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A Era Lula na Comunicação

A compreensão dos impactos do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na comunicação no Brasil é tarefa árdua e provavelmente só se findará daqui alguns anos. Por isso, o Observatório do Direito à Comunicação  está produzindo uma série de reportagens, que serão publicadas nos próximos meses, sobre os últimos oito anos do setor, de modo a sintetizar ao leitor, os principais temas e ações deste período.

O objetivo não é resumir o cenário as ações do Palácio do Planalto, uma vez que o Legislativo e Judiciário também são protagonistas do roteiro institucional. Mas é fato que as ações do Executivo ainda são as principais norteadoras das ações das demais esferas.

Resgataremos os principais temas abordados pelos quatro ministros que passaram pela pasta das Comunicações neste período: Miro Teixeira, Eunício Oliveira, Hélio Costa e José Artur Filardi, não esquecendo das participações do Secretários de Comunicação Luiz Tadeu Rigo, Luiz Gushiken, João Roberto Vieira da Costa e Franklin Martins.

TV Pública
Telespectadores consideram TV Brasil uma alternativa às emissoras comerciais
Falta de profissionais e problemas técnicos emperram crescimento da EBC

Conteúdo
Classificação Indicativa é a principal conquista da Era Lula
Violações aos direitos humanos não revogam concessões no Brasil

Publicidade
Mercado publicitário sai fortalecido e trava regulamentação

 

 

Gestão do espectro é tema de série do Observatório

A distribuição das faixas de frequência, os critérios e parâmetros de gestão desse bem público chamado espectro eletromagnético estão na base das políticas públicas de comunicação e podem moldar – ou não – um sistema que respeite o direito humano à comunicação. Por esta razão, a gestão do espectro é objeto do terceiro volume da série Debates Fundamentais, conjunto de especiais produzidos pelo Observatório do Direito à Comunicação. A série tem como objetivo contribuir para a discussão dos principais temas da área da comunicação no país, oferecendo uma perspectiva crítica da conjuntura.

A íntegra do especial “Direito à comunicação no ar: a gestão do espectro eletromagnético brasileiro” pode ser acessada através da Biblioteca do Observatorio.

Veja também os outros especiais da série Debates Fundamentais:

* Sistema público de comunicação no Brasil: as conquistas e os desafios

* A convergência tecnológica e o direito à comunicação

Garantia da liberdade de expressão avança, ainda timidamente

Quando tratou de legislar sobre a liberdade de expressão, a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 mostrou-se decidida a registrar que o país saía de um longo período ditatorial. Tão decidida, que o texto constitucional traz dois artigos dedicados a consagrar este direito: o 5o, dentro do capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e o 220, no capítulo Da Comunicação Social.

Passados 20 anos, a redundante conquista encontra-se no centro de diversas polêmicas. A motivação para tantas delas é menos a redundância em si e mais os diversos e distintos interesses que foram acomodados pela Constituição. A tensão entre tantos interesses não se esgotou com a duplicidade do registro da liberdade de expressão como direito fundamental dos brasileiros em 1988, mas, ao contrário, parece renovada em 2008 pelos mais recentes e acalorados debates sobre projetos de lei e medidas governamentais que perpassam o tema.

Em um inventário mínimo, nos últimos anos a liberdade de expressão esteve no cerne de discussões sobre as propostas de regulação da propaganda de bebidas e da publicidade infantil, o estabelecimento de regras para a classificação indicativa de programas de TV e a tentativa de se criar uma Agência Nacional do Audiovisual que regulasse todo o setor. Em todos estes casos, foi evocada a possibilidade de cada uma destas iniciativas constituir-se em embaraço ao direito de liberdade de expressão.

Polêmicas podem ser consideradas parte do processo de consolidação de um direito. “Nenhum direito humano é absoluto. Eles são interdependentes, inter-relacionados. É muito comum que eles entrem em conflito e isso não é uma aberração”, explica Paula Martins, coordenadora do escritório brasileira da ONG Artigo 19. “O amadurecimento do debate sobre o que é a liberdade de expressão é que leva a ver quais os limites legítimos a que ele está submetido. O problema é identificar limites ilegítimos.”

Do ponto de vista constitucional, a lógica é a mesma. Como aponta José Eduardo Romão, doutorando em Direito Constitucional pela UnB e ex-diretor do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça, a “Constituição acolhe as diferentes pretensões, as diferentes visões de mundo, de estilos de vida” e só na sua aplicação em situações reais pode-se chegar a um equilíbrio entre elas.

Falsa polêmica

Se os embates são esperados e até benéficos, ao tornarem mais claros o que se pode colocar sob o chapéu da liberdade de expressão, o principal problema parece ser a polarização do debate em torno de uma falsa polêmica: a de que o estabelecimento de quaisquer limites às atividades midiáticas representam atentados à esta liberdade. O argumento tem sido repetidamente evocado pelo setor empresarial da comunicação, dos radiodifusores aos publicitários.

Nos longos anos que antecederam a implantação da classificação indicativa na TV, a medida foi seguidamente comparada à volta da censura. "O Estado não tem direito de impor a sua visão de mundo. Não existe instrumento mais democrático do que o controle remoto. O Estado pretender impor horário ou prévia submissão aos programas é prática inaceitável. É censura. Levamos muito tempo para nos livrar disso e não queremos que volte", sustentava Luiz Alberto Barroso, advogado contratado pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), em junho de 2007, durante um dos episódios mais marcantes da disputa. Barroso falava durante um seminário realizado pelo Ministério da Justiça, ladeado por parte do elenco da Rede Globo, mobilizado pela empresa para defender a causa. [Saiba mais. ]

A estratégia do advogado da Abert foi “fatiar” a Constituição e o artigo 220 em especial. A proibição da censura está registrada neste artigo, em seu parágrafo 2o. A classificação indicativa está prevista no parágrafo 3o, como obrigação da União em legislar a respeito da regulação de espetáculos de diversão e sua relação com as diferentes faixas etárias.

“Fatiar a Constituição desta maneira serve apenas para diminuir o seu poder de garantir direitos”, afirma Romão, que esteve à frente da equipe do Ministério da Justiça que, por fim, conseguiu publicar a Portaria 1.220 e instituir a classificação indicativa para programas de televisão. Para se garantir o inverso, ou seja, a efetivação dos direitos, é preciso pensar a Constituição na sua integralidade do texto constitucional, ou seja, como cada um dos artigos tem sua aplicação condicionada pelos demais.

Liberdade para alguns

Outro exemplo deste “fatiamento” lembrado por Romão é o da recém cunhada expressão “liberdade de expressão comercial”. “Não é só uma grande bobagem. É uma artimanha salafrária”, afirma.

A artimanha, neste caso, tem sido sustentada pelas agências de publicidade e também recai sobre uma interpretação parcial do artigo 220. A defesa da dita liberdade de expressão comercial ganhou vulto recentemente, durante o IV Congresso Brasileiro de Publicidade, realizado em julho deste ano. O documento final do evento denuncia e repudia “todas as iniciativas de censura à liberdade de expressão comercial, inclusive as bem intencionadas”.

A lista das iniciativas tomadas por censura inclui uma nova portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a propaganda de medicamentos; a proposta de portaria da mesma agência sobre publicidade de alimentos não-saudáveis e o projeto de lei, aprovado por comissões da Câmara dos Deputados, que proíbe a publicidade infantil. A mais censória das medidas, merecedora de vídeos publicitários amplamente divulgados em horário nobre, é o projeto de lei que reduz de 13 para 0,5 GL (graus Lussac) a medida para se considerar uma bebida como alcoólica. Com isso, cervejas e vinhos passariam a também ser cobertas pela regulamentação que impede a veiculação de publicidade de bebidas alcoólicas no rádio e na TV entre as 6h e as 21h. [Saiba mais ]

Qualquer que seja o tema em debate, Romão acredita que é importante “levar a sério as objeções que os parlamentares e mesmo as indústrias apresentam”, até mesmo como estratégia para expor os comentários de má fé. No caso da publicidade, de novo a argumentação empresarial aposta em fazer colidir direitos garantidos constitucionalmente, como por exemplo a proteção especial à criança e a livre iniciativa, que permitiria que a publicidade vende-se o que quisesse a quem quisesse, inclusive a meninos e meninas de 1 ou 2 anos. E, também de novo, tenta opor previsões do mesmo artigo 220.

Especial, mas nem tanto

Os seis parágrafos sob o caput do artigo 220 ajudam a dar contornos mais nítidos ao que deve ser o papel do Estado brasileiro em relação a situações especiais envolvendo a prática da comunicação social. Por exemplo, reafirma-se a proibição de censura de qualquer tipo e a exigência de registro para a publicação de veículos impressos, bem como se estabelece alguns temas que devem ser alvo de lei federal específica, como no caso da publicidade de medicamentos, bebidas e tabaco.

O fato de a Constituição reconhecer que o trabalho da mídia e também os seus efeitos se dão sob condições excepcionais não coloca os veículos de comunicação ou a publicidade em uma categoria especial, não sujeita ao que diz todo o resto do texto constitucional. “Liberdade de expressão é diferente de liberdade de imprensa e liberdade de imprensa não é liberdade de empresa”, resume Paula Martins, da Artigo 19.

Em outras palavras, não há qualquer previsão constitucional que garanta tratamento especial às formas empresariais de comunicação, o que não significa, entretanto, que a Carta Magna não reconheça a especificidade dos processos midiáticos. Isso inclui ter uma visão mais ampla do que significa o pleno exercício da liberdade de expressão. “Internacionalmente, essa visão tem incluído, cada vez mais, a dinâmica de comunicação em que o meu direito é falar e também receber o que é dito por outros, é participar da construção dos meios de comunicação”, explica Paula.

Direito à comunicação

Trazer esta concepção contemporânea para a prática das políticas públicas e das decisões judiciais parece ser o desafio do momento a que estão submetidos os defensores da comunicação como um direito humano. Os avanços importantes conseguidos ao longo dos 20 anos da Constituinte mostram-se concentrados nos conflitos entre a liberdade de expressão e os chamados direitos individuais.

“Discussões sobre o direito à privacidade ou direito à imagem, por exemplo, estão bem mais claras”, avalia a coordenadora da Artigo 19. Ainda no campo dos direitos individuais, a situação segue “muito complicada” quando é preciso diferenciar um discurso crítico de um discurso difamatório, o que, segundo Paula, tem criado situações de cerceamento do trabalho jornalístico e também de militantes das organizações de defesa de direitos humanos e dos movimentos sociais.

Quando se ultrapassa a fronteira do direito individual para o direito coletivo, os avanços são tímidos. Há disparidades gritantes entre decisões do Judiciário, por exemplo, em relação a questões como a violência praticada por órgão do Estado ou a burocracia histórica no setor de comunicação em relação às rádios comunitárias que se constituem, claramente, como limites ao exercício da liberdade de expressão.

Outro indicador é que apenas um único processo de direito de resposta coletivo, movido contra a Rede TV! por conta da exibição do programa “Tardes Quentes” foi até hoje concluído. A ação resultou em 30 dias de veiculação de programação produzida pelas entidades da sociedade civil, como forma de reparação à violação de direitos humanos identificadas pela Justiça nos quadros apresentados por João Kléber. Outras ações semelhantes já foram iniciadas, mas ou foram indeferidas, ou enfrentam recursos de toda ordem.

Para José Eduardo Romão, os avanços estão muito mais concentrados no papel assumido pela sociedade civil – que, segundo ele, “passa a solicitar com clareza e objetividade o direito à comunicação” – do que em respostas efetivas do Estado brasileiro. Segundo ele, “o direito à comunicação é todo um capítulo – o 220 – e ele só se realiza quando realizo todos os artigos daquele capítulo, mas a Justiça brasileira e o Supremo Tribunal Federal, em especial, têm ainda uma certa dificuldade da vivência e aplicação destes novos direitos”.


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Promoção do conteúdo regional e independente existe só no papel

Uma rápida passada pelos canais de televisão revela uma triste constatação: a produção audiovisual no Brasil é centralizada e homogeneizada. Apesar da diversidade cultural e da pluralidade de opiniões existente em um país de dimensões continentais e das diversas possibilidades de formatos e experiências possíveis de serem feitas, o que se vê na TV é uma maioria absoluta de conteúdos – ficcionais ou jornalísticos – abordando ou baseando-se na realidade do eixo Rio-São Paulo.

No rádio, apesar da maior oferta de estações, o quadro não se altera. Mesmo que os DJs tenham à sua disposição variados gêneros e diversos estilos musicais, as estações centram-se na promoção da “parada de sucessos”, dando pouco espaço para as atrações locais. Já no caso das emissoras especializadas em jornalismo, reproduz-se a lógica de rede predominante na TV em experiências como CBN, Bandnews e Jovem Pan.

Este quadro contrasta com o capítulo Da Comunicação Social da Constituição Federal. No seu artigo 221, a Carta Magna estabelece como princípios para a programação das emissoras de rádio e televisão a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”, a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” e a “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”.

Elaborado sem grandes polêmicas durante a Constituinte, o artigo é considerado o principal avanço não realizado da Carta de 88 no setor das comunicações. “É uma medida regulatória que teria importantes implicações culturais e profissionais”, afirma o pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Venício A. de Lima. “O grande diferencial da democracia nas comunicações brasileiras se daria a partir da regionalização. Se se quer discutir pluralidade e diversidade, não há outra cosia a fazer senão colocar estes artigos em prática”, completa James Görgen, coordenador do projeto “Donos da Mídia”.

O calvário do 'projeto Jandira'

A relevância deste dispositivo foi percebida e já em 1990 a deputada Bete Mendes (PT-SP) apresentou um Projeto de Lei com vistas à regulamentação do artigo. A proposta foi reapresentada um ano depois pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) sob o número 256. Prevendo percentuais de cotas para a produção regional e independente, o projeto sofreu intensa resistência dos empresários de rádio e televisão.

Os representantes deste setor, organizados na Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), alegaram reiteradas vezes que o projeto era inconstitucional, apelando também para o argumento da inviabilidade do cumprimento da proposta. “Somos absolutamente favoráveis à programação regional, desde que possam haver regras que possam ser cumpridas pelas partes”, afirmou o então presidente da Abert, Paulo Machado de Carvalho, em um dos debates realizados no Conselho de Comunicação Social para debater a matéria.

Com os empresários atuando diretamente contra a aprovação da proposta, o PL-256 passou por um calvário de 12 anos até que se alcançasse um acordo que viabilizou sua aprovação na Câmara dos Deputados em agosto de 2003. Segundo a autora, o projeto cumpre um papel importante na democratização do setor. “A regionalização pode proporcionar maior pluralidade, diversificação, incremento econômico e mercado de trabalho”, afirmou a deputada. “Nós queremos o sotaque certo no lugar certo, a vestimenta certa no lugar certo, queremos que todos os talentos do país na tela a que os brasileiros assistem”, afirma.

Acordo na Câmara, estagnação no Senado

O texto aprovado na Câmara, resultado de um acordo entre seus defensores e o empresariado de televisão, prevê uma cota de horas para a exibição de programas regionais variável de acordo com o número de domicílios atendidos pela emissora. Para lugares com mais de 1,5 milhão de domicílios com aparelhos de TV, a emissora terá de veicular programação regional por 22 horas semanais. Em regiões que possuem entre 500 mil e 1,5 milhão de aparelhos a reserva seria de 17 horas. Nas regiões com menos de 500 mil televisores, a cota seria menor, de 10 horas por semana.

Do tempo destinado à programação regional, 40% têm de ser reservado a produções independentes. Segundo o projeto, produção independente é “aquela feita por agentes que não têm qualquer relação econômica ou de parentesco próximo com os proprietários ou acionistas de emissoras”. O conceito de produção independente se diferencia dos processos de produção terceirizada ao estabelecer que os direitos autorais das obras pertencem aos produtores independentes e não à emissora.

O pesquisador em audiovisual e hoje diretor de programação da TV Cultura, Gabriel Priolli, assinalou durante o debate no Conselho de Comunicação Social em 2004 que a proposta original da deputada Jandira Feghali era mais radical ao estabelecer como percentual mínimo de programação local/regional um patamar de 30%, independente de seu tamanho, localização geográfica, capacidade produtiva e condições financeiras da emissora. “O projeto finalmente aprovado, entretanto, suavizou consideravelmente as exigências para a regionalização da programação. Os percentuais obrigatórios foram estabelecidos de acordo com o porte do mercado televisivo nas diversas cidades do país, e flutuam em margens que vão de 5,95% a 19,04% – muito distantes, portanto, dos 30% originais – e que podem ser atingidas num período de até 5 anos – prazo dez vezes maior do que o do primeiro projeto.”

No Senado, cinco anos após o início de sua tramitação, o projeto – agora sob a denominação de PLC 59/03 – permanece estacionado na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, sob a relatoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA). E não há perspectiva de um desfecho para o calvário. “Há resistência de senadores que têm vínculos com o setor produtivo do audiovisual, principalmente as emissoras de TV repetidoras nos estados, que acham mais conveniente e barato reproduzir a programação nacional sem dar muito espaço para os produtos locais”, analisa a líder do PT na casa, Ideli Salvatti (PT-SC).

Para entidades da área do audiovisual defensoras do projeto, para que o projeto não seja “engavetado” em uma tramitação sem fim no Senado, é preciso haver uma tomada de posição do governo federal em favor dele. “A não ser que haja um Estado forte que canete, que tenha maioria no Congresso, não vamos ter como avançar com o projeto Jandira”, aponta Marco Altberg, da Associação de Produtores Independentes para TV (ABPI-TV).

Estrutura centralizada

O principal obstáculo ao avanço do projeto ou de qualquer outra iniciativa que possa valorizar a produção local e independente nas grades de programação das TVs é o modelo de negócios adotado pelo setor desde que o serviço de radiodifusão se expandiu no país, a partir da década de 60. A lógica das “redes nacionais” funciona com as emissoras locais cobrindo quase todo seu tempo de programação com a retransmissão do conteúdo produzido pelas “cabeças”, localizadas nas capitais paulista e carioca. As emissoras locais arrecadam recursos dos anunciantes da região oferecendo, em troca, a audiência garantida pela programação nacional. Já as “cabeças” garantem, com a diversificação das “praças”, a capilarização da audiência das redes e ainda recebem parte do dinheiro obtido a partir dos anúncios publicitários vendidos pelas afiliadas.

“A indisponibilidade progressiva de talento local, somada à fragilidade econômica do mercado anunciante na maioria das praças fora do eixo Rio-SP, levou a uma situação em que as emissoras locais e regionais converteram-se, praticamente, em meras repetidoras das redes nacionais, veiculando um número irrelevante de programas próprios, de qualidade sempre inferior àqueles produzidos pelas redes”, diz Rosário Pompéia, pesquisadora que se dedica ao tema das indústrias culturais regionais. Ela completa lembrando que este modelo não se caracteriza apenas pela centralização territorial, mas também pela concentração da produção nas cabeças-de-rede, barrando a veiculação de programas independentes.

A inversão desta lógica das redes nacionais teria de partir de uma regulação voltada para este fim. “A idéia-base seria o modelo norte-americano: obrigatoriedade de muitas horas regionais e 70% de produção independente no horário nobre”, sugere Marco Altberg. Em 1970, a Suprema Corte daquele país emitiu a decisão Financial Interest and Syndication Rules (Fin-Syn) limitando as horas de programação produzidas pelas próprias redes. A medida, que vigorou até 1995, incentivou um forte mercado de produção independente no país.

Novo embate na TV por assinatura

Enquanto o projeto da deputada Jandira Feghali agoniza no Senado Federal, um novo projeto trouxe à tona a polêmica em torno da reserva de espaço para produção independente. No início de 2007, foram apresentados três projetos tratando a regulamentação da televisão por assinatura. Reunidos na tramitação do primeiro apresentado, o PL-29, as propostas foram novamente alvo do ataque dos radiodifusores essencialmente por tentarem estabelecer cotas para a produção nacional e independente nas programações.

O debate ganhou corpo com a apresentação do substitutivo pelo relator Jorge Bittar (PT-RJ) na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados. Em sua última versão, divulgada no início de julho, o texto prevê cotas de conteúdo nacional de 3h30 para canais com conteúdo majoritariamente qualificado (ou seja, que sejam dedicados à veiculação de filmes, séries, documentários, etc.), devendo metade deste tempo ser reservado à produção independente. O texto também estabelece que os pacotes devem ter no mínimo 30% de canais brasileiros, os quais deverão veicular no mínimo oito horas de programação nacional, sendo ao menos quatro horas em espaço qualificado. A proposta também limita a 25% o número de canais que podem ser controlados por um mesmo grupo.

Após sucessivos adiamentos de sua votação, o PL-29 sofreu um revés ao ser redistribuído para a comissão de Defesa do Consumidor. “A iniciativa representa com certeza uma tentativa de atrasar a tramitação, de que caminho seja mais longo”, explica Lara Haje, pesquisadora da UnB que acompanha a tramitação do projeto. O novo relator, Vital do Rêgo (PMDB-PB), já deu declarações demonstrando resistência com a idéia de cotas, o que pode indicar a elaboração de um substitutivo bem diferente da direção até então construída por Jorge Bittar.

Para Lara Haje, com esta mudança, a persecptiva de aprovação do projeto fica cada vez mais distante. “Há pouca probabilidade do projeto avançar, pelo menos até o próximo ano. Acho também que o projeto só tem chance de ser aprovado se houver apoio explícito do governo, o que não há até o momento”, aposta.


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Regulação de outorgas de rádio e TV mantém oligopólio do setor

Cerca de 25 anos antes da promulgação da atual Constituição Federal, a radiodifusão brasileira ganhou seu arranjo institucional definitivo com a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações e a publicação dos dois decretos que o regulamentaram, o 52.795 e 52.026. Tudo isto, em 1963. As normas reafirmaram o modelo já estabelecido 30 anos atrás, baseado na exploração privada dos serviços de rádio e TV a partir de outorgas concedidas pelo Estado. Com base neste ambiente normativo, as duas mídias desenvolveram-se no Brasil como meios predominantemente comerciais.

O CBT e suas regulamentações estabeleceram os tipos de outorga (concessão, permissão e autorização), seu prazo (15 anos para TV e 10 para rádio) e o órgão com prerrogativa para sua aprovação e renovação (a Presidência da República, a partir de indicação do Conselho Nacional de Telecomunicações, que em 1967 seria incorporado pelo Ministério das Comunicações). Os textos também elencaram as obrigações que deveriam ser cumpridas pelos concessionários, inclusive para a obtenção da renovação: a veiculação de um mínimo de 5% de conteúdo noticioso, máximo de 25% do tempo de anúncios publicitários e pelo menos 5 horas de programação educativa; a transmissão da propaganda eleitoral e partidária e da “Voz do Brasil”, no caso do rádio, e a cessão de espaço para a formação de rede nacional quando solicitada pelo governo federal.

Um quarto de século depois, o capítulo Da Comunicação Social da Constituição Federal viria a consagrar alguns destes princípios e inovar em outros. Para Armando Rollemberg, jornalista da TV Senado e presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) à época, o resultado final foi uma demonstração do poderio do empresariado de mídia. “Nós, como movimento representativo da sociedade, por mais dinâmico e organizado que fôssemos, não tínhamos poder de interferir frente ao peso da Abert e ANJ, que atuaram fortemente. Isso se consumou na manutenção do status quo, especialmente nos artigos referentes às concessões.”

Condições assimétricas

Na avaliação do professor Venício Lima, o êxito dos interesses comerciais do setor se consolidou nas “condições assimétricas em relação às concessões de outros serviço público que a radiodifusão tem em relação à não renovação e ao cancelamento”. A Constituição de 88 estabeleceu que a cassação de outorgas só poderia se dar por decisão judicial e estabeleceu um procedimento que praticamente garante a renovação das licenças, ao prever o quórum de dois quintos dos parlamentares do Congresso em votação nominal para a não renovação.

“Por ele [o Artigo 223], as concessões tornam-se perenes. Ou alguém neste país acredita que algum parlamentar dirá em alto e bom som que determinada concessão não deve ser renovada?”, indaga Lalo Leal Filho, ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). “Se o fizesse passaria a enfrentar a ira eterna das emissoras que o condenariam ao ostracismo e à morte política. Foi um grande retrocesso.” Um dos motivos para esta improbabilidade é a fragilidade das exigências previstas na própria Constituição e em outras leis e a ausência total de fiscalização daquelas que existem.

Obrigações esquecidas

A Carta Magna proíbe a prática de monopólio e oligopólio (Art. 220) e exige que a programação seja preferencialmente voltada para finalidades educativas, culturais, artísticas e jornalísticas, bem como promova a produção independente e regionalizada (Art. 221). Como as demais obrigações da legislação infra-constitucional, nenhuma delas têm sido avaliadas.

Em 2007, por ocasião do vencimento de várias concessões de redes importantes como Globo, Record e Bandeirantes, a Casa Civil chegou a solicitar ao Ministério das Comunicações a comprovação documental do cumprimento dos mínimos e máximos referentes à programação, bem como o respeito aos princípios constitucionais elencados anteriormente. Após a reclamação do ministério de que tal verificação seria inviável e ampla demais, a Casa Civil recuou e retirou o pedido.

A argumentação da pasta comandada por Hélio Costa baseia-se na alegação da falta de clareza acerca dos critérios. Para o professor Murilo Ramos, coordenador do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (Lapcom-UnB), uma das questões que sustenta o argumento do Minicom é a total obscuridade do contrato celebrado entre o Estado brasileiro e os concessionários. “Quem conhecee um contrato destes? Quais obrigações ele estabelece?”, questiona.

Os contratos são armazenados pelo Tribunal de Contas da União, sendo publico no Diário Oficial apenas um extrato. No entanto, a assessoria do TCU informou que eles só podem ser publicizados em caso de processo judicial. “Os atos de assinatura dos contratos das demais áreas são formais. Comparece todo mundo, inclusive a imprensa. Já os contratos de rádio e TV ninguém nunca viu”, reforça o pesquisador e consultor Israel Bayma, fazendo referência à diferença brutal entre a transparência dos contratos de radiodifusão com os de telecomunicações.

Renovação automática

Agrava o quadro de renovação automática a manutenção de um mecanismo do Decreto 88.066, de 1983, que permite à concessionária continuar funcionando em caráter precário mesmo com sua outorga vencida desde que tenha entrado com o pedido de renovação no Executivo. Tal dispositivo permitiu chegar à absurda situação de o Ministério das Comunicações arquivar 184 processos de renovação por terem demorado mais para serem definidos do que o tempo da própria outorga que deveriam renovar.

O absurdo arquivamento dos pedidos evidencia a lentidão da tramitação dos processos. Segundo relatório parcial da sub-comissão criada para discutir os procedimentos de concessão de outorgas para rádio e televisão, uma licença de FM leva em média 7,2 anos para ser aprovada, sendo 6,5 em exame no Executivo e 0,7 no Legislativo. Embora a Constituição tenha alongado o procedimento, incluindo o Congresso na análise dos projetos de outorga e renovação, isso não pode ser aventado como justificativa uma vez que a principal demora está na fase de análise no Executivo.

Congresso entra no circuito

A inclusão do Congresso como validador da aprovação das licenças era vista à época como uma conquista, uma vez que a concentração do poder nas mãos apenas do presidente da República permitia o uso das outorgas como moeda de troca política. O próprio período da Constituinte foi um dos casos mais explícitos desta prática.

Entre março de 1985 e outubro de 1988, o governo Sarney distribuiu 1.028 outorgas, sendo 25% delas no mês de setembro de 1988, antes da Constituição. As evidências apontam que, com isso, o então presidente garantiu para si um mandato de 5 anos. Seis dias antes da promulgação da Carta Magna, o Diário Oficial trouxe a publicação de 59 outorgas.

Segundo Venício Lima, tal inovação foi “um tiro no pé”. “O que acontece é que a demanda política de que este poder [de controlar as licenças] fosse compartilhado com o Legislativo não levou em conta que, na tradição brasileira que já existia naquela época, os grandes beneficiários desta prática política eram as elites políticas locais e regionais que estavam direta e indiretamente representadas no Congresso”, explica.

Relações promíscuas entre mídia e política

A partir deste momento, os parlamentares, muitos já envolvidos no jogo de barganha política utilizando as concessões, trocaram de lado do balcão: passaram a ser os definidores do destino destas outorgas. O resultado foi a ocupação da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) por parlamentares donos de emissoras ou interessados no tema.

Há casos em que parlamentares votaram na renovação de sua própriaa concessões. Em 2003, dois deles vieram à tona. Em uma reunião da CCTCI em abril daquele ano, Nelson Proença (PPS-RS) participou da aprovação da renovação da Rádio Emissoras Ltda, de Alegrete (RS), da qual era sócio-proprietário da emissora. Corauci Sobrinho (DEM-SP), em junho daquele ano, repetiu o feito em relação à Rádio Renascença, de Ribeirão Preto (SP), emcujo quadro diretor estava o seu nome.

A conseqüência deste fenômeno é a apropriação da mídia pelos políticos. Segundo dados da pesquisadora Suzy dos Santos, há 128 geradoras e 1.765 retransmissoras de TV nas mãos de políticos. Os estados com maior número são o Paraná, com 15, Minas Gerais e São Paulo, com 13, e Goiás, com 10. Quando observado o índice por região, a maior ocorrência de parlamentares donos de veículos está no Nordeste, que possui 44 representantes legislativos-radiodifusores, seguido de longe pelo sudeste, com 18.

Frente à continuidade deste tipo de prática, houve uma segunda dita tentativa de moralização com a publicação dos Decretos 1.720, de 1995, e 2.106, de 1996. As duas normas passaram a prever licitação para a concessão de outorgas comerciais, excluindo as permissões para educativas. Segundo aponta estudo recente do pesquisador Cristiano Lopes Aguiar, as decretos “moralizadores” fizeram com que, no lugar de uma avaliação de mérito dos projetos para ocupação dos canais, apenas o preço pago pela licença seja o definidor das licitações [saiba mais ]. O resultado tem sido a concentração de novas outorgas nas mãos de empresários que já estão atuando no setor.

Ao mesmo tempo, ao livrarem as emissoras educativas dos processos de licitação, os decretos fizeram migrar a farra das concessões. "No fundo, esta medida transferiu o coronelismo eletrônico para as emissoras educativas, que continuaram sem licitação, e aprofundou a concentração ao privilegiar o poder econômico na escolha dos canais", diz Beatriz Barbosa, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

A avaliação é confirmada por reportagens como a da jornalista Elvira Lobato, da “Folha de São Paulo”, que revelaram como tanto no governo Fernando Henrique Cardoso quanto na gestão de Luis Inácio Lula da Silva houve considerável distribuição de licenças de educativas para políticos. Entre 1999 e 2002, o então ministro tucano das comunicações Pimenta da Veiga destinou 23 das 100 outorgas concedidas a grupos ligados a representantes eleitos. Nova matéria da jornalista em junho de 2006 revelou que ao menos 33% das 110 emissoras educativas aprovadas foram parar direta ou indiretamente nas mãos de políticos.

O mesmo tem ocorrido com as licenças para as rádios comunitárias. Estudo recente de Cristiano Lopes Aguiar em parceria com o professor Venício Lima revelou a gravidade da situação. Segundo a pesquisa, pelo menos 50% das 2.205 autorizações dadas a rádios comunitárias entre 1999 e 2004 estão sob controle de grupos partidários. Ela mostrou também que o cenário é nacionalizado: os cinco estados com maior incidência de políticos por trás de rádios comunitárias foram Tocantins, Amazonas, Santa Catarina, Espírito Santo e Alagoas.

Mudar o quadro “sem-lei”

A partir da avaliação crítica deste quadro, e por ocasião do vencimento de importantes outorgas em outubro de 2007, diversas entidades lançaram no ano passado a campanha Quem Manda é Você – por democracia e transparência nas concessões de rádio e TV [saiba mais ]. O Ministério das Comunicações não respondeu às solicitações da campanha. E, diferente de seu comportamento médio, encaminhou em menos de um ano os projetos de renovação das emissoras da Rede Globo ao Congresso.

Na Câmara, as entidades da sociedade civil vêm atuando para que a averiguação seja feita incorporando processos democráticos de avaliação e consulta à sociedade. Lograram, até agora, que as comissões de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e de Legislação Participativa (CLP) aprovaram pedidos de audiência pública para debater o assunto.

No entanto, o que é um procedimento usual na definição dos concessionários de serviço público pode tornar-se uma conquista suada. As resistências já começaram a ecoar dentro do Parlamento, evidenciando a postura refratária dos representantes dos interesses da radiodifusão a qualquer tipo de debate público sobre sua atuação. “Será um momento histórico colocar a sociedade para discutir a renovação de outorgas, mas para isso precisamos de apoio dos deputados e mobilização da sociedade”, diz a deputada Luiza Erundina (PSB-SP).


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