Tramita em regime de urgência no Senado Federal o Projeto de Lei 89/2003, de autoria do senador Eduardo Azeredo, batizada Lei dos Crimes Eletrônicos. Amparado pelo discurso do combate ao cibercrime e, especialmente, à pedofilia, o projeto passou praticamente sem causar polêmica pelas comissões de Assuntos Econômicos e de Constituição e Justiça, onde ganhou, no último dia 18, o selo de urgente. Do lado de fora do Congresso, porém, a simples menção ao 89/03 causa indignação entre militantes e especialistas, que se organizam para reverter a tendência de naturalização da aprovação do projeto, considerado por eles um empecilho ao desenvolvimento e ao uso democrático das redes.
As críticas são bastante duras. Ronaldo Lemos, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-Rio, compara o processo de discussão do PL 89/03 com a aprovação do Patriot Act pelo governo Bush. "Utilizar este assunto [a pedofilia] para regulamentar de forma apressada assuntos mais abrangentes, afetando toda a Internet, é uma estratégia antidemocrática, que lembra ações tomadas pelo governo Bush, que em nome do terrorismo regulamentou do petróleo às telecomunicações", afirmou.
Lemos considera que o principal resultado da aprovação do PL será a criação de uma "rede de vigilância privada" no Brasil. "O projeto coloca os provedores de acesso à Internet como responsáveis pela vigilância dos dados trafegados pelos usuários. Não só: obriga os provedores a encaminharem 'sigilosamente' denúncias que tenham recebido de crimes. Com isso, dá-se início a uma dupla cultura, da vigilância privada e do denuncismo, ambas amparadas por lei", comentou.
"O PLC incentiva o temor, o vigilantismo e a quebra da privacidade. Prejudica a liberdade de fluxos e a criatividade. Impõe o medo de expandir as redes", resumiu em seu blog Sérgio Amadeu, sociólogo, autor de diversos livros sobre políticas para a Internet e militante do movimento Software Livre.
Criminalização do acesso
A análise dos especialistas ouvidos pelo Observatório do Direito à Comunicação mostra que o PL torna crime o simples uso de uma série de recursos que, hoje, democratizam o acesso à Internet e a circulação de conteúdo. Para Ronaldo Lemos, a aprovação do projeto resultará na criminalização em massa dos usuários da Internet, uma vez que torna crime o mero acesso à rede. "O senador criou um projeto de lei que possui dezenas de artigos que criminalizam atividades cotidianas na rede", afirmou.
João Cassino, militante do movimento Software Livre, chama a atenção para o fato de que, ao exigir que todo usuário que acessar uma rede de computadores seja identificado e tenha seus dados armazenados pelo operador da rede, o projeto inviabiliza as redes abertas de uso gratuito. "Se essa lei for aprovada, eu teria que me identificar no provedor. E as cidades com wireless aberto? Até a orla de Copacabana vai ter sinal aberto… como cobrar que um turista se registre para utilizá-la?", questiona Cassino. "Vai tornar a coisa tão burocrática que vai dificultar o acesso a informação."
Sérgio Amadeu aponta os efeitos do projeto sobre o uso de mecanismos do tipo peer to peer (P2P), que foram criados para acelerar a transferência de arquivos "transformando" cada máquina ligada à rede e que tenha este tipo de dispositivo instalado em um potencial servidor de onde se pode baixar o conteúdo, diminuindo as distâncias a serem percorridas pelos pacotes de informações.
O P2P se tornaria inviável por duas previsões do projeto de lei. O PL caracteriza como crime o acesso a rede ou dispositivo sem prévia autorização. Como para baixar um arquivo usando um dispositivo P2P utiliza-se o computador de outras pessoas como "caminho" para a transferência, o usuário estaria incorrendo em uma prática criminal.
A segunda previsão do PL 89/03 que inviabiliza o uso do P2P – e de outros mecanismos de compartilhamento de conteúdos – é a obrigação dos provedores informarem à polícia sobre o tráfego de conteúdos suspeitos. Como os diferentes conteúdos circulam pela rede em "pacotes de informação" fechados, os provedores apenas podem identificar conteúdos suspeitos "quebrando" estes pacotes. "É provável que se escolha entre dois caminhos: invadir a privacidade e olhar os pacotes baixados ou simplesmente proibir o uso do Torrent para evitar um processo posterior. Um terceiro caminho (mais absurdo ainda!) é inundar a polícia com listas semanais de usuários do provedor que acessaram redes P2P", escreve Amadeu.
CDs, celulares e MP3 players
O projeto do senador Azeredo teria ainda outro efeito que atingiria um número incontável de cidadãos que utilizam MP3 players, celulares que comportam arquivos de mídia ou qualquer outro tipo de aparelho de comunicação similar. Segundo o PLC 89/03, “obter dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização do legítimo titular, quando exigida” se configuraria em crime, passível de dois a quatro anos de detenção. Avançando, “nas mesmas penas incorre quem mantém consigo, transporta ou fornece dado ou informação obtida nas mesmas circunstâncias”. Ou seja, o PLC tem ainda a pretensão de impedir o transporte e armazenamento de arquivos MP3, por exemplo.
Além disso, o projeto tem em vista tornar crime “acessar rede de computador, sistema informatizado ou dispositivo digital sem a autorização do legítimo titular”, o que implicaria em inutilizar os IPjosdireitoaco ou outros dispositivos que tenham acesso a rede. “O projeto é tão abrangente, que vale não só para sites da internet, mas também para aparelhos celulares, IPjosdireitoaco, tocadores de DVD, conversores de tv digital e assim por diante”, comenta Ronaldo Lemos.
Lei inaplicável
João Cassino acredita, no entanto, que se aprovado o PLC 89/03, a lei já nascerá obsoleta e de difícil execução. Nesse caso, a lei seria utilizada para encontrar exemplos para a opinião pública. “É como a lei da pirataria. As pessoas vão continuar baixando música, mas de vez em quando eles usarão alguém para servir de exemplo”. Lemos concorda afirmando que mais um efeito maléfico da lei seria a geração de “bodes expiatórios”. “Com uma lei em que praticamente todos são criminosos, abre-se a possibilidade de que a punição seja aplicada por critérios políticos”, afirma, prevendo conseqüências ainda mais preocupantes. “Com isso, caem por terra princípios básicos do Estado democrático de direito.”
Necessidade da regulamentação
Marcos Dantas, professor da PUC-RJ e especialista em políticas de comunicação, acredita que a Internet pode ser considerada hoje um espaço público e que, portanto, devem existir leis que a regulem, assim como acontece no mundo real. Ele lembra que vários crimes são cometidos na rede, inclusive atentados à segurança nacional e ao Estado democrático. Acredita, contudo, que se pode adotar soluções mais drásticas, anti-democráticas, ou soluções democráticas e socialmente equilibradas, mas que não se pode subestimar a constante violação à privacidade que já acontece, inclusive e principalmente pelas grandes corporações.
“Talvez seja mesmo necessária uma legislação que me proteja dos interesses corporativos, dos spans, que puna a pornografia e a discriminação, que impeça o uso da rede para a prática de crimes e, mesmo, atentados ao Estado democrático”, afirma. Dantas cita, ainda, mensagens do tipo “este programa precisa ser atualizado”, comumente enviadas por grandes empresas de software e que não deixam de configurar uma invasão aos computadores.
“Acho que a intenção dos parlamentares é ter um arcabouço legal contra crimes contra bancos, previdência. Mas o projeto é muito hermético, não tem abrangência, não permite trabalho compartilhado”, comenta Cassino, revelando que existe um consenso na necessidade de regulamentação, com a qual também concorda Lemos. “O que o Brasil precisa nesse momento é que a Internet seja regulamentada do ponto de vista civil”, diz o especialista da FGV.
Lemos detalha quais seriam os passos necessários para que se defina do ponto de vista legal a privacidade, o comércio eletrônico e a responsabilidade dos provedores da internet. “Após essa experiência legislativa ser posta em prática, é preciso avaliar dentro de alguns anos o que deu certo ou não e aí sim, como última instância regulatória, tratar da questão nos casos excepcionais através do direito penal.”