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“Fórum de TVs Públicas deve ser propositivo”

Em entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, o professor Venício A. de Lima, pesquisador do Núcleo de Estudos de Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB) avalia que o I Fórum de TVs Públicas, previsto para acontecer entre os dias 8 e 11 de maio, pode deflagrar uma discussão mais ampla sobre a instituição de um Sistema Público de Comunicação para o país, não se resumindo apenas à criação de uma única rede nacional de televisão. Para que isso aconteça, diz Lima, o Fórum não deve ser apenas um espaço de reflexão, mas deve ter também a capacidade de propor políticas de comunicação. Lima afirma ainda que o Fórum deve ser o primeiro passo para a realização de um debate mais amplo na sociedade, com a realização da I Conferência Nacional das Comunicações. 

Observatório do Direito à Comunicação – O I Fórum de TVs Públicas está previsto para maio, depois de um processo de construção que começou no ano passado. O que será, ou deveria ser, este espaço?
Venício Lima – Não sei exatamente o que vai ser, nem como vai ser o Fórum. Inclusive, participei do Grupo de Trabalho de configuração jurídica e institucional, mas não fui mais reportado do andamento do processo. Posso, então, falar do que ele deveria ser. Ao meu ver, duas coisas: um espaço de reflexão sobre políticas de comunicação e um espaço de proposição, a partir destas reflexões. Este seria o ideal. No entanto, temos um problema aí. Os jornais estão noticiando que existe um grupo de trabalho já funcionando coordenado pelo ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social, que tem um prazo de 30 dias para apresentar ao presidente uma proposta de TV pública. Estamos em abril e o Fórum está previsto para maio. Não sei se, do ponto de vista objetivo, este espaço terá condições reais de contribuir com este grupo de trabalho. Não faria sentido esta comissão entregar um relatório que não levasse em conta o processo, mas se esta proposta deve ser entregue daqui a 30 dias, vai ser bem difícil incorporar os debates de maio. Não sei se há chances de a reflexão do Fórum ser incorporada objetivamente a uma proposta a ser encaminhada ao presidente.

ODC – O ministro Franklin Martins (Secretaria de Comunicação Social) declarou que TVE e Radiobrás podem ser o embrião de uma TV pública. Como o senhor avalia esta possibilidade?
VL – TVE e Radiobrás, embora de forma desigual, tiveram participação ativa no que até agora foi a preparação do Fórum. A Radiobrás foi, seguramente, junto com o Ministério da Cultura, uma das entidades que esteve à frente do processo, tanto na questão da organização quanto na política de definição dos grupos e convocação das pessoas e entidades. A TVE esteve presente e participou das discussões. Inclusive, ao longo do processo, foi ganhando força como ator do campo público, porque, de fato, está presente em vários estados do país, tem história de TV pública e, do ponto de vista de abrangência territorial, é até maior que a Radiobrás. Penso que ambas são “pontos de partida” naturais para uma proposta de TV pública, pois são referências. Não significa que as TVs do chamado campo público – comunitárias, universitárias, legislativas – e que também estavam presentes na organização e nos debates do Fórum, não tenham uma experiência histórica, mas não estão na TV aberta como a TVE e a Radiobrás estão. Por isso, elas são referências naturais e o aproveitamento delas para pensar uma televisão pública é absolutamente normal.

ODC – O Fórum de TVs Públicas é suficiente para mobilizar a sociedade?
VL – O Fórum deve ser um instrumento de mobilização da sociedade civil. Não pode ficar reduzido às TVs e entidades do campo. Tem que mobilizar mais pessoas e fazer a discussão pública. Espero que o Fórum consiga trazer para o debate a participação da sociedade. Que ele abra a discussão sobre comunicação. Até agora, a discussão ficou restrita. Falta mobilizar a sociedade em torno deste tema. A disposição do presidente de criar uma TV pública e as declarações do ministro Hélio Costa a respeito provocaram uma série de discussões sobre o caráter desta TV e agendaram de alguma forma o debate na cena pública. Agora, o desafio é ampliar este debate. E o Fórum deve ser um primeiro passo para a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação, nos moldes das realizadas nos outros setores (saúde, mulheres, cidades). Um dos papéis fundamentais do Fórum é lançar as bases para a Conferência. 

ODC – Neste sentido, o Fórum deve pensar apenas uma rede nacional de televisão ou ir além, e discutir a criação de um sistema público de comunicação?
VL – É inevitável que, ao discutir uma TV pública, se discuta o sistema público. O debate do Fórum sobre as políticas de comunicação não deve ser reduzido à televisão. É preciso incluir o rádio e já passou da hora de se dizer que a mídia impressa também precisa de uma alternativa pública. A âncora legal na qual se sustenta a discussão do sistema público (de rádio e TV) é o artigo da Constituição que fala da complementaridade dos sistemas. É uma referência formal para fazer a discussão. Mas veja o caso recente de quase fechamento da Agência Carta Maior, por exemplo. Será que não está na hora de discutir se precisamos de uma mídia alternativa nesta área? Precisamos pensar também se em relação à mídia impressa o Estado não tem um papel de interesse público a cumprir. Será que estas mídias serão sempre iniciativas de grupos privados? Tentativas de alternativa aos grandes grupos? O Fórum de TVs públicas não vai conseguir evitar a discussão mais ampla sobre sistema público de comunicação. A TV é um dos diversos componentes deste sistema. 

ODC – Falando de papel do Estado, uma das grandes questões na definição do campo público está na questão do financiamento.  Na sua opinião, o que diferencia o público do estatal?
VL – O diferencial fundamental é quem controla, quem gere. TV pública tem que ter participação da sociedade organizada na sua gestão e na definição do conteúdo. Não é TV comercial, não tem anúncio comercial. E as formas de financiamento podem variar, mas não a obrigam a ficar a reboque da audiência, porque ela não se caracteriza pela venda da audiência ao anunciante. Outras formas de financiamento podem ser do Estado ou diretamente do cidadão, como é o caso do modelo BBC. Ou seja, o que as diferencia é, basicamente, quem as controla. TV pública tem participação popular da sociedade organizada e representação direta da sociedade. 

ODC – Esta perspectiva reforça a necessidade de uma nova estrutura de participação no campo da comunicação, ou seja, uma democratização das instâncias de definição das políticas?
VL – Sim. Esta perspectiva, de fato, nos obriga a pensar na criação de conselhos de comunicação. Há uma rediscussão sobre o modelo de conselhos que existem hoje, inclusive com base nas experiências de outros setores. Um debate sobre comunicação pública nos obriga a fazer um outro debate sobre a representação pública neste campo. Já retroagimos no processo de democratização por conta da falta de instrumentos de participação. Foi um avanço, por exemplo, criar as retransmissoras de TV institucionais, com capacidade de gerar um percentual mínimo de programação local. Mas, um mês depois, Casa Civil e Presidência alegaram que, para elas funcionarem, era preciso haver conselhos locais de comunicação e publicaram um decreto que extinguia as retransmissoras e retrocedia no processo.  

ODC – Então este debate deflagrado pelo Fórum sobre as TVs é apenas o primeiro elemento de um debate muito mais amplo e que precisa ganhar uma dimensão maior na sociedade?
VL – É um excelente momento para retomar este debate mais amplo, que engloba a Conferência e a arquitetura da participação na comunicação. É um momento em que todos os atores do campo da comunicação reconhecem a necessidade de uma regulação que contemple a chegada da digitalização e da convergência. A criação de uma TV pública como está sendo pensada e com a agilidade que parece querer o governo federal, potencializa todos estes debates. Potencializa, por exemplo, debates sobre a criação de centrais públicas para produção de conteúdo para televisão, sobre incentivo à produção e fundos de fomento. Esta discussão é mais ampla e não implica só televisão, rádio e mídia impressa, mas também a organização da sociedade para garantir espaços de representação de seus interesses na comunicação em seus diversos níveis: local, estadual e nacional. O espaço ideal para construir este debate mais amplo seria a Conferência, e o Fórum lança bases para ela. Por isso, é fundamental ampliá-lo e afirmá-lo como uma etapa, que tenha como objetivo propiciar a participação de outros setores e da sociedade como um todo. É preciso que todos entendam do que se trata uma televisão pública, por exemplo. É preciso poder se informar sobre isso por outros mecanismos que não a grande mídia.

 

 

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A moralização das concessões de televisão

A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) está disposta a moralizar o processo de renovação de outorgas de canais de comunicação. Embora atuem sob uma concessão do governo federal, várias TVs e rádios do Brasil desobedecem a regras elementares e utilizam os veículos apenas para aumentar lucros e transmitir notícias de acordo com interesses políticos e comerciais de seus donos. Luiza Erundina preside, na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, uma subcomissão destinada a analisar os critérios para o setor. Corajosa, ela não teme ser perseguida por grandes veículos de comunicação que sejam contrariados. Ela sabe o risco que corre, mas acredita que também há – na grande imprensa – pessoas sérias e bem-intencionadas acompanhando seu trabalho.  

Luíza Erundina ficou nacionalmente conhecida desde que administrou a Prefeitura de São Paulo (naquela época estava no PT). Atualmente, ela exerce seu terceiro mandato como deputada federal do PSB. Nesta entrevista (concedida ao Portal do PSB Nacional), a parlamentar fala sobre o trabalho desenvolvido pela subcomissão e afirma que o advento da TV digital pode aumentar ainda mais a concentração de poder dos meios de comunicação nas mãos do grande capital. 

Portal PSB –  Como surgiu a idéia de implantar uma subcomissão para discutir critérios para renovação de outorga de concessão de rádios e TVs na Câmara dos Deputados?

Luiza Erundina –  Eu estou no meu terceiro mandato e desde o primeiro eu e outros parlamentares ficamos constrangidos em apresentar pareceres sobre outorga ou renovação de rádio e TV, sem ter elementos objetivos para julgar o processo. É constrangedor aprovar ou rejeitar uma concessão sem elementos objetivos para avaliar se a emissora estaria correta em relação ao conteúdo e a aspectos legais. Pensando nisso, entrei com um requerimento para a criação desta subcomissão no ano passado, mas como era ano eleitoral e houve a resistência do ministro das Comunicações em comparecer às audiências destinadas a colher elementos para uma mudança na própria legislação, foi preciso adiar para este ano.

Portal PSB – Como é dividido o trabalho?
Luiza Erundina –  Estamos iniciando os trabalhos com a realização de audiências públicas. A primeira delas foi com os representantes das empresas de TV e Rádio comercial. Iremos organizar depois uma audiência com as rádios comunitárias e a terceira, será com as rádios educativas e o Ministério Público. Por último, vamos ouvir o ministro e montar um relatório com as propostas de mudanças. O artigo 223 da Constituição, que diz respeito ao capítulo que trata da comunicação social, precisa ser regulamentado para evitar vazios legais que permitem concessões e outorgas ilegais de veículos. Temos um prazo de 30 a 60 dias para apresentar o primeiro relatório, com os novos critérios. Concluída esta tarefa, vamos investigar as denúncias que estão chegando à subcomissão, como as concessões a deputados e senadores que são explicitamente proibidas na Constituição. Existem também denúncias de várias concessões para o mesmo grupo de pessoas. Há mau uso de concessões comunitárias ou educativas, que acabam se tornando empresas privadas, devido ao fraco mecanismo de fiscalização. Além disso, temos um agravante de que, com a entrada do sistema digital, o espectro de canais vai se multiplicar. Se não tiver um ordenamento para evitar a concentração de outorgas, o poder de uma minoria de pessoas crescerá muito mais neste país. Mas a recém-criada subcomissão está empenhada em fazer valer o que reza a Constituição brasileira, que proíbe o acúmulo de concessões e o uso político das mesmas, entre outras recomendações.

Portal PSB –  Muitos políticos são donos de veículos de comunicação. Na própria Comissão de Ciência e Tecnologia, há muitos parlamentares proprietários de rádios e TVs. Os senhores não temem que eles usem este poder para difamá-los ou caluniá-los?
Erundina – Tenho consciência de que haverá resistência. Mas estamos adotando o procedimento de fazer as reuniões da subcomissão sempre públicas e a imprensa tem acompanhado e repercutido o que acontece no trabalho interno. Por enquanto não tem ocorrido uma tentativa de inviabilizar o nosso trabalho, nossa tarefa é apresentar um diagnóstico para corrigir as distorções e isso será acompanhado pela sociedade. Existe uma contradição neste setor: hoje a radiodifusão se faz por TV e rádio, mas a telefonia começa a entrar no mercado. As telefonias são de capitais externos multinacionais, que possuem um poder econômico muito superior às rádios e TVs tradicionais. As empresas de telefonia concentrarão, em um mesmo canal, diversas funções como TV, rádio e Internet.

Portal PSB
– Há também a possibilidade de regular o setor, para que o poder de formar opiniões e divulgar a cultura não fique concentrado nas mãos de poucos?

Erundina – Com certeza. Além disso, temos a preocupação de propor uma descentralização, objetivando a regionalização da programação do ponto de vista cultural e de informações. Cada região do país tem características próprias… Existem dois projetos de lei que regulamentam a TV comunitária aberta, pois hoje temos apenas TV comunitária a cabo. São ações que visam contribuir com a democratização da comunicação. Pensando nisso, estamos organizando uma frente parlamentar que cuida da democratização dos meios de comunicação, como espaço político de luta e organização popular. Acredito que esta é uma bandeira estratégica e o PSB deve abraçar esta idéia como política do partido.

Portal PSB – O advento da TV digital pode ser um instrumento de democratização da comunicação, se atender também aos grupos ideologicamente ou economicamente marginalizados pelo grande capital? Ou há risco de o novo sistema ser apenas outro instrumento da classe dominante?
Erundina –  Com certeza, pode potencializar a concentração do poder do grande capital. A digitalização é uma nova tecnologia, que avança rapidamente, e isso não acompanha teoricamente a socialização do domínio dessa tecnologia, muito pelo contrário. A digitalização vai aperfeiçoar a exibição da imagem, mas por outro lado como uma tecnologia importada, o Brasil ficará dependente de um modelo que sequer aproveita as pesquisas tecnológicas que o país já acumulou. Esta forma amplia a qualidade de serviços, mas exige muito mais da produção dos conteúdos. Entretanto, se isso não for regulamentado no sentido de distribuir os canais que vão se multiplicar, um canal de hoje será três ou quatro futuramente… Se isso não vier acompanhado de normas e regras legais que distribuam o espaço de maneira mais democrática, fatalmente iremos aumentar o poder destes que já têm o poder concentrado. Esta é uma questão estratégica e até o final do ano o sistema digital será implantado. Precisamos estar vigilantes e mobilizados para nos precaver contra o aumento do poder sobre a informação.

Portal PSB –  Grupos políticos contrários à democratização argumentam que uma mudança no setor só serviria para o uso político da comunicação… Embora essa elite use os seus veículos de comunicação para transmitir a "realidade" sob o ponto de vista que lhe interessa. Como a sra. analisa esta contradição?
Erundina –  Sempre foi assim, no sistema em que vivemos. As elites econômicas só combatem os privilégios dos outros. Quando são eles os privilegiados, tudo bem… Vemos isso em diversos setores e não apenas na área de comunicação – tanto do ponto de vista local, nacional ou até global. As denúncias de uso político de meios de comunicação estão chegando e, apesar de não ser o objeto desta subcomissão, nós não iremos deixar de lado. Primeiro, vamos procurar respostas para apreciar estes processos e, com uma base mais segura, vamos investigar e corrigir os problemas verificados na Comissão de Ciência e Tecnologia. Esta é uma questão que está na ordem do dia e precisamos lutar pelos interesses do Brasil.

 

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Software e liberdade do conhecimento

Professor da pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero (SP) e integrante da Rede Livre de Compartilhamento da Cultura Digital, Sérgio Amadeu é uma das principais referências nacionais quando o assunto é Software Livre. Nesta entrevista exclusiva para o Observatório do Direito à Comunicação, Amadeu conta um pouco de sua experiência à frente do ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (nos dois primeiros anos do governo Lula) e das possibilidades de compartilhamento do conhecimento mais concretas dos dias atuais. 

Observatório do Direito à Comunicação – A comunicação de massa hoje inclui a internet?
Sergio Amadeu Sim. Por mais que hoje a Internet esteja acessível para uma minoria da população brasileira (14% têm computador conectado à internet em casa e cerca de 25% a 30% têm acesso dos mais variados locais), a internet é extremamente expressiva nos segmentos médios e em várias comunidades em que existem projetos de inclusão digital. Qualquer veículo de comunicação que atinja mais de 18 milhões de pessoas deve ser considerado como uma mídia de massa. E o fato é que está crescendo o acesso à internet no Brasil. E no cenário de convergência, cada vez mais a comunicação mediada por computador vai ser levada para outros espaços. Quando falamos de democratização da comunicação hoje, é preciso adentrar nesta nova fronteira, que é a fronteira da comunicação digital. A pessoas acham que a comunicação digital é necessariamente democrática, mas não é isso. Ela pode engendrar processos de controle autoritários e processos concentradores de poder econômico, cultural e político.

ODC – No Brasil existe ou já existiu alguma política que dialogasse com este cenário? Seu trabalho no ITI  – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação caminhava nesse sentido?
SA
 – O governo Lula, quando se instalou, tinha uma série de projetos. Um deles era o de tecnologias abertas, principalmente tecnologias da informação na área de software. Criamos um comitê técnico de implementação de software livre do governo federal. Como eu tinha feito um acordo com a Casa Civil que eu iria topar esta empreitada se fosse com a intenção clara de promover o uso do software livre, passei a ser a pessoa mais preocupada com isso dentro do governo e, de certa maneira, conseguimos organizar o comitê com adesão voluntária de 98 órgãos do governo federal. Isso acabou sendo visto como uma política coerente da gestão Lula, tanto que o Brasil levou á Cúpula da Sociedade da Informação – tanto em Genebra quanto na África – a bandeira do software livre como um importante instrumento compartilhamento do conhecimento da sociedade da informação. Isso também aconteceu na Conferência dos Países de Língua Portuguesa. Estes avanços imediatamente geraram resistência do lobby do software proprietário, principalmente o da Microsoft. Este lobby atou fortemente no governo, fez acordos e começou a arrefecer a nossa força, mas mesmo assim conseguimos ter vários projetos. O MEC chegou a liberar computadores em SL. Pela primeira vez, os sites deixaram de obrigar as pessoas a usar software proprietário para acessar o governo. O próprio imposto de renda passou a ter versões para outros softwares proprietários e também para Linux. Então, começamos a caminhar…

ODC – Mas você saiu do governo…
SA
– Eu queria que a política pública fosse normatizada. Foi aí que a coisa parou, porque o lobby queria impedir a normatização da política e usou para isso, principalmente, setores conservadores dentro do governo e do próprio PT. Isso seria inconcebível num passado não muito remoto…


ODC
– O projeto acabou?
SA
– Não, continua, mas o comitê perdeu muita força. Eu saí do governo em 2005, quando José Dirceu me disse que não iria conseguir viabilizar o decreto. Na área pública, o que não está normatizado não existe. Intenção não serve. Tivemos apoio da maioria das pessoas, mas uma minoria conservadora atuou e inviabilizou o projeto.

ODC – O projeto estava no âmbito do Ministério da Cultura?

SA – Sim. Diversos projetos do Minc de inclusão digital ainda usam SL. O banco do Brasil usa. A Caixa Econômica federal usa até hoje em alguns setores. A Embrapa e a Petrobrás também. Esta última não só adotou, como começou a fazer projetos. O próprio Ministério das Comunicações, projetos como as Casas Brasil, os Pontos de Cultura e as próprias Forças Armadas fizeram uma grande migração. Era preciso continuar com uma política planejada. E foi no momento de normatizar que eles bloquearam. Isso não desmerece a gestão Lula. De todas as gestões no governo federal, ela foi a única que colocou o SL em evidência. Agora, qualquer gestor público que for fazer um projeto sério de TI vai usar a tecnologia aberta.

 

ODC – Qual a relação disso tudo com o Direito à Comunicação?

SA – Num plano geral, não consigo ver a comunicação fora da base cultural. Na prática, não é possível trabalhar o conceito de comunicação, esquecendo que hoje existe um processo de alteração profunda da comunicação de massa por conta das novas tecnologias e do processo de convergência digital. Hoje, toda produção simbólica da humanidade está sendo digitalizada. E pode ser transferida por redes ou veiculada em plataformas diferentes. Tudo isso muda muito o debate da democratização, porque antes era preciso discutir a necessidade de existirem canais que expressassem a diversidade cultural da sociedade. Esse debate agora precisa ser feito a partir do conhecimento de intermediários que controlam a comunicação em rede. Se não discutirmos arquitetura de rede hoje, não é possível discutir democracia na internet. Existem formas de construção de rede (protocolos, padrões) que embutem decisões humanas que podem restringir os fluxos de informação ou liberá-los. Antes, não era preciso discutir a técnica que a Rede Globo utiliza. Queríamos um canal para nos expressarmos, queríamos elementos que permitissem seu controle público. A discussão era restrita ao conteúdo. Agora, se você quer discutir democracia nas comunicações, é preciso entender que uma das principais mídias é a rede e a outra é o software, em função dos conteúdos e dos fluxos de informação. É preciso mostrar para o conjunto das entidades, pensadores e militantes que a comunicação é estratégica para quem quer uma sociedade democrática e livre e, dentro deste processo de convencimento, temos que dizer que a comunicação não é só o debate do conteúdo, mas também sobre como são desenhadas as tecnologia da informação e como o controle deste conhecimento é fundamental para o processo.

 

ODC – É uma mudança de paradigma…

SA – Com certeza. O processo da convergência acirra as contradições dentro do capital. Hoje, temos um embate entre grandes operadores de telecomunicações e os radiodifusores, ou grandes empresas de produção de conteúdo e entretenimento. Ambos estão perdendo dinheiro com seus velhos modelos de negócio. As operadoras de telecom perdem com voz sobre IP, e as empresas de entretenimento estão perdendo com o peer to peer, as práticas de colaboração e de compartilhamento na rede. Estes setores hoje já se aliam na luta pelo controle das redes de convergência digital. Nos Estados Unidos, as operadoras de telefonia estão querendo reverter um princípio sobre o qual a internet foi concebida. A internet é uma rede lógica por onde trafegam bits, bens imateriais, por uma rede física de telefonia, satélite, etc. As operadoras achavam que bastava ampliar o fluxo de dados, que ampliando o uso da rede fixa, eles ganhariam mais dinheiro. Mas a tecnologia, quando livre, é reconfigurada. De repente, o interurbano, internacional, intermunicipal deixou de ser feito. Porque para fazê-los, passou-se a usar a mesma linha que se usa para a Internet, para a voz sobre IP. Assim como eu quebro uma página de web ou um e-mail em vários pedaços de bits e ele é remontado no outro computador, a largura de banda crescente, ou seja, a velocidade do fluxo de informação, permite que eu quebre a voz em pacotes e mande para outro destinatário. Os dados são remontados com tanta velocidade, que parece que existe uma linha contínua. Isso tomou muito dinheiro das operadoras. Já as empresas de entretenimento viram que é preciso impedir práticas de compartilhamento de música e vídeo, porque dizem que estão perdendo muito dinheiro. E, para isso, usam o discurso da pirataria, entre outros. Constatando que estavam perdendo dinheiro com esta lógica, estes dois setores se uniram e pensaram em tratar de forma diferente ou inviabilizar o tráfego de todo pacote de dados que passa na rede. É o que os americanos chamam de quebra da neutralidade na rede. A internet é hoje uma grande rede que os mega grupos da sociedade industrial querem controlar. Só que para fazer isso, é preciso inverter protocolos, padrões, arquitetura das redes. Esta disputa, por exemplo, acontece em solo americano, mas vai afetar a internet mundial. E como interfiro nisso num país xenófobo como os EUA? A rede é transnacional e exige uma esfera pública mundial, mas hoje as esferas públicas são todas nacionais. É preciso construir um espaço de debate global, que possa influenciar estes estados e paralisar as atitudes autoritárias que privilegiam o controle ao invés das liberdades. E tudo isso num momento em que nunca foi tão fácil colaborar e trocar informações e conhecimento.

 

ODC – A pergunta que mais ouvimos em relação a isso é: como o artista e o autor vão ganhar dinheiro?

SA – Da forma que ganharam até hoje, que não é ganhando dinheiro das editoras e gravadoras. E mesmo que haja dúvidas sobre isso, deveríamos proteger as obras por 5 ou 10 anos. E não por 95 anos, como é nos EUA, após a morte do autor. Esta é a lei conhecida como Mickey Mouse, porque quando o rato imperialista ia entrar em domínio público, a Walt Disney lutou por estender os prazos. E isso aconteceu de maneira contraditória com a sua história, porque o Walt Disney retrabalhou a obra dos irmãos Green e isso que deu a ele o império da Disney World. Naquela época podia e hoje não pode mais? Por quê?  

 

ODC – Porque quem ganha dinheiro com isso não pode parar de ganhar…
SA
– Isso. No livro do Bill Gates “A estrada do futuro”, ele afirma que a IBM fez um bem para a história da computação quando criou o PC de arquitetura aberta. Na verdade, nos anos 80, a IBM tinha perdido o passo da microcomputação, e de repente, existia uma Apple, de qualidade superior e arquitetura patenteada, fechada (os seus componentes não podem ser abertos e remontados, porque isso é violação de direitos de propriedade da fabricante). A IBM, então, montou um PC de arquitetura aberta, que podia ser copiado em qualquer lugar do mundo, e assim foi. Isso fez dele (o PC da IBM) a base da computação de mesa (os desktops) que nem é o melhor, mas tem fábricas em todos os lugares do mundo. Justamente porque o PC é que é o padrão aberto. E olha que engraçado: o Bill Gates elogia a IBM por abrir a arquitetura de tecnologia do PC e, na verdade, ele afirma com isso, que foi esta abertura que gerou a possibilidade do software proprietário de sistema operacional. Eles fizeram um acordo com a IBM, que só poderia fabricar computador se este viesse com o DOS. Assim, eles foram montando escritórios de advocacia em todos os países do mundo e exigindo a luta contra a pirataria. Hoje, é impossível se reproduzir tamanho monopólio como o de sistema operacional. A Microsoft vive do aprisionamento de tudo. É uma técnica de amarração para manter os fluxos de riqueza que eles detém hoje.

 

ODC – E como o software livre nos liberta desta lógica?

SA – Ele tem duas características essenciais: o código fonte aberto e a licença em geral, que permite o uso livre e recriação livre sobre ele. Ou seja, o usuário nunca fica na mão da empresa ou de um desenvolvedor que o tenha criado. Nesta área, a da comunicação mediada por computador, cada vez mais o preço da liberdade e da autonomia é o conhecimento. Se você não conhece, você perde autonomia e fica dependente. Quem quiser informatizar sua empresa, organização, sua rede, precisa saber que existe um modelo proprietário que vai deixá-lo amarrado até o fim naquela empresa que desenvolveu aquele sistema. Já no modelo livre, ele vai poder usar, melhorar, modificar e até adaptar para suas necessidades.

 

ODC – É uma opção política e não técnica…

SA – Sim. Assim como hoje, a opção que fazemos pela divisão do espectro de televisão para exploração de meia dúzia de concessionários é uma opção política, porque com regulamentação adequada, poderíamos ter muito mais conteúdos trafegando. O espectro, ao contrário do que se imagina, não é fechado. Hoje, com os softwares inteligentes, poderíamos baratear o custo da produção e veiculação de comunicação. Pode até haver um operador de rede, mas em alguns lugares bastaria regulamentar a potência em que se pode transmitir. Há mil possibilidades de transformá-lo em um espaço em comum. Gosto muito da imagem de Kevin Werbach, que diz que o uso que fazemos do espectro é o mesmo que afirmar que, na via pública, só pode passar uma empresa de ônibus e ninguém mais. Não foi esta a opção. Criou-se regras para que quem passe com o carro as respeite. Todos podem passar pela via, desde que respeitem as regras. O espectro radioelétrico também é uma via pública. Por isso, este debate, assim como o debate sobre o creative commons e a propriedade intelectual é um debate político, sobre que tipo de sociedade e de arranjo social queremos.

 

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Propriedade Intelectual prejudica os mais pobres

Entrevistamos para esta edição Pedro Paranaguá, advogado atuante na área da propriedade intelectual, membro do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e que acompanha como pesquisador e militante as disputas no interior da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)

Prometheus: Os últimos anos foram marcados por um recrudescimento na lógica da propriedade intelectual. Quais os principais instrumentos internacionais deste processo?

Pedro Paranaguá: Nunca na história da humanidade foi preciso haver incentivo por meio de concessão de monopólios jurídicos limitados no tempo para que houvesse expansão das artes, da ciência e da cultura. Os grandes filósofos da antigüidade não tinham suas idéias protegidas por direitos autorais e nem por isso deixou-se de haver grande evolução intelectual. Na área industrial, Thomas Jefferson dizia no início do século XIX, que países que não ofereciam proteção por patentes eram tão frutíferos quanto os que davam proteção. Mais recentemente, economistas do calibre de F. Machlup, E. Penrose, P. David e J. Stiglitz, questionam o funcionamento do sistema de propriedade intelectual como um todo. Quer nos parecer que países hoje ricos tentam impôr uma proteção maximalista ao restante do mundo. Ocorre, todavia, que tais países somente tiveram a oportunidade de enriquecer e se desenvolver justamente porque há alguns anos atrás, quando não eram desenvolvidos, não ofereciam proteção a criações e a inventos industriais. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) foi criada em 1967 para "proteger" direitos de propriedade intelectual. Foi concebida por advogados que tinham como clientes empresas interessadas em tal proteção. Poucos anos mais tarde, em 1974, a OMPI passa a ser uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU) e, portanto, não deveria mais apenas "proteger" a propriedade intelectual, mas sim "promover a criatividade e a atividade inventiva" de modo a promover o desenvolvimento. Assim, a OMPI não mais tinha a propriedade intelectual como fim em si mesma; mas sim como um meio para se atingir o desenvolvimento. Como a maioria dos países membros da OMPI é de países em desenvolvimento, os países ricos estavam em minoria. Uma grande jogada desses últimos foi vincular propriedade intelectual ao comércio, o que ocorreu a partir da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Com a crescente necessidade de todos os países fazerem parte do comércio global, quando da adesão dos mesmos à OMC, por tabela levam junto o Acordo TRIPS, sobre propriedade intelectual, que prevê os patamares mínimos de proteção à propriedade intelectual, bem como – e talvez aqui esteja a grande sacada dos países dominantes – sanções por descumprimento das regras. Ou seja, caso algum país não cumpra com o previsto em TRIPS, pode ser acionado perante a OMC e ficar sujeito a sanções e embagos comerciais por parte do país detentor de direitos de propriedade intelectual. Mas não bastassem tais patamares mínimos previstos em TRIPS, países como os Estados Unidos vem exercendo pressão por meio de tratados bilaterais: é muito mais fácil pressionar um único país pobre (ou mesmo rico!) por vez, do que tentar impôr algo a vários países ao mesmo tempo. E tal estratégia tem surtido efeito: temos tratados bilaterais, todos prevendo patamares mais elevados de proteção do que o estabelecido no TRIPS, já fechados entre os EUA e Jordânia, Austrália, Cingapura, Chile e Marrocos, entre outros. Outra forma de pressão política que não pode ser negligenciada são os relatórios do Departamento de Comércio dos EUA, a famosa "priority watch list", que enumera países que estão na lista negra daquele governo, que entende não ter seus direitos de propriedade intelectual devidamente protegidos. No recente relatório anual, de final de abril de 2006, o Brasil é posto no grau máximo de alerta: quem sabe alguma coisa à ver com a iniciativa brasileira na OMPI, para equilibrar o debate?

Prometheus: Como isso pode afetar os países mais pobres?

Pedro Paranaguá: Essa política maximalista afeta não apenas países pobres, mas também países ricos. Relatório de 2005 da Business Software Alliance (BSA), que representa, dentre outras, a Microsoft, relata que empresas do grupo têm sofrido com o sistema de patentes, que vem sendo utilizado de forma a fazer reserva de mercado, ao invés de promover a inovação. Patentes são tidas como instrumentos de pressão e ameaça, ao invés de serem efetivamente exploradas. O que se gasta com litígio poderia ser gasto com pesquisa e desenvolvimento. Mas países pobres sofrem ainda mais, uma vez que royalties pelo uso de propriedade intelectual são enviados aos países ricos aos milhões de dólares, o que cria um grande déficit na balança comercial daqueles. No caso de acesso à informação, educação, medicamentos e conhecimento em geral, países pobres sentem o grande impacto. Preços de livros são exorbitantes, assim como ocorre com preços de medicamentos patenteados ou de software proprietário. Daí uma das grandes vantagens de utilizarmos genéricos (que são exatamente iguais aos produtos patenteados) e softwares livres. No final das contas, por abuso de interesses privados em contrapartida a interesses públicos, o direito de exclusividade de exploração do produto industrial ou da criação intelectual acaba significando não apenas uma exclusividade, mas sim, uma exclusão dos demais, que ficam à margem, sem acesso a conhecimento.

Prometheus: No campo da cultura e da comunicação, quais os maiores prejuízos que podem surgir para a livre expressão e a criação artística?

Pedro Paranaguá: Hoje, caso alguém escreva algo, automaticamente está protegido por direitos autorais – desde que original. Não há necessidade de registro. E os direitos são reservados na sua integralidade. Agora pergunto: protegidos de quem? Parece que somos um bando de bárbaros que, sedentos por cultura e informação, quebramos tudo o que encontramos pela frente de modo que as criações do intelecto têm de ser protegidas e mantidas à distância de nós. No Brasil, caso um livro esteja fora de catálogo, ou seja, não esteja à venda e, portanto, a editora não recebe qualquer remuneração, mesmo assim ninguém poderá fotocopiá-lo. E como fica a função social da propriedade, garantida por nossa Constituição? Na Alemanha não é assim, caso o livro esteja fora de catálogo por 2 anos, pode-se fotocopiá-lo na íntegra. Ou seja, o Brasil não implementou todas as flexibilidades previstas em tratados internacionais. Será a pressão da "priority watch list"? Por exemplo, o Creative Commons, forma de licenciamento de obras, criado pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, e que é representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, é baseado nos direitos autorais, mas ao invés de "todos os direitos reservados", é um instrumento de "alguns direitos reservados", o que promove a disseminação do conhecimento, através de um maior equilíbrio entre o interesse público e o privado.

Prometheus: O que é a Agenda para o Desenvolvimento e como ela pode contribuir para reverter este cenário?

Pedro Paranaguá: A Agenda para o Desenvolvimento é uma iniciativa de 15 países em desenvolvimento, liderados por Brasil e Argentina, no âmbito da OMPI, para promover a flexibilização no debate sobre propriedade intelectual de forma a trazer equilíbrio entre o interesse público e o privado. A Agenda foi apresentada no final de 2004 e vem sendo discutida de forma calorosa desde então, na OMPI, em Genebra. Agora no final de 2006 ocorrerá a Assembléia Geral da OMPI, momento no qual a Agenda terá seu poder de reversão do cenário testado. Do ponto de vista de êxito de suas várias propostas, tendo a ser relativamente cético, ou melhor, realista: a pressão de grandes corporações, organizadas há décadas, com grande capital e com seus fortes lobbies, tem jogado um balde de água fria nas discussões. Mas uma coisa é certa: apesar do pouco preparo da maioria dos representantes de governos do hemisfério sul, está se formando, ainda que timidamente, uma coalizão de aliados incluindo a academia, organizações não governamentais (ONGs) representantes de consumidores e do interesse público, e mesmo de governos do hemisfério sul. E nesse sentido a Agenda para o Desenvolvimento tem tido um papel crucial.

 

Classificar os conteúdos de tevê é censura?

Entrou em vigor em julho deste ano a Portaria 1.100 do Ministério da Justiça criando novas regras para a classificação indicativa de obras culturais, entre elas obras audiovisuais destinadas a cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos, jogos de interpretação (RPG) e congêneres. Para entender melhor os objetivos e o funcionamento deste instrumento de controle público entrevistamos nesta edição o diretor do Departamento de Justiça e Classificação do Ministério da Justiça, José Eduardo Romão, responsável pela implantação na nova Classificação Indicativa.

Prometheus: Desde o início de sua implantação, a Classificação Indicativa foi comparada com a censura por seus maiores críticos – os radiodifusores e os exibidores de filmes. Na visão do Ministério da Justiça, em que contexto a classificação indicativa surge como uma necessidade e como se diferencia da velha censura? Esse tipo de comparação deve-se a falta de cultura política do "controle público" no país?

José Eduardo Romão: Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até os dias de hoje, pouco se falou sobre a Classificação Indicativa e o que isso significa para nós cidadãos brasileiros. Diferentemente do que muita gente pensa, a Classificação Indicativa não é censura, mas sim um serviço de análise e de produção de informações objetivas sobre conteúdos audiovisuais previsto na Constituição e regulamentado por duas leis federais: a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei 10.359/01. Realizado no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, esse serviço tem por objetivo imediato indicar aos pais e à família a existência de conteúdo inadequado em programas, filmes, novelas, jogos eletrônicos, dentre outras diversões públicas, para determinadas faixas etárias. E, portanto, tem por objetivo mediato proteger os direitos da criança e do adolescente.

A confusão entre classificação indicativa e censura pode até ser explicada, mas não mais se justifica no atual contexto. Quase sempre essa confusão revela ignorância ou má-fé, e por esse velho binômio, pode ser explicada. Muitas pessoas ainda hoje ignoram o que seja a classificação e sob quais critérios e procedimentos ela é exercida – o que é bastante compreensível se considerarmos que nem mesmo os constituintes em 1988 sabiam ao certo o que significava a expressão “classificação indicativa”. Há também um bocado de gente que, conhecendo com detalhes o serviço de classificação, insiste na confusão porque, evidentemente, se beneficia dela.

Prometheus: Durante o debate que definiu os critérios que norteiam a classificação indicativa houve um período dedicado à consulta pública, para que a sociedade pudesse contribuir e opinar. Como o senhor avalia esse processo e qual o grau de importância dessa consulta pública no resultado dessa formulação?

José Eduardo Romão: A Consulta Pública foi a segunda etapa rumo à regulamentação do novo modelo de Classificação Indicativa. Foi realizada de setembro a dezembro de 2005. Foram distribuídos 12.660 questionários com nove perguntas sobre o que a população brasileira pensa e espera da classificação indicativa de TV. Para que o sistema funcione. Consideramos essencial a participação da sociedade. A classificação indicativa não é um controle da programação, mas uma forma de dar condições para que a população controle a qualidade do que recebe da TV e, por outro lado, controle a ação do estado.

A consulta pública também foi disponibilizada no site do Ministério da Justiça. Mais de 10 mil pessoas utilizaram a página da Internet para opinar sobre a programação da TV. De acordo com o levantamento, 57% dos participantes vêem a classificação como um serviço de informação de caráter pedagógico, sobre o conteúdo da programação televisiva, com o objetivo de proteger crianças e adolescentes. Mais de 25% dos entrevistados acreditam que o trabalho é um instrumento de controle da qualidade da programação e de defesa dos direitos humanos.

Prometheus: Na prática como funcionará a classificação indicativa de filmes de cinema, programas de TV e jogos eletrônicos? A classificação fica sob responsabilidade exclusiva do Ministério da Justiça? Como a população pode participar?

José Eduardo Romão: De acordo com  a portaria 1.100 do Ministério da Justiça que regulamenta a Classificação Indicativa de diversões públicas (teatro, dança, shows, circo) e obras audiovisuais destinadas a cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos, jogos de interpretação (RPG) e congêneres, agora os pais podem autorizar, mediante a assinatura de um termo de responsabilidade, o acesso dos filhos a filmes e espetáculos com classificação indicativa superior à faixa etária, desde que acompanhados de um adulto. Nessa autorização, o pai também deverá atestar que tomou conhecimento da classificação indicativa realizada pelo Ministério da Justiça. A regra não vale para filmes acima de 18 anos.

Todas as diversões públicas citadas na portaria deverão exibir em locais de fácil acesso e de forma legível a classificação indicativa atribuída à obra, o tema predominante e o conteúdo das cenas consideradas inadequadas conforme o Manual da Nova Classificação Indicativa. Produtores, distribuidores e exibidores poderão ser punidos em caso de descumprimento dessas regras, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina multa de três a vinte salários mínimos.

Não é o papel do Ministério da Justiça dispor sobre acesso de crianças e adolescentes a obras audiovisuais, mas apenas informar e recomendar aos pais e responsáveis pela decisão. Cabe aos pais decidir se os filhos estão preparados ou não para assistir obras que contenham cenas de sexo, de violência, tal como as descritas no Manual.

A portaria permite, ainda, que produtores e responsáveis por espetáculos circenses, teatrais e shows musicais, entre outras exibições públicas, classifiquem suas obras de acordo com os critérios descritos no Manual da Nova Classificação Indicativa. Com essa determinação, as diversões públicas não estão sujeitas à análise prévia do Ministério da Justiça.

Outra novidade é a criação do grupo permanente de colaboradores voluntários que serão convidados para sessões de análise e classificação de obras audiovisuais e deverão auxiliar na atividade de classificação indicativa.

Prometheus: Vem aumentando nos últimos anos a contestação aos programas de televisão que violam os direitos humanos. Alguns saíram do ar como o programa “Tarde Quente” do apresentador João Kleber, outros estão com dificuldade de conseguir anunciantes de peso – porque não querem ter as suas marcas vinculadas á baixaria. Como a classificação indicativa pode contribuir para que essas violações não sejam apresentadas na TV? Há como impedir que esses programas sejam veiculados?

José Eduardo Romão: Cabe ao Ministério da Justiça classificar, indicar a faixa etária adequada para determinado programa. O Ministério não tem poder de penalizar ninguém. Existe um trabalho conjunto com o Ministério Público, tanto Federal quanto dos Estados, para quando houver descumprimento da classificação indicativa, o Ministério Público possa adotar a medida judicial compatível.

O Manual de Classificação Indicativa traz as novas regras do novo modelo de classificação no Brasil. Essa ferramenta deverá dar mais transparência e explicar para a sociedade civil e para os pais sobre os critérios utilizados na classificação de um programa. Estamos criando uma linguagem única, para que todas as emissoras usem os mesmos símbolos, deixando bem claro qual é a faixa etária indicada para o programa exibido.

A nova classificação indicativa é resultado de três anos e meio de discussões entre representantes do Ministério da Justiça, das emissoras de televisão, distribuidoras de obras audiovisuais e de entidades da sociedade civil.

>> O texto da Portaria 1.100 do MJ, o Manual da Nova Classificação Indicativa, o modelo da autorização para acesso de menores acompanhados  e outras informações estão disponíveis no www.mj.gov.br/classificacao