Encontro encerrou com apresentação da Carta de Brasília que reafirma o princípio da liberdade de expressão e imprensa e o direito à comunicação como fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade democrática
O 3º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação (3ENDC) se encerrou neste domingo, dia 28, cumprindo com seu objetivo central de se constituir em espaço de reorganização dos movimentos e entidades que militam pela democratização da comunicação no país. Organizado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) no Campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB), na capital federal, o encontro teve início na sexta-feira, 26, com o Ato Público em Defesa da Liberdade de Expressão e da Democracia, sendo finalizado no domingo com a conferência Meios de comunicação, regulação e democracia. Logo após, ocorreu a 20ª Plenária Nacional do FNDC, quando foi aprovada a Carta de Brasília.
A conferência de encerramento reuniu as jornalistas Aleida Calleja, coordenadora do Observatório Latino-americano de Regulação, Meios e Convergência (Observacom), do México; Cynthia Ottaviano, professora com atuação na defesa do público no âmbito da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, da Argentina; Renata Mielli, coordenadora-geral do FNDC e secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; além de César Bolaño, pesquisador do campo da Economia Política e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Cynthia Ottaviano iniciou sua fala comparando a semelhança das atuais conjunturas enfrentadas por Brasil e Argentina, caracterizadas pela repressão a paus e gás lacrimogêneo dos protestos populares, pela invasão de escolas e universidades pela polícia e pela pressão imposta a instituições para que divulguem listas de seus colaboradores envolvidos em atos contra as medidas excludentes impostas por seus respectivos governos centrais. Também enfatizou que a comunicação é e será pública, ainda que sua gestão seja privada ou estatal. Ela ressaltou que, contrariamente aos discursos veiculados pela mídia nos dois países, a conspiração contra a democracia não vem de quem luta pela democratização dos meios de comunicação, e sim das próprias empresas privadas de comunicação. “O foco não é a disputa entre regulação e não regulação, porque regulação sempre houve. O que temos que debater é quem regula o agente regulador”, destaca ela, lembrando que uma regulação frouxa favorece os interesses privados, e não os públicos.
Durante sua apresentação, Cynthia mostrou algumas pesquisas de monitoramento de notícias divulgadas pelos meios de comunicação, entre as quais se destacam aquelas de viés policialesco, de narração de crimes contra o patrimônio em detrimento dos crimes contra a vida, e entre as quais há poucas denúncias de excessos por parte dos aparatos policiais. Mostrou ainda pesquisas feitas junto ao público argentino, sobre o que as pessoas querem ver e ouvir na mídia. “As empresas de comunicação sempre repetem que divulgam o que o público quer saber. Mas pesquisas mostram exatamente o contrário: as pessoas quere,m saber mais sobre conteúdos que não recebem destaque na mídia, como informações sobre educação e ciências”. Por fim, ela lembrou o caso do canal argentino de televisão C5N, que utilizou equivocadamente imagens de jovens com armas publicadas no Facebook, que faziam parte de um projeto de produção de um curta-metragem, acusando-os de participarem de uma quadrilha que havia assassinado um policial durante um roubo de carro. Apesar dos apelos dos familiares dos jovens, o canal de televisão só se retratou após o caso ser levado à Justiça.
Resgate da utopia
O professor César Bolaño, de forma bem-humorada, citou uma “certa inveja” que os brasileiros nutrem em relação a alguns aspectos do espírito argentino, até porque o Brasil vive “um processo muito mais dramático” do que aquele de seu país vizinho. Ele respalda sua análise em aspectos como o da presença de opositores do governo de direita de Macri em programas em geral de televisão, entre eles sindicalistas e militantes que tinham acesso aos programas de televisão. “No Brasil, as emissoras de televisão têm seus jornalistas que fazem suas avaliações, julgam e dão seus veredictos. No Brasil, 40 milhões de pessoas participaram os protestos na maior greve geral de sua história, e nenhuma central sindical, por mais moderada que fosse, teve acesso aos programas de TV”.
Neste sentido, Bolaño destaca que os movimentos sociais precisam retomar a luta contra a censura, e demonstrar “a brutal censura imposta neste país pelos próprios meios de comunicação”. Ele reforçou a condição da comunicação de ser apenas meio, já que o fundamental são as estruturas econômicas. Além disso, nossas análises costumam avaliar apenas as comunicações de massa, não indo além em direção a outras formas de comunicação. “temos que ir além da forma mercadoria”, friz ele, citando a comunicação direta e a solidariedade como pistas de alternativas a estas ações de massa. “A comunicação é basicamente organização. A sociedade vai mudar, independente do que a gente faça. Outra mediação é possível. Nem tudo o que é bom se resume ao acesso à tecnologia ou aos bens de consumo. É preciso resgatar a utopia”, sugere ele.
Convergência tecnológica
Já Aleida Calleja pondera que a concentração dos meios de comunicação é uma séria ameaça à democracia. “A apropriação privada da esfera pública não repercute apenas em um poder econômico, mas também político. E o poder destas empresas é tanto que passa por cima dos poderes públicos. Basta dizer que a empresa [transnacional de capital mexicano] Televisa tem até bancada de parlamentares no Legislativo mexicano”, pondera ela, observando que os direitos à informação e à comunicação são direitos-chave, pois abrem as portas para o acesso a outros direitos.
Aleida ressalta que o discurso privado é de que, quanto menos houver interferência do estado, mais se assegura a liberdade de expressão. “Não há melhor lei que a que não existe”, dizem os empresários. “Mas não há direito humano absoluto. A liberdade de expressão também tem seus limites”, enfatiza a jornalista. Para ilustrar, ela lembra que um único conglomerado empresarial domina 80% do mercado de jornais no Peru; que um duopólio divide a propriedade sobre a comunicação no Chile e que apenas uma pessoa possui mais de 200 concessões de TV em toda a América Latina, se utilizando de vários laranjas para isso. “Mas a concentração de hoje sobre a propriedade dos meios de comunicação [no sistemas analógico] é diminuta quando se compara com a concentração em meio digital, relacionada com a convergência tecnológica”, frisa.
É preciso lutar
Por fim, Renata Mielli buscou consolidar sua fala a partir da complementação de seus antecessores na mesa da conferência de encerramento. Inicialmente, lembrou que os governos Lula e Dilma se pautaram por selar acordos com o oligopólio privado de comunicação. “Pode ser importante avar espaços na mídia hegemônica, mas é ainda mais importante construir a mídia alternativa. Portanto, ao mesmo tempo em que devemos combater o oligopólio da mídia, por um lado, devemos também fortalecer a mídia alternativa, de outro”, sintetiza a coordenadora-geral do FNDC.
Nesta linha, Renata enumera as muitas lutas a serem implementadas pelas entidades e movimentos que militam pela democratização e o direito à comunicação: regulação dos serviços sob demanda; defesa da comunicação pública e da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC); avançar na Lei do Direito de Resposta, aprovada recentemente no Congresso Nacional; debater as verbas publicitárias destinadas à grande mídia, que acaba revertando na inviabilização da mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros/as; anistia aos radiodifusores privados que não realizaram as respectivas renovações em tempo hábil [concessões estas que deveriam ter sido devolvidas ao estado, para a abertura de novas licitações]; concessões de rádio e TV dadas a empresas que possuem dívidas trabalhistas, e que por isso também deveriam ter sido devolvidas ao estado para novas licitações; inadequações entre o local da concessão dada e o local de operação da emissora, entre outras. “A concessão de rádio e TV integra um processo de licitação. Não se pode fazer lucro vendendo algo que não te pertence. Isso ocorre à revelia da lei”, aponta Renata. “Por tudo isso, a nossa geração está chamada a lutar”, conclui ela.
Carta de Brasília denuncia violações à liberdade de expressão
Ainda na tarde do dia 28 foi realizada a 20ª Plenária Nacional do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) que aprovou a Carta de Brasília. O documento homologa o posicionamento da entidade contra os ataques sistemáticos à liberdade de expressão e de organização no país e em favor das lutas populares contra as reformas trabalhista e previdenciária, entre outras iniciativas do governo de Michel Temer.
A plenária encerrou o 3ENDC, realizado com apoio da Universidade de Brasília (UnB), no campus Darcy Ribeiro, e de várias entidades e organizações do movimento social. O 3ENDC reuniu cerca de 250 participantes credenciados, vindos de todas as regiões do país.
Por Ramênia Vieira – Repórter do Observatório do Direito à Comunicação
Confira o documento na íntegra:
Carta de Brasília
Os e as participantes do 3° Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação – 3ENDC, reunidos em Brasília de 26 a 28 de maio, reafirmam o princípio da liberdade de expressão e de imprensa e o direito à comunicação como direitos fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática. E reconhecem que para que esses direitos fundamentais sejam exercidos em sua plenitude, é necessário um ambiente de respeito à pluralidade e à diversidade.
Historicamente, o Brasil segue sendo um dos países com maior concentração nas comunicações do mundo. Mas, com o golpe político, jurídico e midiático em curso no país e a instalação de um governo que usurpou o poder após o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, à ausência de pluralidade e diversidade no debate público, se somaram novos e crescentes ataques à liberdade de expressão e de manifestação.
Os ataques têm acontecido não somente com agressões físicas nos protestos, mas também com a demissão de jornalistas e radialistas comprometidos com a ética e a verdade dos fatos. Com a manipulação e seletividade informativa. Com a condenação e detenção de blogueiros e comunicadores comunitários e populares. Com o desmonte do sistema público de radiodifusão. Com a remoção de conteúdos na Internet e a adoção de práticas de vigilância em massa nas redes. Com a restrição à liberdade de expressão nas universidades e escolas. Com a censura à expressão artística e cultural. Com o desrespeito à ética jornalística.
Com o apoio dos grandes meios de comunicação – além do Congresso, do capital financeiro nacional e internacional e do Judiciário, o governo golpista tem imposto um brutal ataque aos direitos da população, com impactos na vida das pessoas que continuarão pelas próximas décadas. A toque de caixa, as reformas trabalhista e da previdência estão sendo votadas no Legislativo. E mudanças significativas no campo da radiodifusão, das telecomunicações e da internet têm sido aprovadas sem que a população em geral sequer seja informada.
Diante de tamanho retrocesso, os movimentos sociais e sindicais, unidos e organizados, tem dado sua resposta nas ruas. Na mesma medida que a repressão do Estado aumenta, também têm crescido as manifestações. Uma nova greve geral se organiza para marcar o repúdio de amplos setores da sociedade ao golpe, aos golpistas, seus vassalos e apoiadores.
Assim, também, o movimento pela democratização da comunicação tem resistido. A Campanha Calar Jamais, lançada pelo FNDC em outubro passado, tem recebido, coletado e sistematicamente denunciado violações à liberdade de expressão no Brasil. No Congresso, o FNDC luta, em parceria com outras redes e articulações da sociedade civil, contra os ataques à internet livre e o desmonte das telecomunicações e da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – denunciando, inclusive, deputados e senadores que controlam ilegalmente emissoras de rádio e televisão.
Como defensores de direitos humanos, combatemos as violações à dignidade humana praticada pelos meios de comunicação, em especial o racismo e a violência de gênero nas programações. Acreditamos que o combate ao racismo estruturante e a percepção crítica sobre a branquitude na sociedade brasileira, como impedimento à democratização da comunicação, devem ser pontos focais na promoção de uma comunicação democrática emancipadora.
Reunidos em Brasília com mais de 250 ativistas e militantes, reafirmamos, assim, nosso compromisso com a democracia, com a diversidade e a pluralidade, com a liberdade de expressão e de imprensa, com a luta pela democratização e o direito à comunicação.
Reafirmamos também nossa disposição permanente em construir ações de denúncia, de resistência e de mobilização; de produção de conteúdos contra-hegemônicos; de fortalecimento da comunicação alternativa, pública e comunitária; e de seguir nossa luta histórica por um novo marco regulatório dos meios de comunicação no Brasil que garanta o exercício de todos esses direitos.
A luta por uma comunicação democrática deve estar no centro da disputa pela transformação social, sendo estratégico, para o FNDC, ampliar o diálogo e a articulação com movimentos gerais, como as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. O tema do direito à comunicação não pode se restringir às prioridades dos que atuam neste campo, mas precisa ser pautado sistematicamente nos debates sobre o futuro do país.
Por fim, ao lado de todos e todas aquelas que estão nas ruas para dizer “nenhum direito a menos”, marcharemos contra o arbítrio, o autoritarismo e as desigualdades. Reafirmamos, mais do que nunca, nossa defesa incondicional da democracia, das liberdades, da justiça social e da participação popular, que só serão possíveis se a soberania popular for restabelecida no Brasil.
Por isso, Fora Temer e suas reformas!
Nenhum direito a menos!
Diretas Já!
Calar Jamais!