”. Mesmo assim, ainda que contando detalhes sobre o caso, a reportagem segue, logo referindo-se à reação das moradoras e dos moradores: “A Avenida Brasil foi tomada por um protesto violento.”

Muitos manifestantes eram da Fazenda Botafogo, vizinha à escola, onde Maria Eduarda morava. O trânsito foi interrompido nas duas pistas. Grupos ateavam fogo a caçambas de lixo ao longo da via, uma das principais da cidade, assustando motoristas”, destaca um trecho, sem qualquer menção a um contexto cotidiano enfrentando por esses e essas moradoras.

Em uma só frase, o protesto em função da morte da jovem se torna problema. Problema de trânsito, problema que invade a vida de quem estava passando e só queria chegar em casa. Em uma frase, mais uma forma de individualização e desconexão, em uma sucessão absurda de narrativa dos fatos.

Depois das reações nas redes sociais e da comoção que o caso trouxe, no dia 1º de abril, o enquadramento e o espaço destinado ao tema mudaram. A notícia que antes ocupava uma página deu espaço a uma de quatro páginas, com fotos e infográficos destacando o número de mortes resultantes de operações policiais nas favelas e comunidades empobrecidas da cidade.

A cobertura, antes marcada por impessoalidade e por uma estrutura cara às páginas policiais com ênfase na ideia de “confronto” e nos desdobramentos das “operações” com apreensão de armamentos e drogas, modificou-se. Ali detalhes sobre a vida da menina ganharam sentido, com imagens, informações, humanidade.

Por um lado, pode-se celebrar que o caso foi amplamente divulgado. Por outro, trouxe um risco imenso de refazer um ciclo interminável, imerso à falta de aprofundamento sobre o que significa a política de Segurança Pública no Rio de Janeiro. Uma rápida análise da cobertura dos principais jornais mostra que o caso de Maria Eduarda foi alçado a um patamar de excepcionalidade. Pinçado no meio da realidade diária dos moradores de Acari e das favelas da cidade, que tem enfrentado o agravamento da violência nas operações policiais, especialmente no último mês, o quadro dramático ganhou o perigoso e falso contorno de exceção.

No Extra, também do Grupo Globo, a cobertura do caso foi para a editoria que recebe os assuntos relacionados à Segurança Pública: “Polícia”. A jovem de Acari se tornou capa do jornal, sob a manchete: “Maria Eduarda, a nova vítima da Velha Guerra”. No dia seguinte, mais uma capa seguiu acompanhando o caso, sob o título de “Qual mãe vai chorar hoje?”. Em determinado trecho da matéria, a mãe de Maria Eduarda diz: “A gente morava, sim, em comunidade, mas ela sempre foi tratada com muito carinho”.

A frase não é desligada de contexto. Em um cenário em que 182 mortes ocorrem em dois meses como consequência de operações policiais e as notícias se empilham de forma burocrática nos jornais, como se meros e frios boletins de ocorrência fossem, ela sabe como a morte de sua filha poderia ter ido seguido o mesmo caminho, caso não fosse a impossibilidade de atentar para as características da morte da menina.

Ela, como todas as mães moradoras de favelas, sabe que suas filhas e filhos são normalmente julgados e condenados pela opinião pública, sem chance de defesa ou de apuração do crime.

No mesmo dia da morte de Maria Eduarda, o mesmo jornal Extra circulava com uma única pequena matéria que fazia referência às mortes que estavam ocorrendo em favelas do Rio. A situação já era gritante e estava sendo denunciada há semanas por movimentos de favelas. Mas o chamado colunão, no jargão jornalístico, dizia apenas: “Um confronto entre policiais militares e traficantes, no Morro da Formiga, na Tijuca, assustou moradores e motoristas na Rua Conde de Bonfim, que teve o trânsito interrompido.

De acordo com a UPP da comunidade, homens armados atacaram a base da unidade e montaram barricadas. Um homem morreu baleado. Revoltados com a morte do homem, que seria mototaxista, pessoas foram para a Rua Conde de Bonfim e fizeram um protesto, impedindo a passagem dos veículos”. Mais uma vez, estava ali um homem morto anônimo, nenhum estranhamento sobre a escalada de violência nas favelas, a revolta dos moradores qualificada como exagerada, a preocupação com o trânsito, a divisão de duas cidades em uma.

O mesmo sentido, em curtas frases, repete-se em diversos textos, reportando mortes na Providência, na favela da Maré, entre outras. Com vocabulário de guerra completamente naturalizado, os jornais cariocas falam em “confronto”, dão número de balas, de mortos e usam jargões policiais.

Aliás, são eles também as principais fontes nas matérias, que não vão muito além disso. “Segundo a UPP”, “o comandante”, “números da Polícia Militar”, “no front” são expressões que se repetem diariamente, na maioria dos casos sem complemento de outras vozes.

Precisou que uma morte ocorresse dentro de uma escola, que fossem quatro balas “perdidas” acertando uma só jovem, em horário de aula, com várias testemunhas, dezenas de crianças desesperadas e fotos de turmas inteiras abaixadas dentro de sala de aula, além da necessidade de o Estado responder, pois a jovem estava, naquele momento, sob sua própria responsabilidade.

Precisou tudo isso junto para que não atirassem primeiro uma pedra sobre o caso e para que a explicação “auto de resistência” não fosse o bastante. Foram necessárias todas essas condições para que a opinião pública não repetisse o mesmo feito de sempre e julgasse a menina como culpada pela própria morte, como acontece na maioria dos casos.

E só assim as palavras que todos os dias são naturalizadas nas reportagens causaram estranhamento dessa vez. “Dano colateral dos mais absurdos”, disse o porta-voz da Polícia Militar, major Ivan Blaz, sobre a morte de Maria Eduarda. Disse, simplesmente seguindo o rumo ao qual está acostumado. É assim que a polícia fala sobre as mortes em favelas. Não é exceção, essa é a regra.

Depois disso, a mídia seguiu. O jornal O Dia também acompanhou de perto o caso de Maria Eduarda, com pelo menos quatro matérias detalhadas. A Folha de S. Paulo trouxe uma reportagem que relata o histórico de violência em Acari, mostrando, entre outros, o dado de 89 tiroteios registrados em Acari em um ano, segundo o site colaborativo Fogo Cruzado.

A situação, porém, faz pensar o papel dos meios de comunicação na situação, muito além de apenas reportar os fatos. A mídia é também parte da construção do Rio de Janeiro, essa cidade que convive com uma violência que atinge moradores e moradoras de favelas mais do que qualquer outra, negros e negras mais do que brancos e brancas. A comunicação é parte ativa nessa compreensão das pessoas sobre o lugar onde vivem. E, afinal, o que está sendo construído pela mídia tradicional que se encontra disponível?

Uma nota da ONG Justiça Global enviada à Organização das Nações Unidas chama atenção para o silenciamento da violência institucional contra a população jovem e negra, moradora de favelas e periferias. O documento, enviado à Relatoria de Execuções Extrajudiciais Sumárias e Arbitrárias da ONU, relaciona as 182 mortes causadas por agentes do Estado e chama atenção para o falho papel da Justiça brasileira, uma vez que grande parte dos casos são simplesmente arquivados.

Segundo afirmou a pesquisadora da Justiça Global na área de Violência Institucional, Monique Cruz, em entrevista à EBC, “a denúncia internacional é uma forma de dar mais visibilidade internamente, porque, quando acessamos um organismo internacional, estamos chamando também atenção da imprensa brasileira para um outro ponto de vista”. Ela se referia à política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Em complemento para este artigo do Intervozes, Monique Cruz ressaltou ainda que, da forma como a política de repressão do Estado nas favelas é pensada, ela só tem o que a Polícia tem definido como “danos colaterais” que, na verdade, são mortes que nunca são investigadas, fruto de um enfrentamento ineficaz à anunciada guerra às drogas e que só está gerando mais violência na cidade. Nessa “guerra”, policiais são algozes e também vítimas de uma engrenagem da morte.

Porém, em número bem menor: para cada policial assassinado no Rio em 2016, 23 outras pessoas morreram, o que derruba a tese de que as mortes de moradores sempre ocorrem em confrontos. Os dados são de levantamento feito pelo Uol com base em números do ISP.

Em meio a essa situação e despossuídos de espaço nos meios privados para informar-se e expressar-se sobre a realidade de suas comunidades, moradores/as de favelas há muito têm se organizado para produzir eles próprios comunicação e fazer reverberar denúncias da violência com a qual convivem diariamente.

Nesse caso, o direito à comunicação está diretamente ligado ao direito à vida. Em grupos de mensagens instantâneas ou em páginas em redes sociais, moradores de favelas e comunidades invadidas por forças policiais trocam informações vitais sobre que ruas evitar em caso de confronto ou troca de tiros. A produção e troca de informações, no entanto, não é encarada como direito dessa população. Ameaças anônimas e criação de perfis fakes que buscam expor e criminalizar quem faz comunicação popular é a regra geral nas favelas.

Segundo a ONG internacional Repórteres sem Fronteiras, o Brasil é o segundo país com mais comunicadores assassinados na América Latina. Foram 22 mortes registradas desde 2012. O cenário configura uma grave violação do direito à comunicação, que causa consequências para a sociedade de uma forma geral. Violação esta que dificulta a abordagem do assunto até mesmo dentro dos grandes veículos e ainda mais em veículos de comunicação alternativa, popular ou comunitária, sem a proteção que deveriam ter.

É o silêncio forçado, o toque de recolher da comunicação, que leva a cidade do Rio de Janeiro a pensar que um número como o e 1275 vítimas fatais da intervenção policial entre 2010 e 2013, a maioria sem qualquer tipo de investigação, mesmo em casos de mortes de crianças e até idosos, confunda-se com exceção.

É o silêncio que as favelas procuram combater, com ações como a criação do aplicativo Nós por Nós, que recebeu mais de 300 denúncias de violações de direitos cometidas por policiais em apenas um ano. Maria Eduarda não foi apenas uma tragédia, ela se tornou uma brecha de anúncio do caminho que a cidade está tomando.

*Camila Nobrega e Iara Moura são jornalistas e integram o Coletivo Intervozes. Colaborou Gizele Martins, jornalista e comunicadora popular da Maré.

Temer sanciona MP 747/2016, que presenteia emissoras de rádio e TV com anistia

Iniciativa retribui o apoio dado pelas emissoras ao golpe parlamentar contra a democracia no Brasil e desrespeita o interesse público, modificando para pior procedimentos para licenciamento

Radiodifusores se reuniram nesta terça-feira, 28, no Palácio do Planalto, para acompanhar a sanção presidencial da Medida Provisória (MP) 747/2016, que é um verdadeiro presente para as emissoras de rádio e TV. Isso porque a MP concede anistia às emissoras que perderam o prazo para renovação da concessão e amplia os prazos de solicitação de renovação destas mesmas concessões. As mudanças no marco regulatório do setor foram publicadas na quarta-feira, 29, no Diário Oficial da União.

Segundo Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes e secretária-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), uma simples leitura do texto da MP sancionada “revela o tamanho do escárnio com que este governo passa a tratar o serviço de radiodifusão”.

Ela afirma que, entre o envio para o Congresso Nacional no final de 2016 e a sanção nesta terça-feira, a MP 747 perdeu o eixo de interesse público que deveria ser o condutor dos processos de licenciamento das outorgas de rádio e TV no Brasil. “Por incrível que pareça, num país em que as concessões sempre foram usadas como moeda de troca política, foi possível piorar o procedimento das licenças. E agora não é nenhum exagero afirmar que o empresariado da radiodifusão pode fazer o que bem entender com este bem que, vale lembrar, é público”.

A medida foi muito comemorada entre os radiodifusores. A Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert) divulgou a MP como sendo a “a maior vitória dos últimos 50 anos”. A MP 747 atendeu ao pleito dos empresários, permitindo que as emissoras que perderam o prazo de renovação possam regularizar suas outorgas.

A coordenadora-geral do FNDC, Renata Mielli, reforça que a Medida Provisória 747 é o pagamento da conta, por parte do governo de Temer, pelo apoio das emissoras ao recente golpe parlamentar imposto no Brasil contra a democracia. “Essa anistia reforça uma política e prática de que o concessionário é o proprietário da frequência. Ao invés de abrir uma consulta pública para a outorga, faz-se o contrário: beneficia-se os atuais concessionários, mantendo-se a exploração daquele espaço que é público”, ressalta Renata.

Interesse público

Pelas novas regras, todo concessionário que tenha perdido o prazo para renovar suas outorgas ganha 90 dias para fazê-lo, independente do tempo de atraso. Ou seja, não faz diferença ter atrasado um mês ou dois anos, todos poderão fazer o pedido de renovação agora. E, daqui pra frente, se mais alguém deixar de pedir a renovação da outorga dentro do prazo, caberá ao governo a tarefa de comunicar as empresas do fato, tutelando-as para que façam o pedido.

Bia Barbosa critica esta iniciativa do governo de Temer de, em vez de retomar as outorgas que foram abandonadas pelas empresas que não pediram sua renovação e abrir novos processos de licitação para que outras empresas ou atores possam participar da disputa por um espaço no espectro eletromagnético, que é público, usa a estrutura do Estado para favorecer antigos radiodifusores para que voltem a operar, agora “dentro da lei”.

Também foi excluída do texto da MP 747 a previsão de cumprimento de “todas as obrigações legais e contratuais” e o atendimento “ao interesse público” como requisitos para que as empresas tivessem direito à renovação das outorgas. “Se o Ministério das Comunicações (hoje Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) já pouco fiscalizava o cumprimento dessas obrigações legais e contratuais e nada olhava para o atendimento ‘ao interesse público’ no momento de renovar licenças, agora isso nem mais será solicitado”, lamenta Bia Barbosa.

Quadro societário

Outra mudança no marco regulatório imposta pela MP 747 se refere às alterações no quadro societário da empresa. Antes, era necessária autorização prévia do Poder Executivo. Agora, basta que informem o governo sobre as alterações feitas.

Mas o pior neste aspecto é que a medida anistia aqueles que fizeram alterações ilegalmente, sem a autorização prévia do ministério, quando a lei anterior ainda valia. Tais empresas ganham agora 60 dias para informar o governo sobre estas mudanças no quadro societário, sem qualquer prejuízo para continuarem funcionando normalmente. O resultado disso é que uma ilegalidade está sendo legalizada pela MP 747.

Somente a transferência total e integral da concessão para outra empresa segue dependendo de autorização prévia do governo, até porque o contrário representaria uma prática que em si já seria ilegal por tratar-se de uma concessão pública, que exigiria do Estado agir com transparência e com respeito aos princípios da gestão pública.

Também o Ministério Público Federal já havia se pronunciado sobre a questão, afirmando que a venda e transferência total de licenças de rádio e TV para terceiros viola totalmente a legislação brasileira, por ignorar processos licitatórios e permitir o enriquecimento ilícito de empresários da radiodifusão com a comercialização de um bem (a frequência eletromagnética) que é público.

Rádios comunitárias

Com muita pressão da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), a MP 747/2016 concedeu a mesma anistia para renovação das concessões das rádios comerciais às rádios comunitárias. A proposta inicial de Temer era conceder o benefício apenas às emissoras comerciais.

Por outro lado, o único veto de Michel Temer na MP 747 foi a exclusão do texto sancionado da autorização para que políticos detentores de foro privilegiado pudessem ser diretores ou gerentes de rádios comunitárias.

Atualmente, a lei proíbe que políticos exerçam cargos diretivos ou de gerência em qualquer tipo de emissora. O Congresso Nacional queria liberar tais cargos em emissoras comunitárias porque várias delas se encontram hoje nas mãos de políticos. Entretanto, a Casa Civil sugeriu a Temer o veto.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação

Carne Fraca: porque a grande mídia não se importa com a sua comida

Para além da operação, o agronegócio é um dos maiores causadores de conflitos agrários e má alimentação no mundo, mas mídia ignora o assunto

Por Camila Nobrega*

O tom de “a gente avisou” dominou as redes depois do anúncio da Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, que descobriu um esquema de venda ilegal de carnes por frigoríficos no Brasil.

Desde a sexta-feira 17, as redes sociais se tornaram terreno de disputa. De um lado, vegetarianos e veganos, do outro, pessoas que comem carne.

Memes brincavam com o estarrecimento da maior parte da população brasileira ao descobrir que está comendo carne apodrecida, maquiada por excesso de ácido ascórbico, vulgo Vitamina C.

A operação da PF parece ter deixado o país em estado de choque, ao tocar exatamente no assunto carne, item consumido indiscriminadamente, variando apenas de acordo com a situação socioeconômica de cada família.

No entanto, a situação revelou algo que vai além do esquema de propinas e fraudes. O nível de informação de brasileiras e brasileiros sobre a comida que chega à mesa é irrisório.

E isso se agrava em um panorama mais amplo, pois também é pouco o acesso à informação sobre a dinâmica do agronegócio – ou seja, a produção da pecuária e agricultura em escala industrial – por parte da população a partir dos veículos de mídia tradicionais.

E essa violação no direito à informação e à comunicação tem muito mais a ver com o escândalo dos frigoríficos do que as escolhas individuais de comer ou não carne.

O agronegócio movimenta mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e recebe vultosas quantias de investimento do governo brasileiro.

Não por coincidência, é dono da maior bancada no Congresso, a chamada bancada ruralista, que rapidamente saiu em defesa da indústria nacional e do ministro da Justiça, Osmar Serraglio, flagrado em ligação para um fiscal agropecuário apontado como um dos chefes do esquema de propinas no Ministério da Agricultura.

Tudo isso faz parte de um contexto no qual o Brasil permanece alimentando o robusto mercado interno, já que as pessoas comem mais carne do que o necessário, e mantém a posição de exportador de alimentos e matérias-primas, como minérios, nesse ritmo industrial.

Mas, claro, centralizar o problema do agronegócio mundial no Brasil é miopia e, de fato, tentativa de não deixar o escândalo chegar à fonte do problema.

O que estamos vendo por aqui é conseqüência de um sistema mundial de produção e consumo de alimentos muito danoso, onde quantidade e lucro são lema e a qualidade deixou de ser prioridade faz tempo, combinada com os fatores locais, ou seja, esse imenso poder político do agronegócio.

É inegável que existem, nas atuais denúncias sobre a qualidade da carne dos principais frigoríficos brasileiros, novidades que justificam a enorme repercussão dos primeiros resultados da Operação Carne Fraca.

Entre elas, o envolvimento de fiscais do Ministério da Agricultura que recebiam propina para não fiscalizar carnes de alguns frigoríficos, em um esquema que envolve empresários do agronegócio e partidos políticos – especialmente PP e PMDB, de acordo com a Polícia Federal.

No entanto, por trás da Operação, existe um longo caminho e uma série de informações de interesse público que continuam sendo ocultadas de maior parte da população.

E só por isso o choque foi tão grande, quando as pessoas começaram a ler sobre uso de carnes de baixa qualidade e ácido ascórbico nos alimentos, carcaças de animais, além de entrevistas sobre usos exacerbados de antibióticos, entre outras coisas.

A questão é que a maior parte disso tudo não é surpresa. Muito além de parte das pessoas que não consomem carne dizendo “eu já sabia”, centenas de movimentos sociais e organizações que acompanham há anos o tema na prática, além de alguns veículos de mídias alternativas e comunitárias, travam uma batalha diária para levar informação à população sobre o assunto.

Há décadas já se sabe que a produção de alimentos em escala industrial está afetando a saúde no país. E muito mais do que isso.

O agronegócio, ao lado da mineração, é um dos principais causadores de conflitos agrários no Brasil, que hoje é o país com mais assassinatos de ativistas ambientais no mundo, segundo levantamento da ONG Global Witness, que repercutiu muito no ano passado.

Já de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, em publicação lançada no dia 17 de janeiro de 2017, 59 pessoas foram mortas no Brasil em consequência da atuação em defesa de territórios tradicionais, demarcação de terras, reforma agrária e pelos direitos das populações envolvidas nesses conflitos em 2016.

Segundo o Atlas Global dos Conflitos Ambientais, organizado pela Universidade Autônoma de Barcelona, o país tem o terceiro maior número de conflitos ambientais no mundo, com tendência de crescimento acelerado.

Essas informações costumam ser reportadas de forma pontual na mídia tradicional, de maneira a não constituir um alarde na população.

Vozes dos movimentos e organizações que trabalham com o tema são abafadas, ao contrário de ícones do agronegócio, tais quais o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, empresário dono de extensa produção de soja, e a ex-ministra Kátia Abreu.

Bom lembrar que a JBS (Friboi, entre outras marcas) e a BRF (incluindo Sadia, Perdigão e Seara) aparecem entre as dez empresas que mais compraram espaço para publicidade na mídia no Brasil, com dados referentes ao ano de 2005, segundo o ranking Agências & Anunciantes.

Personalidades como Fátima Bernardes, Ana Maria Braga, Roberto Carlos e Tony Ramos estão entre os famosos que emprestaram seus rostos – e depoimentos – para gerar confiança nas propagandas destes frigoríficos.

Não à toa, grande parte dos jornais brasileiros têm dado amplo espaço para a defesa das empresas envolvidas no escândalo e para representantes do setor, que se esforçam em tentar convencer a população e os compradores no exterior de que se tratam de casos isolados, o que não parece ter surtido efeito.

Na linha do alarde provocado pela Polícia Federal e sem dar muitas explicações, China e Hong Kong já suspenderam temporariamente a entrada de carne brasileira nos países.

Isso não quer dizer que não exista informação de qualidade sobre o tema sendo produzida. Em 2012, a Repórter Brasil lançou o site Moendo Gente, que denunciava as condições insalubres de trabalho nos frigoríficos brasileiros.

No ano anterior, essas denúncias já haviam sido divulgadas pela mesma instituição através do documentário Carne e Osso.

Foi também naquele ano que o cineasta Silvio Tendler lançou O Veneno Está na Mesa, mostrando o uso de agrotóxicos e suas consequências. Até mesmo a edição II do filme já foi lançada, com grande impacto nacional e internacional.

O Instituto Alana denuncia a relação perniciosa entre publicidade e consumo de alimentos não saudáveis por crianças há quase dez anos, quando lançou, em 2008, o documentário Criança, a Alma do Negócio.

Embora não focasse apenas no consumo de comida (o que veio a acontecer em 2012, com o Muito Além do Peso), o filme mostrava, por exemplo, o quanto a propaganda de alimentos voltada para crianças tem sido eficaz em fazê-las conhecer mais as marcas de comida industrializada do que os nomes de frutas e verduras.

Vale lembrar que desde 2001 tramita na Câmara Federal um Projeto de Lei para estabelecer regras à publicidade voltada para pessoas de até 12 anos e que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em sua Resolução 163, considera que toda publicidade para crianças é abusiva.

Mais especificamente sobre agronegócio, crescem blogs e projetos jornalísticos falando sobre o tema, mas com muita dificuldade de atingir audiência. Um deles é o De Olho nos Ruralistas, que traz a questão política e o poder dos ruralistas no Congresso como elemento central na questão.

Desde os anos 1970, quando a produção industrial de carne foi iniciada no Brasil, organizações e movimentos sociais buscam espaço para conscientizar a população sobre o tema.

Hoje em dia, o Brasil é uma das principais referências mundiais sobre a agroecologia, um movimento que tem como objetivo a transformação do sistema alimentar, a partir do comércio feito em circuitos locais, com valorização de pequenos produtores, sem agrotóxicos e sem o uso de antibióticos e outras coisas nos animais, com o objetivo de garantir uma alimentação saudável e socialmente justa.

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é uma das principais referências no tema, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. Além dela, o Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional (FBSSAN) também tem uma atuação na política nacional, além de produção de informação, assim como na campanha Comida é Patrimônio, que tem o objetivo de informar sobre a perda da diversidade de alimentos, em função da expansão do agronegócio no país.

O Movimento Sem Terra (MST) é referência na garantia do direito à terra como forma também de garantir outros direitos e alimentação saudável no país.

Mas nada disso repercutiu na grande mídia como a Operação Carne Fraca. P

arece que descobrimos só agora o quanto comemos mal, como se a Polícia Federal tivesse se tornado especialista em todos os temas do país.

Seguindo a tendência de cenário quase hollywoodiano para revelar as operações policiais, a mídia esteve a postos, denúncias de corrupção vieram à tona e as pessoas chocadas com a qualidade da carne que compram no supermercado.

No entanto, para além da fraude em si, que essa sim é notícia, continuam preferindo não nos contar que o modus operandi da produção massiva de carne envolve imensas áreas de terra do país, eleva conflitos agrários que levam à morte de ativistas ambientais, especialmente na região Norte, é um dos principais responsáveis pela emissão de gases de feito estufa e é bastante propenso a trazer riscos à saúde.

Com ou sem operação Carne Fraca, essa é a realidade.

E não apenas no Brasil. A produção de carnes da maneira como é feita atualmente é um problema em todo o mundo. Levou às ruas em uma manifestação chamada Wir Haben es Satt 100 mil pessoas na Alemanha em janeiro deste ano contra o agronegócio, não à toa logo no país onde salsicha é componente popular da alimentação desde a Segunda Guerra Mundial. Menos sensacionalismo e mais informação, esse é o maior desafio nessa história. Porque sobre os riscos à saúde, muita gente de fato já sabia.

*Camila Nobrega é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e integrante do Coletivo Intervozes. Colaboraram Marina Pita e Mônica Mourão, jornalistas e integrantes do Conselho Diretor do Intervozes

Polícia Federal tenta intimidar blogueiro que denunciou vazamento de informações

Blogueiro já havia denunciado o juiz Sergio Moro ao Conselho Nacional de Justiça por ter mandado prender uma cidadã de forma equivocada

O blogueiro Eduardo Guimarães foi vítima de condução coercitiva da Polícia Federal (PF) na manhã desta terça-feira, dia 21. Agentes federais estiveram na residência do representante comercial e editor doBlog da Cidadania e o conduziram coercitivamente até a sede da Superintendência Regional da PF em São Paulo, no bairro da Lapa.

Segundo as primeiras informações divulgadas pelo Jornalistas Livres, Eduardo Guimarães foi levado pelos policiais para falar sobre a denúncia publicada por ele de possíveis vazamentos de informações quando da condução coercitiva do ex-presidente Lula, em março do ano passado. À época, o Ministério Público Federal informou que o fato seria investigado. Jornalistas de veículos tradicionais anteciparam informações a respeito e as divulgaram nas respectivas empresas de comunicação.

Vazamentos de notícias são práticas recorrentes desde o início da operação Lava Jato. A grande imprensa “vaza informações, delações, dados todos os dias há dois anos, desde o início da Operação Lava Jato, mas quando aparece o primeiro vazamento que mostra o jogo armado entre Polícia Federal, Ministério Público e mídia, os meganhas correm para censurar, intimidar e, agora, violentar a liberdade de um cidadão brasileiro, jornalista e blogueiro”, desabafa Miguel Rosário, do blog O Cafezinho.

Sobre o motivo da condução coercitiva, o próprio Eduardo Guimarães afirmou: “Recebi de uma fonte as informações antes, e eles queriam saber se tenho alguma ligação com a pessoa que vazou. Não conheço essa pessoa. Divulguei porque é o meu trabalho jornalístico. Sou blogueiro e o meu trabalho é divulgar”, declarou. Ele questionou a motivação da condução, já que não teria se recusado a prestar depoimento. Na saída da Superintendência da PF, Eduardo também reclamou da apreensão de seus equipamentos. “Sou agora um blogueiro sem equipamento nenhum”. Os agentes ficaram com celulares, inclusive de sua mulher, notebook e pen drive.

Às 14h30, Eduardo Guimarães fez uma transmissão ao vivo pelas redes sociais, informando que estava bem e tranquilo, que nada deve à Justiça e que estava pronto para o depoimento, que era sobre a “fonte” responsável pela informação publicada em seu blog. O blogueiro se queixou da ação desnecessária da Polícia Federal. “Minha casa é uma ‘home care’, uma casa com ambiente hospitalar, pois precisamos dessa estrutura para nossa filha, e de repente chegam policiais armados na minha casa… Que perigo posso oferecer à sociedade? Não precisava disso”, ponderou. Eduardo ressalva que a lei está sendo usada para intimidar as pessoas: “Eu cresci numa ditadura e, do jeito que as coisas estão, vou morrer numa ditadura”.

O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) classificou a ação da PF contra o blogueiro como um fato de “extrema gravidade”. “É uma restrição à liberdade de imprensa e informação. É censura. É uma tentativa de constranger aqueles que questionam a postura do Judiciário e do próprio juiz (Sérgio) Moro”, afirmou. Em audiência por videoconferência da qual participou como testemunha de defesa em um dos processos da Lava Jato, também realizada nesta terça-feira, o deputado questionou diretamente o juiz Sérgio Moro sobre a condução coercitiva de Eduardo Guimarães. “Disse a ele que a constituição garante o segredo da fonte. Ele afirmou que o Eduardo Guimarães não é jornalista. Eu respondi que no Brasil não precisa ser jornalista para exercer o jornalismo”.

Segundo o parlamentar, a assessoria de imprensa da Superintendência Regional da PF em São Paulo afirmou que a ordem de condução coercitiva foi dada pela Justiça Federal do Paraná. “Ou seja, é de Sergio Moro mesmo. Que São Paulo só cumpriu a ordem”, enfatizou Paulo Teixeira.

Guimarães x Moro

O blogueiro Eduardo Guimarães terá de voltar à Superintendência da PF em 3 de abril por causa de outra publicação, de 2015, desta vez em sua conta no Twitter, em que criticou o juiz Sérgio Moro por este estar prejudicando a economia brasileira. Devido à publicação, foi acionado judicialmente pela Associação Paranaense dos Juízes Federais. No final de fevereiro, o blogueiro recebeu uma intimação da Polícia Federal para que compareça perante um delegado para “prestar esclarecimentos no interesse da Justiça”.

O advogado de Eduardo buscou informações na PF e foi informado de que seu cliente estava sendo acusado de “ameaçar” o juiz Sergio Moro. O blogueiro nega ter feito qualquer tipo de ameaça ao juiz federal em questão. Em 4 de maio de 2015, o blogueiro representou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o juiz Sergio Moro por ter prendido uma cidadã por engano. A representação foi arquivada. A condução coercitiva de Eduardo ocorrida nesta terça tem fortes indícios de retaliação por parte de Sergio Moro.

O advogado Fernando Hideo Lacerda relata uma “série de arbitrariedades” na decisão judicial e em sua execução. “Em primeiro lugar, não faz sentido conduzir coercitivamente alguém que não foi chamado a depor anteriormente e jamais se recusou a prestar esclarecimentos. Segundo ponto: iniciaram o depoimento sem a presença de seu advogado. Além disso, confiscaram celulares e computadores com o claro objetivo de identificar a fonte das informações do jornalista. Por fim, Moro é suspeito para determinar tal medida contra ele, pois ambos possuem contendas na Justiça”.

Calar Jamais

Em solidariedade a Eduardo Guimarães, e pela liberdade de expressão, será realizado um ato hoje, às 19h, no Sindicato dos Engenheiros, que fica na Rua Genebra, 25, no Centro de São Paulo.

Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação com informações de Jornalistas Livres