“Só com regulamentação política vamos acabar com os monopólios na internet”

A CryptoRave reuniu hackers, ativistas e estudiosos da internet em uma maratona de atividades em 24h seguidas, na cidade de São Paulo, nos dias 24 e 25 de abril. Foram 37 espaços que debateram segurança, criptografia, vigilância de agências de segurança – como a estadunidense NSA -, liberdade de expressão e privacidade, além dos monopólios da internet.

O sueco Peter Sunden, cofundador do The Pirate Bay, um dos maiores sites de busca, download e envio de arquivos – muitos dos quais “piratas”, como o nome sugere – foi um dos participantes da Rave.

O site e seus fundadores são alvos de constante perseguição. Em 2008, Sunden e mais três fundadores do Pirate Bay foram levados a julgamento pela Justiça sueca, acusados de “ajudar (outros) a infrigir leis de copyright”. Em 2009, ele foi condenado a um ano de prisão.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Sunden analisa como a internet se tornou centralizada e cheia de monopólios. Ele também aponta as consequências da coleta de dados pelas agências de vigilância e questiona a parceria que o governo brasileiro está fazendo com o Facebook.

Brasil de Fato – Qual sua opinião sobre o funcionamento da internet hoje?

Peter Sunden – A internet vai contra todos os ideais sob os quais ela foi fundada. Basicamente, criamos um sistema descentralizado, mas toda a informação foi centralizada por grandes empresas. É como dar ao mundo uma geladeira, mas usar um único compartimento gigante para armazenar tudo, o que é muito estúpido.

Devemos começar a perceber que com essa centralização vamos perder em termos de informação, cultura, comunicação e, também, infraestrutura, porque tudo depende mais e mais da internet. Somos ingênuos, deixamos chegar a este ponto porque utilizamos essa tecnologia por muito tempo sem pensar no que ela significava.

O que você diria para alguém que fala que a internet é um espaço livre e democrático?

P.S. – O capitalismo promete várias coisas, mas nunca te diz o custo. Na internet, você pode ficar no seu canto, criar uma rede social livre, mas os usuários não vão vir, porque eles estão nesse shopping chamado Facebook. Você pode ter sua lojinha, mas nunca terá clientes. Por isso, do jeito que usamos a internet hoje, a internet não é realmente “livre”.

O principal problema é que não há regulação. Não criamos leis que protegessem nossa privacidade, nossos direitos, porque a rede é vista como um “mercado aberto”, que todos poderiam usar. Mas não devemos tratar a internet como um mercado. Ela é uma infraestrutura, e temos que discutir quem a controla e as leis para seu funcionamento.

Como o The Pirate Bay foi criado?

P.S. – Eu queria dizer que tínhamos um grande plano, mas não era o caso. Começamos o Pirate Bay porque queríamos brincar com tecnologia nova.

Como você enxerga a pirataria, tanto no mundo real como no virtual?

P.S. – A pirataria no mundo real, se falarmos de informação, como filmes que são gravados num cd, tem um custo de produção. A pirataria online não tem esse custo, pois não há o objeto físico que deve ser produzido. Se você é contra as pessoas que lucram com a pirataria, a pirataria online resolve isso, tirando o dinheiro da equação.

Fora isso, elas são similares, pois dão a pessoas que não teriam condições de obter um certo produto ou informação a chance de tê-lo.

Qual o impacto que as leis de copyright causam na cultura?

P.S. – Essas leis são uma doença e estão se espalhando rapidamente. O Brasil tentou, com [o ex-ministro] Gilberto Gil e outras pessoas visionárias, fazer algo sobre isso e trabalhar com Creative Commons e outras alternativas ao copyright.

O copyright não é feito para pessoas, é feito para companhias, empresários que já dominam o mercado e podem comprar copyright dos artistas para controlar o mercado. E então os consumidores são obrigados a pagar o preço que essas pessoas querem. Isso que é o copyright é: um monopólio para empresas e pessoas ricas.

Como você avalia o trabalho do Wikileaks? Há formas de melhorar a plataforma e permitir que mais documentos vazem?

P.S. – Com o Wikileaks temos novamente o problema de centralizar a comunicação na rede. Independente de sua importância, o Wikileaks não é a única plataforma de vazamento de arquivos; há outras, mas estas não recebem atenção. A maior coisa que devíamos fazer em relação à internet é descentralizar, e isso vale para todas as áreas.

Não deveríamos ter só um sistema de compartihamento de arquivos, devemos ter vários; não devemos ter só uma plataforma para vazar aquivos, precisamos de várias. Há outros grupos como o Intercept, do Glenn Greenwald, que tenta fazer o mesmo que o Wikileaks faz, mas com um viés mais jornalístico.

Quando Edward Snowden entregou os documentos ao Greenwald, eles tiveram uma forma de vazar os arquivos interessante, liberando documentos de pouco em pouco, deixando que eles causassem impacto. É uma alternativa melhor ao que o Wikileaks faz, de despejar centenas de milhares de documentos de uma vez sobre um tema, como fizeram com a Guerra do Afeganistão.

Como é possível descentralizar a internet, dado esse panorama de monopólios?

P.S. – Infelizmente, com regulação política. Passamos da época em que a tecnologia sozinha resolveria o problema. Podemos criar a melhor rede social possível, aberta, mas ela não teria usuários, pois os usuários estão no Facebook.

A regulação deveria funcionar para proteger os usuários e impedir que as companhias utilizem os dados deles à vontade. Por exemplo, se o Facebook quer ter usuários brasileiros, ele deveria assinar um acordo no qual os dados são do usuário, não da empresa. Se criarmos regras e padrões assim, alguma coisa pode mudar.

Agora, não importa se você tem a tecnologia sem os usuários. E discutir esses assuntos no Facebook é difícil, porque eles censuram muitas coisas que você escreve e posta, muitas vezes sem que você saiba.

O Facebook é a maior ditadura que existe no mundo. Com uma população maior que a da China, e tem um ditador totalitário. É um “país” assustador que emerge, e precisamos de regulação para combater isso.

Qual o objetivo da coleta massiva de informações da internet, por agências como a NSA?

P.S. – Você pode usar informação, mesmo se não souber para o quê ainda. Um exemplo clássico é que na Suécia o governo começou um programa chamado PKU. A ideia era que cada criança recém-nascida que faria parte do programa doaria uma amostra de sangue. Com tantas amostras, era possível resgatar as árvores genealógicas e fazer estudos sobre doenças genéticas. É um ótimo sistema, que ajudou muitas pessoas e curou doenças, além de avançar na pesquisa contra o câncer.

Em 2003, a ministra de assuntos internacionais da Suécia, Anna Lindh, foi assassinada, e a polícia, que tinha amostras de DNA do assassino, mas não sabia quem era, foi até o laboratório do PKU, que tinha o registro de todo mundo nascido desde 1979, e descobriu quem era o assassino. A partir daí, o registro ao PKU foi obrigatório e as pessoas não podem sair mais do projeto.

De fato, isso pode ajudar a resolver crimes, mas nós concordamos com isso como sociedade? Não, nunca discutimos. E isso é o que ocorre hoje na internet: a NSA pode não ter necessidade ou saber o uso que essas informações terão hoje, mas um uso vai existir no futuro. E será muito bom para o governo estadunidense ter guardado tudo isso.

E costumamos esquecer a história rapidamente. Os nazistas usaram arquivos com os nomes e endereços dos judeus para encontrá-los e realizar assassinatos. Então, o objetivo das agências de inteligência não é só guardar uma coisa sem ter motivo; num futuro essas informações podem ter uso, e isso vai ser problemático para nós.

Como uma pessoa normal pode proteger seus dados na internet?

P.S. – Existem ferramentas, mas o problema é que essas ferramentas são separadas dos sistemas que as pessoas usam. Mesmo se criarmos um ótimo sistema de chat, as pessoas vão continuar conversando pelo Facebook. A criptografia, por mais segura que seja ao impedir que o conteúdo da mensagem seja visto, não impede que as agências de vigilância saibam quem fala com quem.

Você pode se proteger usando encriptação, e é importante, mas isso é basicamente uma camisinha. Você está protegendo você e a outra pessoa contra a doença, mas não está protegendo a todos, nem curando a doença. E acho que precisamos fazer ambos. Temos que nos proteger e ensinar mais pessoas a utilizarem essas “camisinhas da internet”, como criptografia e plataformas alternativas de comunicação, mas também precisamos evitar o avanço da doença.

Só vamos fazer isso pressionando os políticos, os governos e fazendo com que eles entendam os problemas que essa vigilância causa a um país e criem formas de regulamentação. Está na hora de colocar os pés no chão e impedir que isso continue, antes que seja tarde demais.

Qual a sua opinião sobre a parceria que o governo brasileiro fez com o Facebook para levar internet a regiões mais remotas?

P.S. – Acho estúpido o governo brasileiro ir a apenas uma companhia para fazer um projeto assim. Deveriam trabalhar com todos. Não tenho certeza quais os termos do acordo, mas para o Facebook isso é uma manobra de relações públicas. E não entendo o porquê dessa parceria agora.

O Facebook não tem nenhum interesse com a privacidade, eles querem o oposto. E um projeto assim permite que se domine a infraestrutura, o que facilita controlar os usuários e ter certeza que eles não deixem a rede.

O Governo Lula apoiava softwares livres e soluções mais democráticas para a rede. Não sei porque o interesse de começar a trabalhar com alguém que é o inimigo neste caso. O Facebook não vai ajudar a manter a privacidade das pessoas intacta.

Entrevista concedida a José Coutinho Júnior, publicada em Brasil de Fato – www.brasildefato.com.br

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