Decisão pode ignorar impacto em emissoras

Deve ser concluído entre outubro e novembro o relatório sobre o padrão de rádio digital que o Brasil deve adotar. Prometida inicialmente para meados de setembro, a conclusão do documento foi adiada em função dos testes do sistema HD Radio (conhecido como Iboc) pelos radiodifusores. Neste tempo, no entanto, não foram realizados estudos sobre o impacto que esta transição pode ter para a população e para as emissoras de pequeno e médio porte, como as comunitárias e as rádios comerciais do interior do país. Muito menos existem critérios e parâmetros para a realização dos testes. E tudo isso – estudos de impacto e  definição de parâmetros para os testes – não está nos planos do Ministério das Comunicações.

Após diversas declarações do ministro e dos representantes dos radiodifusores, em especial da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), favoráveis à transição utilizando o padrão HD Radio, predomina um clima de “fato consumado” [leia matéria e artigo sobre o assunto]. Por trás destes fatos estão os testes realizados há quase dois anos por aproximadamente 21 emissoras, e que podem definir o futuro das 7 mil emissoras de rádio do país.

A adoção do padrão preocupa especialistas. Marcus Manhães, pesquisador do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), analisa que a questão tem origem no poder político dos radiodifusores, alguns dos quais exercem cargos eletivos. Mas pondera que “os radiodifusores, sejam políticos ou não, não compreendem a potencialidade dessa tecnologia. Percebendo, poderiam também buscar a convergência e outros modelos de negócio. O radiodifusor, vendo estas tecnologias, as utiliza somente para uma melhoria de qualidade sonora”, coloca Manhães.

James Görgen, coordenador de Projetos do Instituto de Pesquisas em Comunicação (Epcom), analisa que a decisão está sendo apressada sem necessidade, e sob o prisma da manutenção do mercado dos grandes radiodifusores. “O rádio é uma mídia essencial em um país como o nosso, onde a exclusão digital ainda é muito grande. Mas querem resolver o padrão sem levar em consideração seu potencial e sua importância para a população. Será uma transição imposta” afirma Görgen.

Custos, impactos e desinformação

Além da falta de estudos e de propostas de novos serviços para o rádio, a escolha do padrão terá grande impacto na pluralidade do meio, ainda hoje um dos mais acessíveis à população. Marcos Manhães alerta: “para quem defende a democratização da radiodifusão, é preciso estar atento para o quanto a sociedade brasileira se beneficia com a pluralidade que se encontra no rádio. Uma digitalização muito severa em termos financeiros é algo que enfraquece o radiodifusor pequeno, até porque o modelo de negócios da radiodifusão sonora é crítico”.

A tendência, de acordo com James Görgen, é de que a transição seja traumática: “Os custos serão uma dificuldade, não só em função dos royalties [o HD Radio é um sistema proprietário, da empresa estadunidense iBiquity], mas também dos equipamentos para transmissão, que têm custo elevado. A maioria das rádios brasileiras não poderia nem obter o empréstimo junto ao BNDES, alternativa colocada pelo governo federal para garantir a transição. Muito menos uma rádio comunitária”. De acordo com a Abert, as empresas de radiodifusão precisarão gastar de US$ 80 mil a US$ 125 mil para migrar de sistema. Com estes custos, não é difícil imaginar o que acontecerá com as emissoras públicas e comunitárias.

Ainda em relação aos custos, o ministro tem afirmado sistematicamente – sem dar detalhes –  que a iBiquity se propôs, através de uma carta, a abrir mão dos royalties sobre sua tecnologia. “Falta esclarecer, porém, qual o prazo e quais os critérios que serão adotados, para que não sejam beneficiadas somente as grandes rádios que fizerem logo a transição”, coloca Bráulio Ribeiro, representante do Intervozes no Conselho Consultivo que discute o sistema a ser adotado.

Outro custo, o dos receptores, está sendo discutido de forma pouco aprofundada, mas também pode dificultar a transição para as camadas da população com baixa renda. O ministro afirma, porém, que o equipamento mais barato deverá custar entre R$ 60 e R$ 70, conforme informações das empresas Samsung e Sony. Mecanismos de renúncia fiscal para as empresas estão em estudo para baixar o preço, e podem ser estendidos também para a produção de transmissores.

Pequenas, públicas, comunitárias: marginais

Alijadas da discussão por não terem como realizar testes até novembro, as emissoras públicas e comunitárias podem não conseguir completar a transição. O governo não deve fazer o “turn off” imediato do sistema (desligamento do sistema analógico), mas na migração há o risco de emissoras pequenas falirem, e isso não parece estar sendo levado em conta pelo governo. James Görgen, do Epcom, analisa que “obviamente, em 20 anos se consegue fazer isso, mas para garantir escala tem de ser feito rápida. Ou seja, só vai se garantir mercado para as grandes emissoras. O rádio hoje tem 4% do bolo publicitário, e isso tende a se concentrar nas emissoras que fizerem a transição”.

Para as rádios públicas a situação não é muito melhor. “Não temos estudos ainda definitivos, até porque depende do padrão a ser adotado, mas as estimativas iniciais falam em mais de US$30 mil por emissora, o que é um custo operacional alto, que a maior parte das emissoras públicas não conseguirá fazer de uma só vez”, afirma Orlando Guilhon, presidente da Associação das Rádios Públicas do Brasil (Arpub). Além dos custos, a entidade julga ser necessário discutir o processo: “Nos parece que a forma como o Ministério tem conduzido o processo é muito açodada e apressada, pois o assunto é delicado e envolve uma série de variantes – planta industrial, democratização do acesso, modelo de negócios, flexibilidade, simultaneidade entre sistema analógico e digital, custos operacionais da transição, etc. Somos favoráveis a um amplo processo de discussão, envolvendo não apenas os radiodifusores (privados e públicos), mas também toda a sociedade e o Congresso”, completa Guilhon.

Uma das entidades que representa as rádios comunitárias e tem assento no Conselho Consultivo de rádio digital, a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), coloca que a decisão, da forma como está sendo feita, é contrária ao interesse público. “O Ministério faz parte do governo, mas não é o governo. Qualquer decisão tomada agora fere os princípios públicos. O Conselho Consultivo, por exemplo, contou com somente três reuniões e somente na última os representantes das rádios públicas e comunitárias puderam se manifestar”, coloca Sofía Hammoe, uma das participantes da associação, que pede estudos oficiais sobre os impactos da transição, assim como o debate público sobre as possibilidades e finalidades do sistema, “Se existe um Conselho Consultivo, que sirva para algo, não só para legitimar uma posição já tomada”, completa.

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