Software e liberdade do conhecimento

Professor da pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero (SP) e integrante da Rede Livre de Compartilhamento da Cultura Digital, Sérgio Amadeu é uma das principais referências nacionais quando o assunto é Software Livre. Nesta entrevista exclusiva para o Observatório do Direito à Comunicação, Amadeu conta um pouco de sua experiência à frente do ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (nos dois primeiros anos do governo Lula) e das possibilidades de compartilhamento do conhecimento mais concretas dos dias atuais. 

Observatório do Direito à Comunicação – A comunicação de massa hoje inclui a internet?
Sergio Amadeu Sim. Por mais que hoje a Internet esteja acessível para uma minoria da população brasileira (14% têm computador conectado à internet em casa e cerca de 25% a 30% têm acesso dos mais variados locais), a internet é extremamente expressiva nos segmentos médios e em várias comunidades em que existem projetos de inclusão digital. Qualquer veículo de comunicação que atinja mais de 18 milhões de pessoas deve ser considerado como uma mídia de massa. E o fato é que está crescendo o acesso à internet no Brasil. E no cenário de convergência, cada vez mais a comunicação mediada por computador vai ser levada para outros espaços. Quando falamos de democratização da comunicação hoje, é preciso adentrar nesta nova fronteira, que é a fronteira da comunicação digital. A pessoas acham que a comunicação digital é necessariamente democrática, mas não é isso. Ela pode engendrar processos de controle autoritários e processos concentradores de poder econômico, cultural e político.

ODC – No Brasil existe ou já existiu alguma política que dialogasse com este cenário? Seu trabalho no ITI  – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação caminhava nesse sentido?
SA
 – O governo Lula, quando se instalou, tinha uma série de projetos. Um deles era o de tecnologias abertas, principalmente tecnologias da informação na área de software. Criamos um comitê técnico de implementação de software livre do governo federal. Como eu tinha feito um acordo com a Casa Civil que eu iria topar esta empreitada se fosse com a intenção clara de promover o uso do software livre, passei a ser a pessoa mais preocupada com isso dentro do governo e, de certa maneira, conseguimos organizar o comitê com adesão voluntária de 98 órgãos do governo federal. Isso acabou sendo visto como uma política coerente da gestão Lula, tanto que o Brasil levou á Cúpula da Sociedade da Informação – tanto em Genebra quanto na África – a bandeira do software livre como um importante instrumento compartilhamento do conhecimento da sociedade da informação. Isso também aconteceu na Conferência dos Países de Língua Portuguesa. Estes avanços imediatamente geraram resistência do lobby do software proprietário, principalmente o da Microsoft. Este lobby atou fortemente no governo, fez acordos e começou a arrefecer a nossa força, mas mesmo assim conseguimos ter vários projetos. O MEC chegou a liberar computadores em SL. Pela primeira vez, os sites deixaram de obrigar as pessoas a usar software proprietário para acessar o governo. O próprio imposto de renda passou a ter versões para outros softwares proprietários e também para Linux. Então, começamos a caminhar…

ODC – Mas você saiu do governo…
SA
– Eu queria que a política pública fosse normatizada. Foi aí que a coisa parou, porque o lobby queria impedir a normatização da política e usou para isso, principalmente, setores conservadores dentro do governo e do próprio PT. Isso seria inconcebível num passado não muito remoto…


ODC
– O projeto acabou?
SA
– Não, continua, mas o comitê perdeu muita força. Eu saí do governo em 2005, quando José Dirceu me disse que não iria conseguir viabilizar o decreto. Na área pública, o que não está normatizado não existe. Intenção não serve. Tivemos apoio da maioria das pessoas, mas uma minoria conservadora atuou e inviabilizou o projeto.

ODC – O projeto estava no âmbito do Ministério da Cultura?

SA – Sim. Diversos projetos do Minc de inclusão digital ainda usam SL. O banco do Brasil usa. A Caixa Econômica federal usa até hoje em alguns setores. A Embrapa e a Petrobrás também. Esta última não só adotou, como começou a fazer projetos. O próprio Ministério das Comunicações, projetos como as Casas Brasil, os Pontos de Cultura e as próprias Forças Armadas fizeram uma grande migração. Era preciso continuar com uma política planejada. E foi no momento de normatizar que eles bloquearam. Isso não desmerece a gestão Lula. De todas as gestões no governo federal, ela foi a única que colocou o SL em evidência. Agora, qualquer gestor público que for fazer um projeto sério de TI vai usar a tecnologia aberta.

 

ODC – Qual a relação disso tudo com o Direito à Comunicação?

SA – Num plano geral, não consigo ver a comunicação fora da base cultural. Na prática, não é possível trabalhar o conceito de comunicação, esquecendo que hoje existe um processo de alteração profunda da comunicação de massa por conta das novas tecnologias e do processo de convergência digital. Hoje, toda produção simbólica da humanidade está sendo digitalizada. E pode ser transferida por redes ou veiculada em plataformas diferentes. Tudo isso muda muito o debate da democratização, porque antes era preciso discutir a necessidade de existirem canais que expressassem a diversidade cultural da sociedade. Esse debate agora precisa ser feito a partir do conhecimento de intermediários que controlam a comunicação em rede. Se não discutirmos arquitetura de rede hoje, não é possível discutir democracia na internet. Existem formas de construção de rede (protocolos, padrões) que embutem decisões humanas que podem restringir os fluxos de informação ou liberá-los. Antes, não era preciso discutir a técnica que a Rede Globo utiliza. Queríamos um canal para nos expressarmos, queríamos elementos que permitissem seu controle público. A discussão era restrita ao conteúdo. Agora, se você quer discutir democracia nas comunicações, é preciso entender que uma das principais mídias é a rede e a outra é o software, em função dos conteúdos e dos fluxos de informação. É preciso mostrar para o conjunto das entidades, pensadores e militantes que a comunicação é estratégica para quem quer uma sociedade democrática e livre e, dentro deste processo de convencimento, temos que dizer que a comunicação não é só o debate do conteúdo, mas também sobre como são desenhadas as tecnologia da informação e como o controle deste conhecimento é fundamental para o processo.

 

ODC – É uma mudança de paradigma…

SA – Com certeza. O processo da convergência acirra as contradições dentro do capital. Hoje, temos um embate entre grandes operadores de telecomunicações e os radiodifusores, ou grandes empresas de produção de conteúdo e entretenimento. Ambos estão perdendo dinheiro com seus velhos modelos de negócio. As operadoras de telecom perdem com voz sobre IP, e as empresas de entretenimento estão perdendo com o peer to peer, as práticas de colaboração e de compartilhamento na rede. Estes setores hoje já se aliam na luta pelo controle das redes de convergência digital. Nos Estados Unidos, as operadoras de telefonia estão querendo reverter um princípio sobre o qual a internet foi concebida. A internet é uma rede lógica por onde trafegam bits, bens imateriais, por uma rede física de telefonia, satélite, etc. As operadoras achavam que bastava ampliar o fluxo de dados, que ampliando o uso da rede fixa, eles ganhariam mais dinheiro. Mas a tecnologia, quando livre, é reconfigurada. De repente, o interurbano, internacional, intermunicipal deixou de ser feito. Porque para fazê-los, passou-se a usar a mesma linha que se usa para a Internet, para a voz sobre IP. Assim como eu quebro uma página de web ou um e-mail em vários pedaços de bits e ele é remontado no outro computador, a largura de banda crescente, ou seja, a velocidade do fluxo de informação, permite que eu quebre a voz em pacotes e mande para outro destinatário. Os dados são remontados com tanta velocidade, que parece que existe uma linha contínua. Isso tomou muito dinheiro das operadoras. Já as empresas de entretenimento viram que é preciso impedir práticas de compartilhamento de música e vídeo, porque dizem que estão perdendo muito dinheiro. E, para isso, usam o discurso da pirataria, entre outros. Constatando que estavam perdendo dinheiro com esta lógica, estes dois setores se uniram e pensaram em tratar de forma diferente ou inviabilizar o tráfego de todo pacote de dados que passa na rede. É o que os americanos chamam de quebra da neutralidade na rede. A internet é hoje uma grande rede que os mega grupos da sociedade industrial querem controlar. Só que para fazer isso, é preciso inverter protocolos, padrões, arquitetura das redes. Esta disputa, por exemplo, acontece em solo americano, mas vai afetar a internet mundial. E como interfiro nisso num país xenófobo como os EUA? A rede é transnacional e exige uma esfera pública mundial, mas hoje as esferas públicas são todas nacionais. É preciso construir um espaço de debate global, que possa influenciar estes estados e paralisar as atitudes autoritárias que privilegiam o controle ao invés das liberdades. E tudo isso num momento em que nunca foi tão fácil colaborar e trocar informações e conhecimento.

 

ODC – A pergunta que mais ouvimos em relação a isso é: como o artista e o autor vão ganhar dinheiro?

SA – Da forma que ganharam até hoje, que não é ganhando dinheiro das editoras e gravadoras. E mesmo que haja dúvidas sobre isso, deveríamos proteger as obras por 5 ou 10 anos. E não por 95 anos, como é nos EUA, após a morte do autor. Esta é a lei conhecida como Mickey Mouse, porque quando o rato imperialista ia entrar em domínio público, a Walt Disney lutou por estender os prazos. E isso aconteceu de maneira contraditória com a sua história, porque o Walt Disney retrabalhou a obra dos irmãos Green e isso que deu a ele o império da Disney World. Naquela época podia e hoje não pode mais? Por quê?  

 

ODC – Porque quem ganha dinheiro com isso não pode parar de ganhar…
SA
– Isso. No livro do Bill Gates “A estrada do futuro”, ele afirma que a IBM fez um bem para a história da computação quando criou o PC de arquitetura aberta. Na verdade, nos anos 80, a IBM tinha perdido o passo da microcomputação, e de repente, existia uma Apple, de qualidade superior e arquitetura patenteada, fechada (os seus componentes não podem ser abertos e remontados, porque isso é violação de direitos de propriedade da fabricante). A IBM, então, montou um PC de arquitetura aberta, que podia ser copiado em qualquer lugar do mundo, e assim foi. Isso fez dele (o PC da IBM) a base da computação de mesa (os desktops) que nem é o melhor, mas tem fábricas em todos os lugares do mundo. Justamente porque o PC é que é o padrão aberto. E olha que engraçado: o Bill Gates elogia a IBM por abrir a arquitetura de tecnologia do PC e, na verdade, ele afirma com isso, que foi esta abertura que gerou a possibilidade do software proprietário de sistema operacional. Eles fizeram um acordo com a IBM, que só poderia fabricar computador se este viesse com o DOS. Assim, eles foram montando escritórios de advocacia em todos os países do mundo e exigindo a luta contra a pirataria. Hoje, é impossível se reproduzir tamanho monopólio como o de sistema operacional. A Microsoft vive do aprisionamento de tudo. É uma técnica de amarração para manter os fluxos de riqueza que eles detém hoje.

 

ODC – E como o software livre nos liberta desta lógica?

SA – Ele tem duas características essenciais: o código fonte aberto e a licença em geral, que permite o uso livre e recriação livre sobre ele. Ou seja, o usuário nunca fica na mão da empresa ou de um desenvolvedor que o tenha criado. Nesta área, a da comunicação mediada por computador, cada vez mais o preço da liberdade e da autonomia é o conhecimento. Se você não conhece, você perde autonomia e fica dependente. Quem quiser informatizar sua empresa, organização, sua rede, precisa saber que existe um modelo proprietário que vai deixá-lo amarrado até o fim naquela empresa que desenvolveu aquele sistema. Já no modelo livre, ele vai poder usar, melhorar, modificar e até adaptar para suas necessidades.

 

ODC – É uma opção política e não técnica…

SA – Sim. Assim como hoje, a opção que fazemos pela divisão do espectro de televisão para exploração de meia dúzia de concessionários é uma opção política, porque com regulamentação adequada, poderíamos ter muito mais conteúdos trafegando. O espectro, ao contrário do que se imagina, não é fechado. Hoje, com os softwares inteligentes, poderíamos baratear o custo da produção e veiculação de comunicação. Pode até haver um operador de rede, mas em alguns lugares bastaria regulamentar a potência em que se pode transmitir. Há mil possibilidades de transformá-lo em um espaço em comum. Gosto muito da imagem de Kevin Werbach, que diz que o uso que fazemos do espectro é o mesmo que afirmar que, na via pública, só pode passar uma empresa de ônibus e ninguém mais. Não foi esta a opção. Criou-se regras para que quem passe com o carro as respeite. Todos podem passar pela via, desde que respeitem as regras. O espectro radioelétrico também é uma via pública. Por isso, este debate, assim como o debate sobre o creative commons e a propriedade intelectual é um debate político, sobre que tipo de sociedade e de arranjo social queremos.

 

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