Democratização da cultura e da comunicação: uma simbiose necessária

Trazer para um encontro os debates sobre a democratização da comunicação e da cultura representa um reconhecimento de que essas duas lutas estão diretamente ligadas de forma que a democratização da cultura depende da democratização da comunicação, assim como a democratização da comunicação, para atingir seu potencial de emancipação, deve estar ligada à democratização da cultura. Com essa perspectiva, vários coletivos militantes pela comunicação e pela cultura estão organizando o 1º Encontro Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura, a ser realizado no mês de outubro em São Paulo.

A cultura é o conteúdo da comunicação. As representações culturais, entendidas como o conjunto de manifestações artísticas (ex: produção musical, audiovisual, literatura) e de manifestações não artísticas que também representam e reportam a sociedade (ex: conjunto da produção da imprensa), constituem a tradução pelo indivíduo de seu conhecimento da sociedade, além de contribuir para a formação de uma compreensão crítica da sociedade pelos interlocutores dessas representações culturais. Os conteúdos dessas representações culturais (artísticas e, nosso recorte, jornalísticas) são limitados pelo limite do conhecimento de seu autor, e pelas escolhas do autor (filtro das referências culturais) que serão feitas conforme a sua visão de mundo.

Como exemplo, não se pode exigir que um escritor do sul possa fazer um romance sobre as comunidades indígenas do norte do país, sem que ele tenha contato com tais comunidades. Da mesma forma, um morador de São Paulo sem acesso a outros meios de informação além da grande mídia dificilmente terá conhecimento sobre a realidade dos conflitos de terra no campo, de forma que não conseguirá formar uma opinião sobre tais conflitos diferente da opinião veiculada pelos meios de comunicação. Esse limite de conhecimento ou de acesso à informação não pode, contudo, ser alegado pelos grandes meios de comunicação. Estes têm potencial de ter acesso e de produzir conteúdo sobre toda a nossa diversidade cultural brasileira, seja tal cultura produzida no campo ou na cidade, entretanto, isso não ocorre porque o filtro de tais meios de comunicação tem sido o filtro do interesse pelo lucro, que prioriza a indústria cultural de massa, homogeneizada, e o filtro da defesa de interesses de uma elite conservadora, que prioriza uma comunicação não participativa, não interativa, e que enxerga o espectador como um indivíduo passivo, que deve apenas receber um conteúdo já formado.

Infelizmente, a produção cultural (manifestações artísticas e jornalísticas) veiculada pela grande mídia hoje é na verdade a reprodução de uma cultura hegemônica, das idéias da cultura dominante. E tais idéias “não são dominantes”, conforme Marilena Chauí, “porque abarcam toda a sociedade, nem porque a sociedade nela se reconheça, mas porque são idéias dos que exercem a dominação”. Nesse sentido, a conseqüência dessa dominação é a falta de conhecimento do povo sobre sua cultura e sua realidade. Se o limite da grande mídia é o filtro da comunicação, o limite da população é a falta de conhecimento, de acesso, assim como a dificuldade de produção e de veiculação de conteúdos produzidos por essa população.

É nesse espaço que se insere a luta pela democratização da comunicação e da cultura, com duas vertentes principais, a democratização do acesso à cultura e à comunicação e a democratização da produção da cultura e da comunicação. Democratizar o acesso significa instrumentalizar o acesso a todo o espectro cultural, que abarca não apenas a cultura hegemônica, mais facilmente acessível em virtude da chamada indústria cultural, mas também a cultura brasileira e latino-americana em toda a sua diversidade e riqueza, já que produzida por coletivos com histórias e características peculiares. A cultura dos movimentos sociais, a cultura dos quilombolas, a cultura indígena, a cultura tradicional, a cultura marginal, a cultura da periferia, a cultura do campo, a cultura urbana, e tantas outras. Democratizar a produção significa dar meios para que essas culturas possam produzir seus próprios conteúdos e divulgar tais conteúdos em outros espaços. Em suma, trata-se de dar acesso e reproduzir o imaginário e a realidade brasileira e latino americana para ajudar na formação de uma consciência crítica da sociedade.

Para que se obtenha a democratização do acesso e da produção da cultura e da comunicação, uma série de medidas deve ser tomada. No campo da comunicação, é necessária a consolidação dos meios de comunicação públicos e privados que sejam democráticos, interativos e que veiculem a produção cultural popular. Nesse sentido, faz-se necessário a implementação de um sistema de tv pública, ora em discussão, que seja controlado pela população e que veicule conteúdos produzidos pela população, assim como se faz necessário a defesa de um modelo de TV Digital que privilegie a participação, a interação e a universalidade do acesso. Com relação ao sistema de TV privado, é preciso que o Estado exerça de forma efetiva a regulação sobre as redes de televisão para que estas busquem efetivamente realizar os objetivos estabelecidos na Constituição de servir à promoção da cultura nacional e regional, de estimular a produção independente, de dar preferência à finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, e de veicular uma produção cultural, artística e jornalística regionalizada. Caso as redes de televisão privadas não sigam tais princípios e assim não atendam ao interesse público, é preciso que o Estado aplique as devidas sanções, inclusive a não renovação das concessões de tais veículos de comunicação. Ainda no campo da comunicação, ressaltamos a importância da liberalização da atuação das rádios comunitárias, que têm grande potencial de desenvolver uma comunicação participativa e regional, conforme os objetivos estabelecidos na Constituição citados acima. Por fim, é importante que o modelo de internet livre e participativa seja mantido, evitando-se a emergência de leis ou proibindo tecnologias que restrinjam a liberdade de utilização do ciberespaço.

No campo da cultura, a luta pela democratização passa pela disputa de um modelo de tutela das obras intelectuais que assegure o livre fluxo, utilização, e recriação das obras intelectuais, ao contrário do atual modelo proprietário que impede o compartilhamento dos conteúdos culturais e que, apesar do pequeno retorno financeiro concedido aos artistas, submetem os artistas e cientistas aos interesses pelos intermediários da produção cultural e científica. Além disso, é importante ressaltar o papel do Estado na promoção de políticas públicas que estimulem o acesso e a produção cultural regional e diversificada.

Dentre as várias medidas propostas para a democratização da cultura e da comunicação, destaca-se a necessidade de conferir a cada indivíduo ou grupo social produtor de cultura o poder de disseminar a sua produção cultural e assim fazer frente à produção massificada. São medidas que visam conferir a esses grupos ou indivíduos iguais possibilidades de produção da comunicação e da cultura, justamente para que eles possam preservar a sua diferença, a sua individualidade. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”.

É nesse sentido que o 1º Encontro Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura está sendo organizado e visa, para além da discussão, contar com a colaboração de indivíduos e coletivos que possam juntos levantar a bandeira e fortalecer a luta pela democratização da comunicação e da cultura

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