O ministro da Cultura Juca Ferreira faz uma avaliação bastante crítica quando o assunto é a atuação da grande mídia no país. Na segunda parte da entrevista concedida à Fórum, ele afirma que a concentração de poder dos meios de comunicação gera um monopólio de opiniões bastante nocivo à democracia. Segundo Ferreira, a baixa qualidade da programação televisiva seria outro problema e isso pode ser percebido pelo afastamento dos espectadores, sobretudo os mais jovens.
O ministro fala ainda sobre a necessidade de enfrentar a corrupção no Brasil, disseminada em diferentes áreas e partidos políticos. Para ele, a imprensa deveria ter, nesse caso, uma participação mais efetiva e menos “oportunista”. “A sociedade brasileira está precisando de uma comunicação que retrate essa complexidade do país e possibilite que a gente dê um passo adiante”, sentencia.
As manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff também foram debatidas durante a conversa, que abordou, entre outros assuntos, os próximos passos do ministério, os direitos autorais em tempos de internet e o movimento pernambucano Ocupe Estelita.
Confira abaixo.
Fórum – O senhor é simpático à ideia de incorporar, nesse novo momento do ministério, a mídia independente. Poderia falar um pouco sobre isso?
Juca Ferreira – Apoio plenamente. Acho que a gente precisa ampliar. Não simpatizo com a ideia de “controle social”. Acho que são palavras dúbias que podem ter uma conotação muito negativa. Acho que é democratizar a mídia, colocar possibilidade de muitas opiniões em torno de todas as questões que são relevantes para a sociedade. Sou a favor de qualificação do ambiente da comunicação, que é pobre.
A TV aberta no Brasil é de uma pobreza absoluta. E as novas gerações, inclusive, a estão abandonando. Eu vejo pelos meus filhos. Tenho um de quatro anos e um de catorze. Eles quase não veem televisão. O de catorze só liga quando o Real Madrid está jogando ou quando o Corinthians está jogando, que são os dois times da afetividade dele. Ele vai do Netflix em diante. Não se interessa, não tem mais conexão, não tem o que oferecer. O pequeno só assiste TV a cabo e Netflix. Na TV a cabo, é [o desenho] “Peppa Pig” e outros, “Peixonauta”…
Fórum – Sobre a questão do midialivrismo, que é uma quebra de paradigmas muito forte, até porque no Brasil nós temos uma concentração total dos meios de comunicação tradicionais…
Ferreira – E um monopólio de opiniões impressionante! Editorializam a notícia de uma forma tão grande…
Fórum – Que acaba virando uma verdade absoluta.
Ferreira – É. Uma vez, eu tive vontade de escrever para aquele jornalista que conduz o Observatório da Imprensa, Alberto Dines, que é uma pessoa inteligente, íntegra. Queria que ele acrescentasse um elemento naquele programa dele, que seria “os que são entrevistados”. Tem o público leitor e os que fazem a comunicação. Mas pessoas como eu têm muito a dizer porque [jornalistas] mentem, sobredeterminam nossas opiniões, esquartejam trechos de uma opinião para poder dar um significado diferente, editorializam. Vêm apenas na conversa coletar aspas para confirmar uma tese anterior, acrescentam palavras tipo “admite”, criando um clima de suspeição em relação ao que a gente faz. É um desastre.
Eu, inclusive, não tenho grandes estímulos para conversar com a grande mídia. Vou dar um exemplo. Quando eu percebi que havia a possibilidade de a Dilma me chamar para ser ministro da Cultura, mesmo sem saber se seria… Eu fui chamado no dia 29 de dezembro, mas havia a possibilidade, à medida em que me chamou para coordenar a parte da cultura da campanha. Eu comecei a preparar o meu discurso.
Era um discurso programático.
Aí, um dos grandes jornais, um dos que mais vendem no Brasil, pediu uma entrevista à tarde. Eu fiz o discurso de manhã. Eu pensei que iam questionar, criticar. Ignoraram o discurso e fizeram duas perguntas sobre futricas: por que eu tinha trazido dois – depois passaram a três – jovens do Fora do Eixo, que é uma rede social, uma organização que eles querem execrar porque são muito críticos e tinha participado de um programa na TV Cultura que teve uma grande repercussão de críticas aos limites da comunicação no Brasil. E a possível futrica entre eu e Marta [Suplicy]. Não tinha interesse nenhum pelo destino da cultura brasileira. Tinha uma oportunidade enorme. Então, quer dizer, isso é decepcionante.
Eu perguntei à jornalista: “A senhora não tem interesse por nenhum tema cultural?”. Isso é imprensa marrom. É o que antigamente chamavam de imprensa marrom, uma imprensa que não lida com a realidade, não procura construir. Façam uma crítica. Criem a possibilidade de eu responder à crítica, mas o interesse é futrica. E isso é para quê? Para emoldurar negativamente algo que cresceu com a expectativa social alta, que é, no caso, a minha gestão aqui. É muito ruim para a sociedade em um momento em que o Brasil está diante de perplexidades. A democracia mostra limites.
Produziram essa grande distribuição de renda no Brasil que, por mais precária que seja, é uma mudança de paradigmas na sociedade brasileira porque, até então, a desigualdade, uma das maiores do mundo, era considerada natural. Cometeram erros, erros que estão evidentes. Então, é preciso discutir tudo isso.
É preciso abrir o leque para compreender o fenômeno da corrupção, que não é o fenômeno de uma família política ou de um partido, mas na verdade é o modus operandi da sociedade brasileira, que vai desde o indivíduo, o cidadão individual diante do guarda de trânsito, até a CBF. Na verdade, a sociedade brasileira incorporou a corrupção quase como um mecanismo legítimo e é exercitado praticamente…
Fórum – Por todas as áreas.
Ferreira – Por todas as áreas. Dentro da política, por todas as famílias políticas. E já há muito tempo. Então, o tratamento parcial impede de a gente chegar a uma solução. Quantos “carnavais éticos” a gente já viveu nos últimos anos? Eu me lembro em torno dos “anões do orçamento”, que deu a impressão que a gente ia dar um salto. Mas o tratamento é sempre com um foco muito restrito. E os demais se aproveitam para execrar aqueles que foram pegos com a boca na botija.
E também para manterem seu modus operandi como é. Depois veio o Collor, depois veio… Eu até me esqueço, mas tiveram uns dez “carnavais éticos” que passam essa sensação para a sociedade de que há, de fato, uma tentativa de superar esse nível de corrupção. Mas, na verdade, é um manuseio da corrupção para fins políticos menores. A verdade é essa. Não há, de fato, um compromisso.
E a mídia teria uma responsabilidade grande, se abrisse o leque e mostrasse exatamente que é um modo de operar as coisas públicas generalizado. Eu sinto que a mídia está devendo ao país. A mídia participou como apoio ao regime militar. Hoje, os editoriais fingem que foram contra. Fazem uma correção de rumos que tem uma dose de oportunismo porque não assumem os erros que cometeram. Vá em uma dessas emissoras e peça para ver editoriais de seus jornais no dia do Ato Institucional Nº 5.
Fórum – Na internet, inclusive, já circulam alguns desses editoriais.
Ferreira – É só ver os seus editoriais. E, depois, estão corroendo a democracia diariamente, desconstruindo o país. A negatividade é o tônus desses meios de comunicação. Então, os jornalistas que se rebelam e buscam construir – mesmo que de uma forma ainda romântica, sem perspectiva de afirmação – certamente vão encontrar o caminho porque, quando as coisas têm que acontecer, nada impede que aconteçam. E a sociedade brasileira está precisando de uma comunicação que retrate essa complexidade do país e possibilite que a gente dê um passo adiante.
Fórum – O senhor vê, por exemplo, a influência dessa mídia tradicional nos protestos a favor do impeachment?
Ferreira – Claro. Eles são força auxiliar. Eles mobilizam, constroem legitimidade, eles dizem quem pode governar e quem não pode governar. Eles transformam em heróis pessoas que, quando você bota a lupa, percebe que é mais corrupto que os que estão sendo criticados. Esse negócio da CBF, se o Romário levar às últimas consequências a CPI que está montando, isso vai dar o que falar. Isso vai até a dimensão política do manuseio do futebol, que é um dos patrimônios imateriais da sociedade brasileira, e que é manipulado até a última gota.
Manipulado para enriquecimento e que impede que, no país do futebol, floresça um futebol profissional e de qualidade.
Depois que eu saí do ministério, fui trabalhar na Espanha. Morei dois anos lá. E a Espanha não era um país do futebol. Eu não vou dizer que a Espanha era um país de pernas de pau, mas era um país de segundo nível na constelação. E eles começaram, prenderam os corruptos, desenvolveram uma política para o futebol de base, profissionalizaram no sentido completo da palavra, possibilitando que, de fato, florescessem times com estruturas mais profissionais. Qualificaram os jogadores, os contratos. Não adianta três ou quatro virarem estrelas e ganharem fortuna e o resto rapidamente se tornar peças obsoletas, sem nenhuma condição de sobrevivência.
O Brasil precisa fazer algo, mas vai ter que destampar completamente. Romário está se propondo a isso, mas acho que ele tem que ter apoio da sociedade no sentido de levar às últimas consequências e não repetir esse tipo de “carnaval ético” que a gente tem feito com outros temas.
Fórum – E, voltando à imprensa, não é só, especificamente, a questão das manifestações, mas toda uma onda conservadora que está vindo com força.
Ferreira – E foi aí que se mostrou a maior fragilidade porque foram com muita sede ao pote. Tentaram desconstruir a relevância do que foi construído pelo presidente Lula e, ao fazer isso, se associaram imediatamente a setores golpistas da sociedade, que querem a ditadura militar de volta, setores racistas, setores que execram a emancipação da mulher, setores que pregam a violência, o extermínio, a justiça pelas próprias mãos, a intolerância religiosa.
Quer dizer, o que esse movimento conservador – que a imprensa manipula e manuseia diariamente – revelou para o país é o que é inaceitável. É inaceitável pelas mulheres, é inaceitável pelos negros, é inaceitável pela juventude, já que querem rebaixar a maioridade penal para culpabilizar a juventude pelo nível de violência do país.
É inaceitável sob o ponto de vista das conquistas dos direitos individuais. Eles são contra até bicicletas nas cidades! Então, quer dizer, esse Brasil que eles querem, foi bom até que tenha vindo à tona porque está possibilitando que as pessoas reajam. E, mesmo tendo críticas aos erros que foram cometidos nesses 12 anos, erros de política econômica, erros na área da corrupção, erros na área de não ter desenvolvido políticas para qualificar o Estado e seus serviços…
Mas, mesmo assim, a grande maioria do país não quer retroceder, não quer ir para a Idade Média, nem para o período da ditadura militar. Não quer jogar na lata do lixo as conquistas pela igualdade das mulheres, nem do combate ao racismo. Pelo contrário, a sociedade quer ir adiante. E aí é que eles revelaram a debilidade deles. Por trás de todo o discurso moralista, na verdade vem uma ameaça a todas as conquistas do povo brasileiro e isso, em algum momento, a sociedade já começou a reagir. E acho que o ponto de reversão virá por aí, com ou sem os partidos.
Fórum – E essa questão acaba fortalecendo a formação de um Congresso que já é muito conservador. Aliás, o mais conservador desde 1964. E pudemos ver isso na discussão em torno da reforma política.
Ferreira – A reforma política é um aspecto importante do momento em que a gente está vivendo. A redemocratização no Brasil já tem uma experiência que é preciso ser analisada e ser criticada; que as forças políticas criem mecanismos para que a sociedade produza a superação dos limites e produza uma democracia mais densa, com um nível maior de representatividade, com a qualidade melhor do sistema representativo, com níveis de participação mais ampla.
Acho que quem defende e quem compreende a importância do Estado para uma sociedade democrática e para o Brasil avançar, não pode usar o Estado como motivo de guerra. O Estado precisa ser valorizado. Precisamos construir um Estado democrático no Brasil com mecanismos, com instituições fortes. Não é militarmente forte. Forte é com alto grau de legitimidade, com capacidade de oferecer serviços de qualidade, saúde de qualidade, educação de qualidade. Incrementar políticas culturais importantes. Então, a gente está diante, está em um momento de perplexidade, mas está em um momento de muita possibilidade de construir o futuro do Brasil.
O Brasil é a sétima economia do mundo. É um país que tem recursos naturais, que tem uma infraestrutura econômica instalada, temos uma capacidade criativa reconhecida no mundo inteiro. Então, não há porque ficar pessimista. A gente está enfrentando um problema, foram cometidos erros, é preciso que se assuma diante da sociedade com toda a transparência. E que a gente consiga alavancar um programa de continuidade das transformações na sociedade brasileira.
Esse programa reacionário que está aí tem que ser execrado. Estão molestando pessoas que estão lendo Carta Capital, por exemplo, no avião.
Fórum – Ou porque estão usando qualquer camisa vermelha.
Ferreira – Correram atrás de um cachorro porque tinha um coletezinho de cor vermelha. Isso se assemelha muito aos momentos que antecederam o Fascismo e o Nazismo. São irracionalidades sociais, são os medos, o ódio; a intolerância religiosa faz parte desse pacote reacionário.
É preciso que o Brasil transforme em valor fundamental essa liberdade de crença ou de não crença. É um país reconhecido no mundo inteiro com essas possibilidades de convivência de credos diferentes, e há uma construção de um ódio, uma intolerância, uma demonização de certas religiões, principalmente as de matriz africana. Então, é preciso que a sociedade reaja. E todo cidadão tem que se engajar na construção desse Brasil que a gente quer.
Fórum – Ministro, nós abrimos a entrevista para sugestões de alguns leitores e blogueiros. E a titular do blogue Voz em Rede, Lidiane de Souza Monteiro, do Recife, quer saber a sua opinião sobre o movimento e a luta pelo tombamento do cais José Estelita.
Ferreira – Olha, eu fui procurado pelo movimento, pelo prefeito, e eu vou ampliar o meu diálogo porque é o seguinte… O cais Estelita, a área em questão, não é relevante sob o ponto de vista de patrimônio histórico-cultural. E não é relevante do ponto de vista do patrimônio ferroviário.
Por mais simpatia que eu tenha com a luta, eu não me proponho a colocar, a vulgarizar o IPHAN [Instituto Patrimônio Histórico Artístico Nacional], para dar um parecer que não seja correto dentro do que a legislação prevê. Agora, ali é relevante sob o ponto de vista de reserva para a cidade retomar um processo de planejamento e de contenção da especulação imobiliária. Isso a legislação prevê. Aquela área também é importante como patrimônio paisagístico.
Mas o ordenamento e o uso do solo é uma questão de âmbito local. E é preciso que as instituições locais ouçam a população. A cidadania está indignada com a possibilidade de aprovação daquele projeto e o que eles demandam, em última instância, é de que aquilo é uma área estratégica, talvez uma das últimas. Não uma área restrita, onde vai ser levado o projeto, mas uma área mais ampla, que já tem outros projetos imobiliários.
Então, o ministério está fazendo estudos técnicos. Dentro de pouco tempo, nós vamos nos posicionar. Agora, minha posição pessoal é de muita simpatia pelo movimento. No Brasil inteiro estão explodindo manifestações. Já tivemos um nível de manifestação sobre a mobilidade urbana, que é produto desse crescimento desordenado e pela opção do carro individual como meio de transporte. Temos manifestações contra a baixa qualidade dos serviços de saúde. Temos uma consciência social e acredito que precisamos melhorar o padrão, hoje, da educação no Brasil. Então, as políticas públicas estão sendo criticadas pela população e há uma demanda pela melhor qualidade.
Agora, nós estamos vivendo uma demanda de políticas urbanas. Com maior profundidade, enfrentando os problemas da cidade. Tem décadas. Se não me engano, no primeiro censo da década de 1960, só 20% da população brasileira viviam em algum tipo de cidade. Houve uma migração e hoje nós temos mais de 80% vivendo em cidades. E esse crescimento, esse inchaço da sociedade brasileira, não foi acompanhado de políticas públicas no sentido de minorar os impactos ambientais, sociais e urbanísticos, com raras exceções. A especulação imobiliária e a ocupação desordenada do solo se instalou.
Então, temos quase uma inviabilidade dessas cidades brasileiras. São Paulo, Rio, Recife, quase todas as cidades. Até cidades planejadas como Brasília e Belo Horizonte sofrem o impacto desse crescimento desordenado, acompanhado às vezes de falta absoluta de presença do poder público, no sentido de regular e de racionalizar esse crescimento em um nível do possível, pelo menos.
E esses movimentos por uma correção de rumos, sob o ponto de vista das cidades, é fundamental para o futuro do Brasil. Eu tenho muita simpatia não só por ele, mas por outros movimentos urbanos que estão se produzindo nas grandes cidades brasileiras e que, de alguma maneira, as instituições democráticas têm que ouvir, dialogar, não pode ignorar. A tendência em Recife é que as instituições ignoram essa demanda. Tratam como se fosse algo exótico, esdrúxulo e externo às suas funções.
É bom lembrar que, na democracia, o poder é exercido em nome do povo, pelo povo e para o povo. Então, não há como escapar de se relacionar. É importante que se considere a força desses movimentos, antes que a gente gere um impasse e uma descrença absoluta na democracia por parte da população brasileira. Eu, pessoalmente, vejo com muito bons olhos.
Eu não posso é transferir para cá a decisão porque existe o pacto federativo, existe a responsabilidade do município. A Constituição de 1988 nivelou a responsabilidade e a importância das três instâncias: federal, estadual e municipal. E essa instância do ordenamento e uso do solo é do âmbito dos poderes locais, da prefeitura, da câmara de vereadores, de outras instituições que compõem a estrutura do Estado.
E acho que é preciso assumir a responsabilidade de dialogar e de dar uma resposta à demanda do movimento em torno do cais Estelita.
Fórum – Para encerrar, qual sua avaliação desses primeiros meses de gestão?
Ferreira – Eu encontrei um ministério enfraquecido. Um medo de assinar, por exemplo. Então, a transferência para os artistas e para a área cultural de responsabilidades onde não há uma clareza aritmética, em que se pede a devolução de dinheiro, misturando quem fez corretamente as coisas com quem não fez. Eu disse à presidenta, na primeira reunião que eu tive com ela, que tinha encontrado um ministério enfraquecido e que ia fazer todo o esforço para recuperar padrões de qualidade no exercício do trabalho aqui dentro das nossas funções. Mas acreditava que em três meses e meio ou quatro a gente teria recuperado.
Estamos construindo isso, a realidade interna já é outra. Nós estamos requalificando as políticas porque o significado da minha volta, em parte, é para retomar políticas, programas e projetos que foram enfraquecidos ou abandonados. Mas em parte eu tenho que reconstituir porque a realidade anda, o Brasil anda muito rápido. Muita coisa já não é a mesma da minha época. Por exemplo, quando nós chegamos ao ministério, pouco mais de 1 milhão de brasileiros tinham acesso a internet. Hoje, mais de 53% dos brasileiros estão conectados.
Então, só isso aí já mostra. Os próprios Pontos de Cultura já exigiam da gente uma modernização. Contamos hoje com a lei do Cultura Viva, que nós regulamentamos. Em todos os aspectos, nós temos que trabalhar daqui para a frente. Recuperar o que de positivo foi abandonado, mas principalmente formular. Nós estamos formulando as políticas. Acabamos de fechar o primeiro ciclo do planejamento estratégico para os próximos dez anos. Estamos detalhando agora o Plano Plurianual e mecanismos de planejamento. Estamos nos preparando para o orçamento para o ano para formular os projetos porque, no primeiro ano, você herda um orçamento e um planejamento feito no governo anterior. Eu sou muito insatisfeito com o que eu herdei, mas isso não é uma discussão relevante. Na verdade, relevante é o que a gente está fazendo.
Fórum – É possível adiantar para nós o que vem pela frente?
Ferreira – Assim, de novidades, primeiro é a política para as artes. Eu já fiz a autocrítica no próprio discurso de posse. Nós conseguimos ampliar o conceito de cultura, dar um atendimento a uma área sociocultural importante no país. Chegamos até os povos indígenas, que, estranhamente no Brasil, a cultura dos povos indígenas não era considerada como parte do trabalho do Ministério da Cultura. Então, constituímos um alargamento do conceito e da dimensão da intervenção do ministério, mas as artes ficaram secundarizadas.
A gente quer recuperar a Funarte e as políticas para as artes. Que políticas para a música são importantes? Qual o papel do Estado junto à música? Na área da economia da música, que está destroçada pela crise da indústria fonográfica, pelo próprio desenvolvimento tecnológico.
Precisamos regular a internet para que eles paguem direito autoral. Na área da música, temos muitas tarefas. Na área do teatro também; na área da dança, na área do circo. Vamos revitalizar as políticas. Vamos fazer um processo aberto. Estou prevendo que, de julho até o fim do ano, nós vamos estar concentrados nisso. Essa vai ser uma das novidades. Sair com um programa e com uma perspectiva de trabalhar as artes e o papel do Estado dentro disso, que dê conta dos desafios do século XXI nessa área.
Na área de cultura digital, vamos retomar o papel que nós temos. Inclusive, já estamos planejando intervenções nos fóruns mundiais, na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), na Unesco, defendendo que a Convenção de Proteção da Diversidade, que nós fomos quando éramos daqui. Gilberto Gil foi o principal articulador para viabilizar essa convenção porque ela já era uma proposta de muitos anos e o governo americano conseguia impedir a sua aprovação. E nós fizemos uma articulação com a África, com os países latinoamericanos, com os países asiáticos, e esse reconhecimento é internacional. Gil vai ser homenageado nas celebrações dos dez anos da Convenção. Nós vamos retomar, atualizando a convenção.
Se nós não regulamentarmos democraticamente a internet, garantindo a sua neutralidade, garantindo regras para a intervenção, essas megaempresas que a operam… Vai se estabelecer uma ordem colonial aí de novo tipo, uma ordem colonial digital. Nós tivemos um incidente agora porque o Facebook censurou uma foto do Estado brasileiro. E eu achei que era um erro, podia ter sido uma questão de automaticidade nessa censura. Liguei e eles disseram: “Não, nós estamos submetidos ao tribunal da Califórnia. Nós não nos submetemos à legislação local.
Depois, publicamente, ele corrigiu um pouco o que disse para mim, mas na verdade eles se comportam de uma maneira imperial. Eles é que dizem o que pode e o que não pode, trazendo para o Brasil o puritanismo americano. Não pode aparecer os seios de uma pessoa. Ele chegou a me dizer que se for um seio canceroso, em uma campanha contra o câncer, se for corpo mutilado por uma violência, pode. Quer dizer, a gente já tem muito problema no Brasil para importar o puritanismo americano. Basta.
Então, a diversidade cultural demanda um olhar sobre a internet que possibilite que os povos sejam protagonistas das opções e que a internet expresse isso. Foi um desrespeito aos indígenas. Se para o indígena aparecer na internet precisa se travestir de não-indígena, isso é um etnocídio simbólico de dimensões importantes. É um desafio. Tem uma parte da nossa pauta que eu chamo de “a pauta do século XXI”. O século XXI traz uma série de questões na área da Cultura.
Essa da proteção da diversidade, de exercício dessa diversidade fundamental para a soberania, para o desenvolvimento, e inclusive porque em alguns aspectos nós somos superiores, por exemplo, à sociedade americana. Lá, o moralismo chega a tal ponto que tem criança de nove anos processada criminalmente porque encostou na fila da merenda na menina à frente dele. Isso é um caso real.
Então, quer dizer, a gente não pode importar as mazelas e as dificuldades de outro povo, em uma mentalidade, como dizia Nelson Rodrigues, de vira-lata. A gente tem que ter consciência da importância de nós construirmos e termos uma determinação. Isso não é com xenofobia, nem com isolamento, mas, pelo contrário, com regras civilizadas das relações culturais no mundo. E o Brasil tem uma importância.
O Marco Civil repercute no mundo inteiro. O Marco Civil da Internet. É preciso desdobrá-lo, garantindo essa neutralidade, garantir que não haja privatização de estruturas. Eu não vejo com bons olhos a proposta que o Facebook fez para o governo brasileiro. Aquilo ali é um bombom que eles dão para garantir essa privatização dentro da estrutura da internet. A gente não pode cair nessa cilada.
Nós somos vistos coma admiração e respeito inclusive pelos países europeus que deflagraram processos semelhantes a partir do Marco Civil e do discurso da presidenta Dilma na ONU sobre a espionagem, sobre a necessidade de preservar a internet como um espaço público importante da humanidade. A gente não pode retroceder e aceitar espelhinho que venham nos oferecer aqui para manter uma ordem colonial digital. Então, eu não vejo com bons olhos a proposta.
Acho que a gente tem que avançar em outra direção, na direção da afirmação de algo que o Brasil está preparado para fazer. Nós somos um dos países mais conectados do mundo. E já com uma experiência, um discernimento da importância pública dessa esfera, que é preciso tratar.
E, nas áreas das artes, os pontos de cultura vão ser revalorizados. Estamos dando um novo tratamento, mais amplo. Vamos regulamentar o que é Pontão de Cultura, que estava meio solto o conceito. Ou seja, em todas as áreas, nós estamos construindo. O planejamento estratégico nós estamos fechando agora. Não sei se você reparou, nós revitalizamos a comunicação no ministério. A gente não pode ficar dependendo da honestidade de um jornalista ou de outro na relação com a sociedade.
A gente precisa criar mecanismos também de relação direta. Então, aí entra a mídia livre, os jornalistas que estão buscando criar o embrião de uma nova comunicação no Brasil, mas nós também temos que ter uma inteligência, uma leveza, uma agilidade na área da comunicação. E a gente está construindo isso. Já dá para sentir que a gente trata a comunicação como uma das políticas culturais e não como algo auxiliar, como uma linha auxiliar.
Fórum – E sobre os direitos autorais?
Sobre os direitos autorais, estamos numa luta para garantir os direitos em um ambiente criado pela internet, pela digitalização. Ninguém quer pagar os direitos autorais para os artistas brasileiros. Proporcionalmente, é o maior desequilíbrio da balança de pagamentos. O Brasil paga todos os direitos autorais estrangeiros e não recebe quase nenhum. Os artistas estão sendo prejudicados e a maior economia, a maior escala de direito autoral é no mundo digital.
E aí não há direito autoral no ambiente digital e no século XXI sem o Estado regulador que obrigue que se realize. Nós vamos falar com os artistas. Eu já fiz reunião com o Procure Saber e com o GAP (Grupo de Apoio Parlamentar), são as duas maiores estruturas representativas dos músicos. A gente quer ampliar isso para que possa ir, inclusive, para os fóruns internacionais fundamentados numa legislação brasileira. Eu tenho procurado trabalhar com o Congresso – o Senado e a Câmara – e vamos avançar. E a mudança na Lei Rouanet também, que é fundamental.
Entrevista concedida a Maíra Streit, publicada no Portal Fórum – www.revistaforum.com.br