Cadeias produtivas excluem os criadores do plano de desenvolvimento

Em comentário sobre reportagem produzida pelo 100canais acerca do recente Seminário Internacional em Economia da Cultura (leia na íntegra a reportagem e o comentário), promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, o músico Carlos Henrique Machado acusa o desequilíbrio da produção musical brasileira como ainda mais preocupante do que o que ocorre com o cinema. Machado aponta que as comunidades dos morros do Rio de Janeiro produzem um gigantesco cenário de desenvolvimento econômico através do Carnaval carioca, trazendo benefícios para a cidade. Naquelas comunidades, no entanto, os que criam não participam da repartição do bolo desenvolvimentista da maior festa do planeta.

“Acabou a festa, todos são devolvidos aos morros em que vivem numa intensa guerra. O que lemos aí? A não transferência dos benefícios para quem cria o produto cultural. Mas há um dado mais concreto que simboliza um pensamento que envenena toda a auto-estima dos componentes daquelas comunidades que promovem este grande evento. Por que tanta criatividade explícita não se transforma numa alavanca que altere o conceito de cidadania e segurança para novas ações daquelas pessoas? Por que há um conceito enraizado num reduzido grupo que se esbalda com a subjetividade do conceito artístico e com o apoio institucional”, considera o bandolinista.

Essa visão, segundo ele, privilegia uma parcela da sociedade que, com acesso às atividades culturais, “credenciada pela subjetividade classista”, transforma toda expressão cultural brasileira em “algo menor, em algo apimentado, divertido e exótico”. Machado cita o fato por acreditar que a música produzida no Brasil sofra um “implacável preconceito dentro das academias de música: tudo o que não é aceito ou concebido como obra de arte por um pequeno grupo social, transforma-se em periférico. Não há uma leitura conveniente aos próprios meios de que brotam essa imensa música brasileira e, logicamente, o interior que é a periferia da periferia, sofre ainda mais com isso”.

O debate “classista” é reivindicado também em comentário, sobre a mesma reportagem, pelo defensor da democratização da comunicação, Gustavo Gindre (Coletivo Intervozes), postado na Agência Carta Maior. Analisando o discurso de Sérgio Sá Leitão, Gindre entende que as visões expressas na reportagem “padecem de um vício de origem”, o que acomete, segundo ele, a gestão do Ministério da Cultura. “Percebe-se muito claramente os dilemas do atual modelo, mas não se consegue avançar para um outro modelo. Fica-se nas beiradas do problema, tentando dar uma guaribada no modelo atual”, pontua.

Para Gindre, a relação entre economia e cultura é muito mais complexa do que dizer que cultura é uma mercadoria diferenciada: “Primeiro, porque dizer que a cultura tem um valor cultural é um truismo. Segundo, porque, desde Marx, já sabemos que a mercadoria (seja ela qual for) é um fenômeno que transcende a questão meramente econômica da sua circulação. A mercadoria é a forma de regulação do metabolismo social no interior do capitalismo. Neste sentido, qualquer mercadoria possui um valor cultural”.

“O problema do cinema e do audiovisual brasileiro é de modelo. Um modelo de oligopólios, que vive de verbas públicas – diretas ou mediante renúncia fiscal, onde a distribuição está a cargo das majors norte-americanas e que exclui – tanto na produção quanto na audiência – mais do que inclui”, diz o pesquisador militante, afirmando que o problema não é de ordem econômica, mas política.

Modelo de Carnaval
O Carnaval é uma festa que, em outros tempos, foi comunitária, gregária, aglutinadora de participantes que compartilhavam sentimentos de alegria, uma oportunidade para esquecer os problemas do dia-a-dia, uma liberação para a fuzarca. Conforme narrativa de Ismael Silva, “… essas 100 pessoas, uma hora depois, eram mais de 500 pessoas. É o tal agrupamento, que também tem o nome de arrastão, porque, aonde passava, ia arrastando, ia aumentando, aumentando, aumentando. É gente que queria brincar e tava sozinho. Saía de casa pra brincar esperando mesmo passar um bloco pra cair dentro, como se dizia. Então, ia aumentando. Ninguém se conhecia. E eu achava muita graça nisso. Sempre achei graça nisso. Porque ninguém se conhecia, mas dava aquela impressão. Ia todo mundo brincando, pulando… tudo familiarizado, tudo naquela ligação, que pareciam todos amigos”.

Antônio Flávio Pierucci, sociólogo da USP, justapõe a percepção de Goethe sobre o Carnaval de Roma, onde viveu um certo tempo (1786-88), às impressões de Ismael Silva, fazendo uma analogia com o Carnaval carioca. Entusiasmado com a força aglutinadora do Carnaval italiano, daquele festival de rua bem debaixo da janela da pensão em que morava, Goethe assim caracterizou aquela festa: “O Carnaval de Roma não é propriamente uma festa que se dá ao povo, é antes uma festa que o povo dá a si mesmo”. Não se tratava de um espetáculo, portanto, que por definição separa os espectadores dos atores, mas de uma excitante experiência popular de autonomia, a suspender temporariamente as distâncias sociais. Goethe não fala tanto em inversão quanto em comunhão, fala do povo em festival como teatro sem representação. “Apresentai os espectadores como espetáculo; que sejam atores eles próprios; fazei que cada um veja e ame a si mesmo nos outros, a fim de que com isso todos estejam mais unidos”.

O antropólogo Roberto DaMatta, sem recusar o entendimento de que a folia era apenas um tempo de doideira inconseqüente, porém fugindo deste entendimento curricular, procurou vê-lo como um rito pelo qual o Brasil esquece-se de que é um país carente e faminto, vergonhosamente perdido em face das demandas dos seus cidadãos; com as idéias fora de lugar: a desonestidade crônica, a corrupção estrutural, o capitalismo selvagem, desonesto e espoliador, a incompetência governamental e a politicagem mesquinha.

Ainda de acordo com o antropólogo, esta lista de mazelas “seria certamente infindável, exceto nesse tempo de folia quando, bloqueados pelos blocos Carnavalescos, nos obrigamos a esquecê-la. O Carnaval entra e sai de cena com a mesma contundência dos nossos problemas. Finda a festa, volta-se às misérias nacionais e a duvidarmos de nós mesmos e a descobrirmos um monte de problemas sem solução. O trabalho que constrói, como manda a cartilha moderna, é temporariamente trocado pela visão da mudança mágica e utópica que fala de um paraíso neste mundo, de um mundo sem trabalho, patrão, governo ou Estado”.

Por outro lado, o sociólogo Antônio Pierucci explica que muitos dos componentes da brasileirice que nos imputamos são bem mais recentes do que se crê. Sua antiguidade é um mito a mais. O samba é um exemplo forte. Como gênero musical original, emerge nas décadas de 1910 e 1920. Entretanto, estilo musical “nacional”, tipo “samba da minha terra”, é ainda mais recente, só passa a existir nos anos 30. Tão tardio quanto é o desfile Carnavalesco das escolas de samba do Rio de Janeiro, com apenas 70 anos. A temática do negro esperou até 1960 para ser enredo de escola de samba, inovação que o Salgueiro introduziu.

Bem mais recente é essa feição de espetáculo do Carnaval brasileiro (saiba mais sobre culturas populares e espetacularização), em que o visual virou quesito e a palavra de ordem geral tem sido “brilhar muito, brilhar tudo, brilhar mais!”. Nossa “ópera-balé ambulante” – na definição que lhe deu o crítico José Ramos Tinhorão, em 1975 – é tão recente quanto sua inesperada universalização território nacional adentro, expansão que se processou com a mesma rapidez e naturalidade com que a crescente racionalização da organização do evento e sua imersão na indústria cultural e do turismo lhe acentuaram o caráter de classe e sublinharam sua estratificação por raça e cor, realidades que resistiram, reprocessadas, ao ritmo frenético da transformação industrial da “festança” no “maior espetáculo da terra”.

Economia do Carnaval
O que Machado aponta fica evidente em uma constatação econômica sobre a economia do Carnaval carioca. Enquanto trabalhou na Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Luis Carlos Prestes Filho (que participou do Seminário em Economia da Cultura de Recife) coordenou uma pesquisa analisando a cadeia produtiva do Carnaval carioca. “Não é medição do quadril das mulatas. É estudar as cadeias produtivas e máquinas econômicas das indústrias. Máquina de moer carne. De um lado coloca o ser humano e do outro tem que sair dinheiro”, explica Prestes Filho.

Desde a primeira Escola de Samba (Deixa eu Falar – 1907) até a Beija Flor, campeã da Sapucaí deste ano, o Carnaval desenvolveu-se em uma perspectiva capitalista e, conforme Prestes, não existe capitalismo bonzinho. Ismael Silva foi quem criou o desfile Carnavalesco carioca. O mesmo Ismael Silva, em 1960, não pode assistir aos desfiles das escolas do grupo especial na avenida, por não ter dinheiro para comprar o ingresso.

Tudo o que a passarela do samba movimenta se compara, em cifras, a toda a produção cinematográfica brasileira. Interpretando a cadeia produtiva do Carnaval, Prestes Filho trata, como primeiro estudo, a música, e todo o conjunto seqüenciado de atividades, que organizado em cadeia linear, culmina com o desfile das escolas de samba do grupo especial. Na música, a indústria formada parece mais fácil de identificar. Mas, no Carnaval, as cadeias satélites, que dele se beneficiam, são quase impossíveis de serem contadas.

Não existe política tributária sobre o Carnaval. Apenas é possível incentivar cadeias agregadas, como a indústria de tecidos ou de materiais básicos à construção de carros alegóricos. Por isso, conforme o pesquisador, o Carnaval precisa ser subsidiado, contratado do poder público, para movimentar os outros setores da economia, como as bordadeiras de Barra Mansa – interior do Rio de Janeiro. As bordadeiras, que fazem fantasias para escolas do Rio e de São Paulo e exportação, injetam na economia local R$ 53,4 milhões por ano, equivalente a 47% do PIB municipal.

A pesquisa, contudo, restringe-se apenas às escolas do grupo especial. Outras 60 escolas de grupos de acesso, que poucos vêem desfilar, também movimentam toda essa cadeia, onde poucos ganham e muitos trabalham. E o que essa gente quer? “Eles querem cooperativa, barracões, escambo. Elas (as escolas de grupos de acesso) não conseguem furar bloqueios e entender melhor o território onde elas atuam e tratar escolas como pessoas/empresas, que precisam se conhecer. Precisamos aproximar essas escolas aos segmentos da economia indireta e criar um conselho do pólo do Carnaval do Rio”.

“Sempre repetem que o Carnaval morreu, não é mais o mesmo. Como poderia ser o mesmo? O modelo de desenvolvimento desenvolveu o Carnaval para o que conhecemos hoje. Procurar alternativas para equilibrar essas relações entre o privado e o público é o papel do Estado”, afirma Prestes. Mas Gindre derruba o mito do desenvolvimento cultural: “O propalado crescimento da produção não virá (por melhores que sejam os gestores) sem antes resolvermos a concentração oligopólica nas comunicações e sem considerarmos o direito a produzir comunicação como um direito inalienável de todo e qualquer cidadão”.

(*) Esta reportagem cobriu o Seminário Internacional de Economia da Cultura a convite da Fundação Joaquim Nabuco.

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