Fiscais da baixaria

Encarregados de fazer a classificação indicativa, estudantes, cinéfilos e até mães nem de longe lembram os censores da ditadura.

É um bicho-de-sete-cabeças. Os cortes e proibições que marcaram a censura no regime militar, em nome do “combate à subversão e à imoralidade”, estão extintos há quase duas décadas. Hoje, todos podem ver a íntegra de qualquer filme ou  programa de tevê. Mas os abusos realizados durante a ditadura foram tão deletérios que a sociedade ainda olha com desconfiança o trabalho de quem, por obrigação profissional, classifica a produção audiovisual brasileira. A atividade é meramente indicativa e até mesmo as crianças ganharam o direito de ver filmes recomendados para maiores, desde que tenham autorização dos pais. Ainda assim, o estigma do autoritarismo paira sobre a cabeça dos classificadores.

Cinéfilo convicto, Lucas Brasil, de 19 anos, aparentemente encontrou o emprego dos sonhos. Há dois meses ele integra a equipe de classificação indicativa do Ministério da Justiça. Apesar do magro salário de estagiário (390 reais), o estudante de ciências sociais diverte-se ao assistir a dezenas de filmes e seriados todo mês, sem precisar interferir nas obras. A tarefa consiste em analisar a recorrência de cenas de violência e sexo para definir os horários em que os programas podem aparecer na tevê e indicar a faixa de idade recomendada para os filmes dos cinemas. Moídos de inveja, os amigos não perdoam. “Dizem que eu sou um censor, mas é brincadeira. Não dá para levar a sério esses comentários.”

Nem todas as acusações são galhofas amistosas. Descontentes com as novas regras propostas pelo ministério na portaria 264, de 9 de fevereiro de 2007, as empresas de radiodifusão não hesitam em qualificar esse trabalho como uma forma mascarada de censura. No foco da disputa, a obrigatoriedade de respeitar o período entre 6 e 23 horas como um horário de “proteção à criança e ao adolescente”.

Adeptas de uma auto-regulação que nunca existiu, as emissoras de tevê torcem o nariz para os analistas do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, entre eles o jovem Lucas. Mesmo depois de uma infância diante da tevê, a acompanhar as aventuras de Capitão Planeta e He-Man, o universitário pode ser confundido como uma versão atualizada dos censores da ditadura, como sugerem as propagandas da indústria audiovisual.

“Essa comparação sempre serviu de pretexto para evitar o debate”, contesta José Eduardo Romão, diretor do Departamento de Classificação. Em defesa da medida, ele lembra que as principais democracias do mundo impõem restrições aos conteúdos violentos e pornográficos em faixas de horário específicas. A coordenadora da equipe de analistas, Celva Reis, engrossa o coro: “A censura é marcada por proibições e cortes que mutilam as obras. Hoje, ninguém impede a exibição de nada. Só não podemos permitir sexo explícito às 2 da tarde”.

Ecos da ditadura? Não é bem assim. Se uma obra fosse considerada imoral ou subversiva pelos militares, ela poderia ser embargada, ou vinha com uma lista de cortes para a “adequação” do conteúdo. “Os produtores de cinema mobilizavam equipes em Brasília para tentar aprovar cenas proibidas”, conta o cineasta Eduardo Escorel, um dos principais montadores do Cinema Novo, parceiro de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade.

De acordo com a historiadora carioca Beatriz Kushnir, autora do livro Cães de Guarda: jornalistas e censores, os serviços de informações das Forças Armadas passaram a orientar o trabalho da censura a partir de 1968, com o AI-5. “A sociedade tem a imagem de que os censores eram parvos, bilontras. Mas eles tinham normas claras sobre o que poderia ou não passar.” O jornalista Sérgio Augusto, que trabalhava para os jornais alternativos Pasquim e Opinião à época, confirma a tese. “A censura encaminhava uma lista de assuntos proibidos para a redação. Às vezes, descobríamos coisas que nem sabíamos. E, obviamente, não podíamos dizer nada.”

Durante 37 anos, Coriolano Fagundes trabalhou na Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal. “A imprensa coloca-se como baluarte da liberdade de expressão, mas os primeiros dez censores de Brasília eram jornalistas. Todos estavam interessados no salário dobrado que o governo pagava para quem estivesse disposto a ir para a capital federal.” Antes do golpe de 1964, os censores não participavam de cursos de capacitação. Uma vez no poder, os militares passaram a investir na formação dos funcionários. Além de conhecer técnicas de cinema e teatro, os analistas participavam de cursos obrigatórios sobre marxismo, segurança nacional e lei de imprensa.

“Os chefes da censura passaram a ser militares e o trabalho ganhou uma acepção de repressão política”, diz Fagundes. Sem arrependimentos, o ex-censor define-se como um liberal. “Eu poderia pedir demissão, mas preferi me ajustar da melhor maneira possível, até para abrandar a fúria da censura.” Não é o que parece ao analisar um documento de 1985, no qual ele solicita 38 cortes para liberar o filme Pixote, a Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, na tevê.

Responsável pelo projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro (1964-1988), que organiza e divulga arquivos da época na internet, a atriz e pesquisadora Leonor Souza Pinto diz que o caso é representativo. “Com a abertura política, os filmes passaram a ser liberados com menos dificuldade para as salas de cinema, mas sofrem severa censura na televisão.”

A Constituição de 1988 encerrou de vez a carreira de Coriolano Fagundes, hoje pastor evangélico. No lugar da Divisão de Censura, criou-se o Departamento de Classificação, para analisar os conteúdos audiovisuais nos termos propostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Nada de cortes e interdições. O trabalho resume-se a informar à sociedade sobre a presença de conteúdos violentos ou pornográficos e recomendar as obras para a faixa de idade mais adequada.

Recomendar. Não proibir. Desde julho de 2006, uma lei autoriza crianças e adolescentes a assistirem, com autorização dos pais, filmes indicados para maiores no cinema. Na tevê, o controle é feito por meio das faixas de exibição. “A idéia é passar os conteúdos impróprios para um horário mais avançado, quando os trabalhadores voltaram para casa. Só assim o direito dos pais à decisão pode ser plenamente exercido”, diz Otávio Mendonza, 21 anos, recém-formado em Audiovisual pela Universidade de Brasília, um dos 30 classificadores do Ministério da Justiça.

A analista Marina da Costa Sotero, de 27 anos, afasta a acusação de censura: “Não há perseguição política ou dirigismo cultural. O problema é que desconhecem o nosso trabalho”. A analista explica que não basta ter uma ou duas cenas de violência para a obra não ter classificação livre. “Levamos em consideração a gradação e o contexto das cenas.” Também pode acontecer de uma obra receber classificação mais branda que a sugerida pelos próprios produtores.

No lugar de militares e burocratas de carreira, jovens analistas, na faixa dos vinte e poucos anos. São estudantes ou profissionais de carreiras diversas, como pedagogia, direito, jornalismo, história. “Para evitar uma análise enviesada, todos os processos passam nas mãos de pelo menos dois funcionários, de diferentes formações”, antecipa-se Celva Reis.

Ainda assim, pesa o fato de quase todos os analistas serem brasilienses. “Queremos expandir o número de classificadores voluntários pelo País. Dessa forma, poderemos contemplar melhor as especificidades regionais”, explica Tarcizio Ildefonso, coordenador do grupo. Atualmente, há cerca de 70 colaboradores em Brasília e 30 em Belo Horizonte (MG). Eles avaliam os pedidos de reconsideração e atribuem o selo de Especialmente Recomendados para Crianças e Adolescentes.

Os voluntários costumam ter vínculos com organizações de direitos humanos e proteção à criança. Outros se inscrevem por conta própria no site do Ministério da Justiça, como Cristina Carvalho, pedagoga da rede pública de ensino do Distrito Federal. Mãe de um garoto de 10 anos, ela participou da análise de dois programas infantis recentemente e se diz preocupada com a baixaria na televisão. “Procuro oferecer livros e outras atividades para entreter meu filho e imponho restrições à tevê a partir das 19 horas”.  Em alguns casos, precisa fazer concessões. “Não gostaria que ele assistisse Malhação (da Globo). Tive de concordar, desde que estivesse ao meu lado.” É a contrapartida necessária para evitar a pecha de censora dentro do lar.

 

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