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Propriedade Intelectual prejudica os mais pobres

Entrevistamos para esta edição Pedro Paranaguá, advogado atuante na área da propriedade intelectual, membro do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e que acompanha como pesquisador e militante as disputas no interior da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)

Prometheus: Os últimos anos foram marcados por um recrudescimento na lógica da propriedade intelectual. Quais os principais instrumentos internacionais deste processo?

Pedro Paranaguá: Nunca na história da humanidade foi preciso haver incentivo por meio de concessão de monopólios jurídicos limitados no tempo para que houvesse expansão das artes, da ciência e da cultura. Os grandes filósofos da antigüidade não tinham suas idéias protegidas por direitos autorais e nem por isso deixou-se de haver grande evolução intelectual. Na área industrial, Thomas Jefferson dizia no início do século XIX, que países que não ofereciam proteção por patentes eram tão frutíferos quanto os que davam proteção. Mais recentemente, economistas do calibre de F. Machlup, E. Penrose, P. David e J. Stiglitz, questionam o funcionamento do sistema de propriedade intelectual como um todo. Quer nos parecer que países hoje ricos tentam impôr uma proteção maximalista ao restante do mundo. Ocorre, todavia, que tais países somente tiveram a oportunidade de enriquecer e se desenvolver justamente porque há alguns anos atrás, quando não eram desenvolvidos, não ofereciam proteção a criações e a inventos industriais. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) foi criada em 1967 para "proteger" direitos de propriedade intelectual. Foi concebida por advogados que tinham como clientes empresas interessadas em tal proteção. Poucos anos mais tarde, em 1974, a OMPI passa a ser uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU) e, portanto, não deveria mais apenas "proteger" a propriedade intelectual, mas sim "promover a criatividade e a atividade inventiva" de modo a promover o desenvolvimento. Assim, a OMPI não mais tinha a propriedade intelectual como fim em si mesma; mas sim como um meio para se atingir o desenvolvimento. Como a maioria dos países membros da OMPI é de países em desenvolvimento, os países ricos estavam em minoria. Uma grande jogada desses últimos foi vincular propriedade intelectual ao comércio, o que ocorreu a partir da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Com a crescente necessidade de todos os países fazerem parte do comércio global, quando da adesão dos mesmos à OMC, por tabela levam junto o Acordo TRIPS, sobre propriedade intelectual, que prevê os patamares mínimos de proteção à propriedade intelectual, bem como – e talvez aqui esteja a grande sacada dos países dominantes – sanções por descumprimento das regras. Ou seja, caso algum país não cumpra com o previsto em TRIPS, pode ser acionado perante a OMC e ficar sujeito a sanções e embagos comerciais por parte do país detentor de direitos de propriedade intelectual. Mas não bastassem tais patamares mínimos previstos em TRIPS, países como os Estados Unidos vem exercendo pressão por meio de tratados bilaterais: é muito mais fácil pressionar um único país pobre (ou mesmo rico!) por vez, do que tentar impôr algo a vários países ao mesmo tempo. E tal estratégia tem surtido efeito: temos tratados bilaterais, todos prevendo patamares mais elevados de proteção do que o estabelecido no TRIPS, já fechados entre os EUA e Jordânia, Austrália, Cingapura, Chile e Marrocos, entre outros. Outra forma de pressão política que não pode ser negligenciada são os relatórios do Departamento de Comércio dos EUA, a famosa "priority watch list", que enumera países que estão na lista negra daquele governo, que entende não ter seus direitos de propriedade intelectual devidamente protegidos. No recente relatório anual, de final de abril de 2006, o Brasil é posto no grau máximo de alerta: quem sabe alguma coisa à ver com a iniciativa brasileira na OMPI, para equilibrar o debate?

Prometheus: Como isso pode afetar os países mais pobres?

Pedro Paranaguá: Essa política maximalista afeta não apenas países pobres, mas também países ricos. Relatório de 2005 da Business Software Alliance (BSA), que representa, dentre outras, a Microsoft, relata que empresas do grupo têm sofrido com o sistema de patentes, que vem sendo utilizado de forma a fazer reserva de mercado, ao invés de promover a inovação. Patentes são tidas como instrumentos de pressão e ameaça, ao invés de serem efetivamente exploradas. O que se gasta com litígio poderia ser gasto com pesquisa e desenvolvimento. Mas países pobres sofrem ainda mais, uma vez que royalties pelo uso de propriedade intelectual são enviados aos países ricos aos milhões de dólares, o que cria um grande déficit na balança comercial daqueles. No caso de acesso à informação, educação, medicamentos e conhecimento em geral, países pobres sentem o grande impacto. Preços de livros são exorbitantes, assim como ocorre com preços de medicamentos patenteados ou de software proprietário. Daí uma das grandes vantagens de utilizarmos genéricos (que são exatamente iguais aos produtos patenteados) e softwares livres. No final das contas, por abuso de interesses privados em contrapartida a interesses públicos, o direito de exclusividade de exploração do produto industrial ou da criação intelectual acaba significando não apenas uma exclusividade, mas sim, uma exclusão dos demais, que ficam à margem, sem acesso a conhecimento.

Prometheus: No campo da cultura e da comunicação, quais os maiores prejuízos que podem surgir para a livre expressão e a criação artística?

Pedro Paranaguá: Hoje, caso alguém escreva algo, automaticamente está protegido por direitos autorais – desde que original. Não há necessidade de registro. E os direitos são reservados na sua integralidade. Agora pergunto: protegidos de quem? Parece que somos um bando de bárbaros que, sedentos por cultura e informação, quebramos tudo o que encontramos pela frente de modo que as criações do intelecto têm de ser protegidas e mantidas à distância de nós. No Brasil, caso um livro esteja fora de catálogo, ou seja, não esteja à venda e, portanto, a editora não recebe qualquer remuneração, mesmo assim ninguém poderá fotocopiá-lo. E como fica a função social da propriedade, garantida por nossa Constituição? Na Alemanha não é assim, caso o livro esteja fora de catálogo por 2 anos, pode-se fotocopiá-lo na íntegra. Ou seja, o Brasil não implementou todas as flexibilidades previstas em tratados internacionais. Será a pressão da "priority watch list"? Por exemplo, o Creative Commons, forma de licenciamento de obras, criado pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, e que é representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, é baseado nos direitos autorais, mas ao invés de "todos os direitos reservados", é um instrumento de "alguns direitos reservados", o que promove a disseminação do conhecimento, através de um maior equilíbrio entre o interesse público e o privado.

Prometheus: O que é a Agenda para o Desenvolvimento e como ela pode contribuir para reverter este cenário?

Pedro Paranaguá: A Agenda para o Desenvolvimento é uma iniciativa de 15 países em desenvolvimento, liderados por Brasil e Argentina, no âmbito da OMPI, para promover a flexibilização no debate sobre propriedade intelectual de forma a trazer equilíbrio entre o interesse público e o privado. A Agenda foi apresentada no final de 2004 e vem sendo discutida de forma calorosa desde então, na OMPI, em Genebra. Agora no final de 2006 ocorrerá a Assembléia Geral da OMPI, momento no qual a Agenda terá seu poder de reversão do cenário testado. Do ponto de vista de êxito de suas várias propostas, tendo a ser relativamente cético, ou melhor, realista: a pressão de grandes corporações, organizadas há décadas, com grande capital e com seus fortes lobbies, tem jogado um balde de água fria nas discussões. Mas uma coisa é certa: apesar do pouco preparo da maioria dos representantes de governos do hemisfério sul, está se formando, ainda que timidamente, uma coalizão de aliados incluindo a academia, organizações não governamentais (ONGs) representantes de consumidores e do interesse público, e mesmo de governos do hemisfério sul. E nesse sentido a Agenda para o Desenvolvimento tem tido um papel crucial.

 

Classificar os conteúdos de tevê é censura?

Entrou em vigor em julho deste ano a Portaria 1.100 do Ministério da Justiça criando novas regras para a classificação indicativa de obras culturais, entre elas obras audiovisuais destinadas a cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos, jogos de interpretação (RPG) e congêneres. Para entender melhor os objetivos e o funcionamento deste instrumento de controle público entrevistamos nesta edição o diretor do Departamento de Justiça e Classificação do Ministério da Justiça, José Eduardo Romão, responsável pela implantação na nova Classificação Indicativa.

Prometheus: Desde o início de sua implantação, a Classificação Indicativa foi comparada com a censura por seus maiores críticos – os radiodifusores e os exibidores de filmes. Na visão do Ministério da Justiça, em que contexto a classificação indicativa surge como uma necessidade e como se diferencia da velha censura? Esse tipo de comparação deve-se a falta de cultura política do "controle público" no país?

José Eduardo Romão: Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até os dias de hoje, pouco se falou sobre a Classificação Indicativa e o que isso significa para nós cidadãos brasileiros. Diferentemente do que muita gente pensa, a Classificação Indicativa não é censura, mas sim um serviço de análise e de produção de informações objetivas sobre conteúdos audiovisuais previsto na Constituição e regulamentado por duas leis federais: a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei 10.359/01. Realizado no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, esse serviço tem por objetivo imediato indicar aos pais e à família a existência de conteúdo inadequado em programas, filmes, novelas, jogos eletrônicos, dentre outras diversões públicas, para determinadas faixas etárias. E, portanto, tem por objetivo mediato proteger os direitos da criança e do adolescente.

A confusão entre classificação indicativa e censura pode até ser explicada, mas não mais se justifica no atual contexto. Quase sempre essa confusão revela ignorância ou má-fé, e por esse velho binômio, pode ser explicada. Muitas pessoas ainda hoje ignoram o que seja a classificação e sob quais critérios e procedimentos ela é exercida – o que é bastante compreensível se considerarmos que nem mesmo os constituintes em 1988 sabiam ao certo o que significava a expressão “classificação indicativa”. Há também um bocado de gente que, conhecendo com detalhes o serviço de classificação, insiste na confusão porque, evidentemente, se beneficia dela.

Prometheus: Durante o debate que definiu os critérios que norteiam a classificação indicativa houve um período dedicado à consulta pública, para que a sociedade pudesse contribuir e opinar. Como o senhor avalia esse processo e qual o grau de importância dessa consulta pública no resultado dessa formulação?

José Eduardo Romão: A Consulta Pública foi a segunda etapa rumo à regulamentação do novo modelo de Classificação Indicativa. Foi realizada de setembro a dezembro de 2005. Foram distribuídos 12.660 questionários com nove perguntas sobre o que a população brasileira pensa e espera da classificação indicativa de TV. Para que o sistema funcione. Consideramos essencial a participação da sociedade. A classificação indicativa não é um controle da programação, mas uma forma de dar condições para que a população controle a qualidade do que recebe da TV e, por outro lado, controle a ação do estado.

A consulta pública também foi disponibilizada no site do Ministério da Justiça. Mais de 10 mil pessoas utilizaram a página da Internet para opinar sobre a programação da TV. De acordo com o levantamento, 57% dos participantes vêem a classificação como um serviço de informação de caráter pedagógico, sobre o conteúdo da programação televisiva, com o objetivo de proteger crianças e adolescentes. Mais de 25% dos entrevistados acreditam que o trabalho é um instrumento de controle da qualidade da programação e de defesa dos direitos humanos.

Prometheus: Na prática como funcionará a classificação indicativa de filmes de cinema, programas de TV e jogos eletrônicos? A classificação fica sob responsabilidade exclusiva do Ministério da Justiça? Como a população pode participar?

José Eduardo Romão: De acordo com  a portaria 1.100 do Ministério da Justiça que regulamenta a Classificação Indicativa de diversões públicas (teatro, dança, shows, circo) e obras audiovisuais destinadas a cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos, jogos de interpretação (RPG) e congêneres, agora os pais podem autorizar, mediante a assinatura de um termo de responsabilidade, o acesso dos filhos a filmes e espetáculos com classificação indicativa superior à faixa etária, desde que acompanhados de um adulto. Nessa autorização, o pai também deverá atestar que tomou conhecimento da classificação indicativa realizada pelo Ministério da Justiça. A regra não vale para filmes acima de 18 anos.

Todas as diversões públicas citadas na portaria deverão exibir em locais de fácil acesso e de forma legível a classificação indicativa atribuída à obra, o tema predominante e o conteúdo das cenas consideradas inadequadas conforme o Manual da Nova Classificação Indicativa. Produtores, distribuidores e exibidores poderão ser punidos em caso de descumprimento dessas regras, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina multa de três a vinte salários mínimos.

Não é o papel do Ministério da Justiça dispor sobre acesso de crianças e adolescentes a obras audiovisuais, mas apenas informar e recomendar aos pais e responsáveis pela decisão. Cabe aos pais decidir se os filhos estão preparados ou não para assistir obras que contenham cenas de sexo, de violência, tal como as descritas no Manual.

A portaria permite, ainda, que produtores e responsáveis por espetáculos circenses, teatrais e shows musicais, entre outras exibições públicas, classifiquem suas obras de acordo com os critérios descritos no Manual da Nova Classificação Indicativa. Com essa determinação, as diversões públicas não estão sujeitas à análise prévia do Ministério da Justiça.

Outra novidade é a criação do grupo permanente de colaboradores voluntários que serão convidados para sessões de análise e classificação de obras audiovisuais e deverão auxiliar na atividade de classificação indicativa.

Prometheus: Vem aumentando nos últimos anos a contestação aos programas de televisão que violam os direitos humanos. Alguns saíram do ar como o programa “Tarde Quente” do apresentador João Kleber, outros estão com dificuldade de conseguir anunciantes de peso – porque não querem ter as suas marcas vinculadas á baixaria. Como a classificação indicativa pode contribuir para que essas violações não sejam apresentadas na TV? Há como impedir que esses programas sejam veiculados?

José Eduardo Romão: Cabe ao Ministério da Justiça classificar, indicar a faixa etária adequada para determinado programa. O Ministério não tem poder de penalizar ninguém. Existe um trabalho conjunto com o Ministério Público, tanto Federal quanto dos Estados, para quando houver descumprimento da classificação indicativa, o Ministério Público possa adotar a medida judicial compatível.

O Manual de Classificação Indicativa traz as novas regras do novo modelo de classificação no Brasil. Essa ferramenta deverá dar mais transparência e explicar para a sociedade civil e para os pais sobre os critérios utilizados na classificação de um programa. Estamos criando uma linguagem única, para que todas as emissoras usem os mesmos símbolos, deixando bem claro qual é a faixa etária indicada para o programa exibido.

A nova classificação indicativa é resultado de três anos e meio de discussões entre representantes do Ministério da Justiça, das emissoras de televisão, distribuidoras de obras audiovisuais e de entidades da sociedade civil.

>> O texto da Portaria 1.100 do MJ, o Manual da Nova Classificação Indicativa, o modelo da autorização para acesso de menores acompanhados  e outras informações estão disponíveis no www.mj.gov.br/classificacao

Entidades lançam Frente pelaTV Digital

Reunidas em Brasília, no dia 4 de abril, 39 organizações, redes e fóruns da sociedade civil lançaram a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital. A Frente tem como objetivo principal articular e unificar a intervenção da sociedade civil na discussão sobre a implantação da TV digital no país.

Como primeira iniciativa, ficou definido que a Frente vai lutar para que o governo paralise o processo decisório e abra um amplo debate com a sociedade.

"A plenária foi um marco importante na articulação da sociedade civil. A expectativa é que a partir deste espaço as diversas organizações que integram esta rede consigam fortalecer suas iniciativas de mobilização e formação sobre o tema junto à sociedade e em um curto período de tempo apresentem propostas concretas para o modelo de TV digital brasileiro, a partir da ótica do interesse público e da concepção de que a mídia brasileira deve ser urgentemente democratizada", avalia Jonas Valente, representante do Coletivo Intervozes, uma das organizações que integram a Frente.

Dentro desse espírito, ficou definido que a Frente vai se concentrar em cinco tipos de ações: 1) ampliar as discussões para tornar público e transparente o debate sobre a digitalização da radiodifusão brasileira; 2) formular conjuntamente propostas para implantação e exploração dos serviços, opções tecnológicas e econômicas; 3) defender o cumprimento dos objetivos dispostos no Decreto 4.901/2003, que institui o SBTVD (democratização da informação, aperfeiçoamento do uso do espectro, inclusão social, desenvolvimento da indústria nacional e processo de transição que não onere os cidadãos); 4) defender um genuíno SBTVD e reivindicar o desenvolvimento de um sistema semelhante para o rádio digital; 5) defender a definição de um marco regulatório que incorpore a convergência tecnológica e regulamente os artigos constitucionais que tratam da área das comunicações.

Estiveram presentes na plenária, apoiando a iniciativa da criação da Frente, os deputados Ivan Valente (PSOL-SP), Walter Pinheiro (PT-BA), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Dr. Rosinha (PT-PR), Paulo Rubem Santiago (PT-PE), Tarcísio Zimmerman (PT/RS) e Júlio Semeghini (PSDB-SP).

Pesquisador discute novo marco regulatório

O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), legislação que rege o rádio e a televisão no Brasil, data de 1962, quando a própria televisão em preto e branco ainda era uma novidade para boa parte da população brasileira. A TV a cabo tem uma lei própria, e as demais modalidades de televisão por assinatura – o MMDS (micro-ondas) e o DTH (televisão por satélite) – não tiveram sua regulamentação por meio de discussão pública, com aprovação de lei ordinária no Congresso Nacional. Foram reguladas por portarias e têm critérios diferentes da TV a cabo em diferentes questões; entre elas, a participação de capital estrangeiro nas empresas de TV por assinatura. Por outro lado, os chamados serviços de telecomunicações estão submetidos à Lei Geral de Telecomunicações e à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), desde a distinção criada entre comunicação e telecomunicações, produzida pela Emenda Constitucional no 5, de 1995. Até então eram regidos pelo mesmo Código de 1962.

Esses movimentos contraditórios e casuístas vêm tornando a nossa legislação uma verdadeira "colcha de retalhos", incapaz, também, de balizar as novas atividades que surgem e o entrelaçamento de diferentes serviços, frutos do advento da tecnologia digital e da chamada convergência tecnológica.

Os debates em torno da TV digital trazem a tona novamente a necessidade de reformular a legislação criando um novo marco regulatório, unificando, a partir de princípios comuns, a contraditória legislação brasileira no campo da comunicação. Para discutir a necessidade de criação de uma nova legislação para o setor de comunicação, o Boletim Prometheus entrevistou nesta edição o professor Murilo Ramos, coordenador do Laboratório de Políticas em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

Prometheus – Qual a importância dessas redefinições no momento atual e que riscos corremos caso elas não aconteçam?
Murilo Ramos – Os debates da TV digital, na realidade, esconderam durante quase todo o atual governo o debate que o deveria preceder, sobre um novo ambiente normativo – político, regulamentar e regulatório – para a comunicação social eletrônica brasileira. Só quando aquelas forças não empresariais, comumente conhecidas como da 'sociedade civil' – destaco duas, hoje as mais importantes: o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e o Coletivo Intervozes – deram-se conta de que o projeto, essencialmente técnico, ressalto, do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) seria desconsiderado pelo governo, é que elas retomaram a tese fundamental do novo marco normativo. O que temo é que talvez tenha sido tarde demais, e que a decisão técnica, qualquer que seja, aconteça ainda este ano, tornando ainda mais fragmentada e dispersa, e casuística, a atual legislação para a comunicação social eletrônica.

Prometheus – Que princípios devem nortear uma Lei Geral das Comunicações?
Murilo Ramos – Prefiro, por ora, circunscrever essa lei ao que denomino Comunicação Social Eletrônica, que compreende essencialmente o rádio, a televisão e as mídias digitais correlatas que têm na internet o seu meio-síntese. Para mim, são três os princípios fundamentais que deveriam nortear essa lei. O primeiro é reconhecer a centralidade da idéia de público para a estruturação de qualquer sistema de comunicação democrático. Isso significa em nosso caso duas estratégias básicas de política de comunicação. Uma é garantir que em nosso sistema comercial possa existir um sub-sistema público de rádio e televisão de alta qualidade programática e técnica, e com fontes de financiamento próprias e asseguradas. Penso em algo como o Public Broadcasting Service (PBS) e National Public Radio (NPR), existentes nos Estados Unidos. Este é um sub-sistema que pode e deve nascer das estruturas de uma Radiobrás e de uma Televisão Educativa "desgovernamentalizadas" e transformadas em entes de Estado sob amplo controle público. A outra estratégia é fazer com que toda concessão ou permissão dada para a exploração de um serviço de comunicação social eletrônica seja de fato outorga de serviço público, e não, como hoje, licenças frouxas, que tornam o uso das radiofreqüências (ao contrário, inclusive, do que ocorre com as telecomunicações) uma atividade quase que eminentemente privada. O público, na comunicação social eletrônica que utiliza um bem coletivo escasso, como é o caso do rádio e da televisão, tem que se sobrepor ao privado. E mesmo os serviços de comunicação social eletrônica que sejam objeto de outorgas de autorização deveriam estar submetidos a contratos com claras obrigações de prestação do serviço nos termos estabelecidos pela Constituição Federal. Um segundo princípio é o da regulação autônoma. O segmento da comunicação social eletrônica conhecido como radiodifusão, ou rádio e televisão abertos – prestes a passar por uma transição tecnológica digital que mudará substantivamente sua estrutura de programação e relação com a sociedade – é hoje o mais irregulado da economia brasileira. Sua lei básica, a Lei 4.117 é de 1962 e já está toda desfigurada. Seu órgão regulador é o Ministério das Comunicações, que, na maioria das vezes, serve de escritório em Brasília para atender os interesses do empresariado, e não do Estado e da sociedade. Não é mais possível pensar a comunicação social eletrônica sem um aparato de regulação autônomo e eficaz amplamente permeado pela sociedade. Um terceiro princípio é o do aproveitamento da transição tecnológica digital para aumentar a diversidade dos atores – estatais, públicos e privados – capazes de prover a sociedade com as mais variadas programações informativas, culturais e de entretenimento. O mercado de comunicação social não pode ser reservado para o oligopólio, quase monopólio, que hoje o domina, e que deseja manter essa dominação sob um farisaico discurso nacionalista e protecionista. É por isso que um novo ambiente normativo – com suas políticas, leis, regulamentos e entes reguladores – precisa preceder a transição tecnológica digital. Por meio dele podemos introduzir, acredito, novos atores na produção, empacotamento e distribuição de programações audiovisuais, estabelecendo limites ao controle de empresas, horizontal e verticalmente – criando condições para ampliar a produção audiovisual nacional. O que não podemos é perder esse momento da chamada convergência digital para manter um paradigma ultrapassado, em particular no mercado da televisão aberta. Nesse mercado, quem se quer fazer hoje de Davi é também Golias. Todos, aliás, empresas de televisão e de telecomunicações, são Golias. Os Davis estão na sociedade receptora, quase sempre passiva do que lhe é vendido. O importante é que o interesse público, pela via do Estado, se imponha sobre os interesses do privado. E isto só se consegue, em um Estado de Direito, pelo recurso da lei. 

Prometheus – Os radiodifusores vêm tentando reduzir o debate em torno da TV digital a uma disputa entre eles, representantes do "bem" e da produção nacional, contra o "mal" e a invasão estrangeira, promovida pelas empresas de telecomunicações. Sabemos que essa definição além de reducionista é casuísta. Basta citar o envolvimento histórico da  Globo com a abertura irrestrita das telecomunicações ao capital estrangeiro e a sua aliança atual com a News Corp. e a Telmex, que vêm escancarando as redes de comunicação via satélite e de TV cabo ao domínio de corporações globais.
Murilo Ramos – A pergunta contém boa parte da resposta, com a qual concordo na essência e à qual tentei me remeter quando usei, há pouco, a metáfora, espero que adequada, do embate entre David e Golias.

Prometheus –  Como uma futura Lei Geral deve definir a participação de capital estrangeiro no mercado brasileiro?
Murilo Ramos – Apesar do modo atropelado como aconteceu a mudança do artigo 222 da Constituição, que permitiu a entrada de pessoas jurídicas, inclusive estrangeiras (estas com no máximo 30% do capital votante das empresas jornalísticas e de radio e televisão abertos), creio que esse é um patamar razoável a partir do qual se pode fazer a discussão sobre como o capital estrangeiro pode contribuir para a diversidade na comunicação social eletrônica brasileira. País algum do mundo, mesmo na Europa unificada, descuida da sua língua e da sua cultura quando se trata de regulamentar e regular imprensa, cinema, rádio e televisão por qualquer meio de transmissão. Os mecanismos variam, mas restrições existem. Essa tem que ser também nossa atitude.

Prometheus – Durante o governo Fernando Henrique a formulação de uma Lei Geral não passou de anteprojeto e ameaças. Estamos na reta final do governo Lula e como saldo nessa matéria tivemos poucos avanços e muitos recuos, além de ministros que passaram pela pasta das Comunicações sem grande interesse pelo assunto. Você acredita que o governo apresente nessa reta final alguma proposta de Lei Geral?
Murilo Ramos – Não, não acredito. E lamento profundamente.