Com tanto dinheiro, por que não fazemos nada assim?

É normal que todos os sistemas de dominação possuam seus próprios mecanismos de crítica consentida. Trata-se de evitar que a força da crítica acabe sendo toda canalizada por aqueles que fazem o combate sistêmico da dominação. Hollywood muitas vezes foi chamada para fazer esse papel de crítica consentida, quer seja especificamente aos Estados Unidos quer seja ao capitalismo de forma mais global.

Um dos principais mecanismos utilizados por essa crítica consentida é a escolha de alvos individuais. O malvado da vez pode ser um empresário ganancioso, um cientista louco, um político corrupto ou até mesmo o poderoso presidente norte-americano. Mas, o sistema em si permanece justo e, ao fim, acaba expurgando o mau elemento.

Mas, obviamente, as coisas não são tão dicotômicas assim e muitas vezes essa crítica consentida pode transcender seus objetivos iniciais, apontando para as entranhas do sistema de dominação. Por dispor de maior acesso aos meios de produção e pelo alcance de sua distribuição, essa crítica consentida que transcende seus objetivos iniciais pode ter um papel relevante na crítica ao próprio sistema.

Canais norte-americanos

É justamente essa externalidade que tem ocorrido agora, quando alguns canais da TV norte-americana buscam um nicho de um público adulto, órfão do cinema (cada vez mais juvenil). São canais como HBO, AMC e Starz que passaram a fazer séries voltadas a um público adulto e algumas bastante críticas ao american way of life.

Séries como The Shield (FX) e The Wire (HBO) expõem a corrupção endêmica, o racismo e as relações de classe existentes no sistema de justiça norte-americano, especialmente a polícia. Nesses casos, não se trata de uma maçã podre, mas do próprio sistema, intrinsecamente injusto e excludente. O detetive Vic Mackey, de The Shield, tem o apoio do prefeito de Los Angeles para criar um grupo autônomo de policiais com o objetivo de reduzir a criminalidade em um bairro podre da cidade, onde vivem negros e latinos. Sua estratégia é caçar os pequenos criminosos e construir uma aliança com o narco-tráfico em torno da queda dos índices de violência. O delegado que se opõe a tais métodos não age baseado em qualquer idéia de justiça, mas na ambição de se eleger vereador.

Já séries como Boardwalk Empire (HBO), Boss (Starz) e House of Cards (Netflix) tratam da corrupção na política e de suas relações promíscuas com a iniciativa privada. Tom Kane, o corrupto prefeito de Chicago interpretado por Kelsey Grammer na série Boss, aceita suborno de empreiteiras, distribui cargos no governo para sua base de vereadores, frauda licitações, manda matar oponentes, flerta com republicanos e democratas ao mesmo tempo e até aceita que a própria mulher faça sexo com outro homem para o bem de sua carreira política. Na série toda não há um único personagem que possa ser tido como herói e que atue baseado em princípios nobres. Todo o sistema está podre!

Brasil

Um dos argumentos para o uso dos mecanismos de renúncia fiscal no fomento ao audiovisual é evitar que a escolha sobre quem vai receber recursos fique toda nas mãos de um pequeno grupo de burocratas ou do próprio governo de plantão. A idéia seria evitar a censura. Na prática, contudo, as decisões hoje estão cada vez mais concentradas na Globo e nos grandes grupos de mídia transnacionais, que decidem onde serão aplicadas as verbas de renúncia fiscal (públicas, portanto).

No caso da televisão, mesmo com o aumento significativo dos recursos, os resultados ainda deixam muito a desejar. Talvez ainda por influências das novelas, o que se produz em termos de séries é muito fraco, com roteiros frágeis e descartável. Quando consegue alcançar seus objetivos, não há nada que consiga ir além do consumo rápido e despretensioso nas séries brasileiras, mesmo aquelas que consomem milhões em recursos públicos.

Quanto o Estado brasileiro ainda terá que gastar para ter algo que seja minimamente relevante do ponto de vista cultural, social e estético?

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

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