Garantia da liberdade de expressão avança, ainda timidamente

Quando tratou de legislar sobre a liberdade de expressão, a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 mostrou-se decidida a registrar que o país saía de um longo período ditatorial. Tão decidida, que o texto constitucional traz dois artigos dedicados a consagrar este direito: o 5o, dentro do capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e o 220, no capítulo Da Comunicação Social.

Passados 20 anos, a redundante conquista encontra-se no centro de diversas polêmicas. A motivação para tantas delas é menos a redundância em si e mais os diversos e distintos interesses que foram acomodados pela Constituição. A tensão entre tantos interesses não se esgotou com a duplicidade do registro da liberdade de expressão como direito fundamental dos brasileiros em 1988, mas, ao contrário, parece renovada em 2008 pelos mais recentes e acalorados debates sobre projetos de lei e medidas governamentais que perpassam o tema.

Em um inventário mínimo, nos últimos anos a liberdade de expressão esteve no cerne de discussões sobre as propostas de regulação da propaganda de bebidas e da publicidade infantil, o estabelecimento de regras para a classificação indicativa de programas de TV e a tentativa de se criar uma Agência Nacional do Audiovisual que regulasse todo o setor. Em todos estes casos, foi evocada a possibilidade de cada uma destas iniciativas constituir-se em embaraço ao direito de liberdade de expressão.

Polêmicas podem ser consideradas parte do processo de consolidação de um direito. “Nenhum direito humano é absoluto. Eles são interdependentes, inter-relacionados. É muito comum que eles entrem em conflito e isso não é uma aberração”, explica Paula Martins, coordenadora do escritório brasileira da ONG Artigo 19. “O amadurecimento do debate sobre o que é a liberdade de expressão é que leva a ver quais os limites legítimos a que ele está submetido. O problema é identificar limites ilegítimos.”

Do ponto de vista constitucional, a lógica é a mesma. Como aponta José Eduardo Romão, doutorando em Direito Constitucional pela UnB e ex-diretor do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça, a “Constituição acolhe as diferentes pretensões, as diferentes visões de mundo, de estilos de vida” e só na sua aplicação em situações reais pode-se chegar a um equilíbrio entre elas.

Falsa polêmica

Se os embates são esperados e até benéficos, ao tornarem mais claros o que se pode colocar sob o chapéu da liberdade de expressão, o principal problema parece ser a polarização do debate em torno de uma falsa polêmica: a de que o estabelecimento de quaisquer limites às atividades midiáticas representam atentados à esta liberdade. O argumento tem sido repetidamente evocado pelo setor empresarial da comunicação, dos radiodifusores aos publicitários.

Nos longos anos que antecederam a implantação da classificação indicativa na TV, a medida foi seguidamente comparada à volta da censura. "O Estado não tem direito de impor a sua visão de mundo. Não existe instrumento mais democrático do que o controle remoto. O Estado pretender impor horário ou prévia submissão aos programas é prática inaceitável. É censura. Levamos muito tempo para nos livrar disso e não queremos que volte", sustentava Luiz Alberto Barroso, advogado contratado pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), em junho de 2007, durante um dos episódios mais marcantes da disputa. Barroso falava durante um seminário realizado pelo Ministério da Justiça, ladeado por parte do elenco da Rede Globo, mobilizado pela empresa para defender a causa. [Saiba mais. ]

A estratégia do advogado da Abert foi “fatiar” a Constituição e o artigo 220 em especial. A proibição da censura está registrada neste artigo, em seu parágrafo 2o. A classificação indicativa está prevista no parágrafo 3o, como obrigação da União em legislar a respeito da regulação de espetáculos de diversão e sua relação com as diferentes faixas etárias.

“Fatiar a Constituição desta maneira serve apenas para diminuir o seu poder de garantir direitos”, afirma Romão, que esteve à frente da equipe do Ministério da Justiça que, por fim, conseguiu publicar a Portaria 1.220 e instituir a classificação indicativa para programas de televisão. Para se garantir o inverso, ou seja, a efetivação dos direitos, é preciso pensar a Constituição na sua integralidade do texto constitucional, ou seja, como cada um dos artigos tem sua aplicação condicionada pelos demais.

Liberdade para alguns

Outro exemplo deste “fatiamento” lembrado por Romão é o da recém cunhada expressão “liberdade de expressão comercial”. “Não é só uma grande bobagem. É uma artimanha salafrária”, afirma.

A artimanha, neste caso, tem sido sustentada pelas agências de publicidade e também recai sobre uma interpretação parcial do artigo 220. A defesa da dita liberdade de expressão comercial ganhou vulto recentemente, durante o IV Congresso Brasileiro de Publicidade, realizado em julho deste ano. O documento final do evento denuncia e repudia “todas as iniciativas de censura à liberdade de expressão comercial, inclusive as bem intencionadas”.

A lista das iniciativas tomadas por censura inclui uma nova portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a propaganda de medicamentos; a proposta de portaria da mesma agência sobre publicidade de alimentos não-saudáveis e o projeto de lei, aprovado por comissões da Câmara dos Deputados, que proíbe a publicidade infantil. A mais censória das medidas, merecedora de vídeos publicitários amplamente divulgados em horário nobre, é o projeto de lei que reduz de 13 para 0,5 GL (graus Lussac) a medida para se considerar uma bebida como alcoólica. Com isso, cervejas e vinhos passariam a também ser cobertas pela regulamentação que impede a veiculação de publicidade de bebidas alcoólicas no rádio e na TV entre as 6h e as 21h. [Saiba mais ]

Qualquer que seja o tema em debate, Romão acredita que é importante “levar a sério as objeções que os parlamentares e mesmo as indústrias apresentam”, até mesmo como estratégia para expor os comentários de má fé. No caso da publicidade, de novo a argumentação empresarial aposta em fazer colidir direitos garantidos constitucionalmente, como por exemplo a proteção especial à criança e a livre iniciativa, que permitiria que a publicidade vende-se o que quisesse a quem quisesse, inclusive a meninos e meninas de 1 ou 2 anos. E, também de novo, tenta opor previsões do mesmo artigo 220.

Especial, mas nem tanto

Os seis parágrafos sob o caput do artigo 220 ajudam a dar contornos mais nítidos ao que deve ser o papel do Estado brasileiro em relação a situações especiais envolvendo a prática da comunicação social. Por exemplo, reafirma-se a proibição de censura de qualquer tipo e a exigência de registro para a publicação de veículos impressos, bem como se estabelece alguns temas que devem ser alvo de lei federal específica, como no caso da publicidade de medicamentos, bebidas e tabaco.

O fato de a Constituição reconhecer que o trabalho da mídia e também os seus efeitos se dão sob condições excepcionais não coloca os veículos de comunicação ou a publicidade em uma categoria especial, não sujeita ao que diz todo o resto do texto constitucional. “Liberdade de expressão é diferente de liberdade de imprensa e liberdade de imprensa não é liberdade de empresa”, resume Paula Martins, da Artigo 19.

Em outras palavras, não há qualquer previsão constitucional que garanta tratamento especial às formas empresariais de comunicação, o que não significa, entretanto, que a Carta Magna não reconheça a especificidade dos processos midiáticos. Isso inclui ter uma visão mais ampla do que significa o pleno exercício da liberdade de expressão. “Internacionalmente, essa visão tem incluído, cada vez mais, a dinâmica de comunicação em que o meu direito é falar e também receber o que é dito por outros, é participar da construção dos meios de comunicação”, explica Paula.

Direito à comunicação

Trazer esta concepção contemporânea para a prática das políticas públicas e das decisões judiciais parece ser o desafio do momento a que estão submetidos os defensores da comunicação como um direito humano. Os avanços importantes conseguidos ao longo dos 20 anos da Constituinte mostram-se concentrados nos conflitos entre a liberdade de expressão e os chamados direitos individuais.

“Discussões sobre o direito à privacidade ou direito à imagem, por exemplo, estão bem mais claras”, avalia a coordenadora da Artigo 19. Ainda no campo dos direitos individuais, a situação segue “muito complicada” quando é preciso diferenciar um discurso crítico de um discurso difamatório, o que, segundo Paula, tem criado situações de cerceamento do trabalho jornalístico e também de militantes das organizações de defesa de direitos humanos e dos movimentos sociais.

Quando se ultrapassa a fronteira do direito individual para o direito coletivo, os avanços são tímidos. Há disparidades gritantes entre decisões do Judiciário, por exemplo, em relação a questões como a violência praticada por órgão do Estado ou a burocracia histórica no setor de comunicação em relação às rádios comunitárias que se constituem, claramente, como limites ao exercício da liberdade de expressão.

Outro indicador é que apenas um único processo de direito de resposta coletivo, movido contra a Rede TV! por conta da exibição do programa “Tardes Quentes” foi até hoje concluído. A ação resultou em 30 dias de veiculação de programação produzida pelas entidades da sociedade civil, como forma de reparação à violação de direitos humanos identificadas pela Justiça nos quadros apresentados por João Kléber. Outras ações semelhantes já foram iniciadas, mas ou foram indeferidas, ou enfrentam recursos de toda ordem.

Para José Eduardo Romão, os avanços estão muito mais concentrados no papel assumido pela sociedade civil – que, segundo ele, “passa a solicitar com clareza e objetividade o direito à comunicação” – do que em respostas efetivas do Estado brasileiro. Segundo ele, “o direito à comunicação é todo um capítulo – o 220 – e ele só se realiza quando realizo todos os artigos daquele capítulo, mas a Justiça brasileira e o Supremo Tribunal Federal, em especial, têm ainda uma certa dificuldade da vivência e aplicação destes novos direitos”.


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