Propriedade Intelectual prejudica os mais pobres

Entrevistamos para esta edição Pedro Paranaguá, advogado atuante na área da propriedade intelectual, membro do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e que acompanha como pesquisador e militante as disputas no interior da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)

Prometheus: Os últimos anos foram marcados por um recrudescimento na lógica da propriedade intelectual. Quais os principais instrumentos internacionais deste processo?

Pedro Paranaguá: Nunca na história da humanidade foi preciso haver incentivo por meio de concessão de monopólios jurídicos limitados no tempo para que houvesse expansão das artes, da ciência e da cultura. Os grandes filósofos da antigüidade não tinham suas idéias protegidas por direitos autorais e nem por isso deixou-se de haver grande evolução intelectual. Na área industrial, Thomas Jefferson dizia no início do século XIX, que países que não ofereciam proteção por patentes eram tão frutíferos quanto os que davam proteção. Mais recentemente, economistas do calibre de F. Machlup, E. Penrose, P. David e J. Stiglitz, questionam o funcionamento do sistema de propriedade intelectual como um todo. Quer nos parecer que países hoje ricos tentam impôr uma proteção maximalista ao restante do mundo. Ocorre, todavia, que tais países somente tiveram a oportunidade de enriquecer e se desenvolver justamente porque há alguns anos atrás, quando não eram desenvolvidos, não ofereciam proteção a criações e a inventos industriais. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) foi criada em 1967 para "proteger" direitos de propriedade intelectual. Foi concebida por advogados que tinham como clientes empresas interessadas em tal proteção. Poucos anos mais tarde, em 1974, a OMPI passa a ser uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU) e, portanto, não deveria mais apenas "proteger" a propriedade intelectual, mas sim "promover a criatividade e a atividade inventiva" de modo a promover o desenvolvimento. Assim, a OMPI não mais tinha a propriedade intelectual como fim em si mesma; mas sim como um meio para se atingir o desenvolvimento. Como a maioria dos países membros da OMPI é de países em desenvolvimento, os países ricos estavam em minoria. Uma grande jogada desses últimos foi vincular propriedade intelectual ao comércio, o que ocorreu a partir da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. Com a crescente necessidade de todos os países fazerem parte do comércio global, quando da adesão dos mesmos à OMC, por tabela levam junto o Acordo TRIPS, sobre propriedade intelectual, que prevê os patamares mínimos de proteção à propriedade intelectual, bem como – e talvez aqui esteja a grande sacada dos países dominantes – sanções por descumprimento das regras. Ou seja, caso algum país não cumpra com o previsto em TRIPS, pode ser acionado perante a OMC e ficar sujeito a sanções e embagos comerciais por parte do país detentor de direitos de propriedade intelectual. Mas não bastassem tais patamares mínimos previstos em TRIPS, países como os Estados Unidos vem exercendo pressão por meio de tratados bilaterais: é muito mais fácil pressionar um único país pobre (ou mesmo rico!) por vez, do que tentar impôr algo a vários países ao mesmo tempo. E tal estratégia tem surtido efeito: temos tratados bilaterais, todos prevendo patamares mais elevados de proteção do que o estabelecido no TRIPS, já fechados entre os EUA e Jordânia, Austrália, Cingapura, Chile e Marrocos, entre outros. Outra forma de pressão política que não pode ser negligenciada são os relatórios do Departamento de Comércio dos EUA, a famosa "priority watch list", que enumera países que estão na lista negra daquele governo, que entende não ter seus direitos de propriedade intelectual devidamente protegidos. No recente relatório anual, de final de abril de 2006, o Brasil é posto no grau máximo de alerta: quem sabe alguma coisa à ver com a iniciativa brasileira na OMPI, para equilibrar o debate?

Prometheus: Como isso pode afetar os países mais pobres?

Pedro Paranaguá: Essa política maximalista afeta não apenas países pobres, mas também países ricos. Relatório de 2005 da Business Software Alliance (BSA), que representa, dentre outras, a Microsoft, relata que empresas do grupo têm sofrido com o sistema de patentes, que vem sendo utilizado de forma a fazer reserva de mercado, ao invés de promover a inovação. Patentes são tidas como instrumentos de pressão e ameaça, ao invés de serem efetivamente exploradas. O que se gasta com litígio poderia ser gasto com pesquisa e desenvolvimento. Mas países pobres sofrem ainda mais, uma vez que royalties pelo uso de propriedade intelectual são enviados aos países ricos aos milhões de dólares, o que cria um grande déficit na balança comercial daqueles. No caso de acesso à informação, educação, medicamentos e conhecimento em geral, países pobres sentem o grande impacto. Preços de livros são exorbitantes, assim como ocorre com preços de medicamentos patenteados ou de software proprietário. Daí uma das grandes vantagens de utilizarmos genéricos (que são exatamente iguais aos produtos patenteados) e softwares livres. No final das contas, por abuso de interesses privados em contrapartida a interesses públicos, o direito de exclusividade de exploração do produto industrial ou da criação intelectual acaba significando não apenas uma exclusividade, mas sim, uma exclusão dos demais, que ficam à margem, sem acesso a conhecimento.

Prometheus: No campo da cultura e da comunicação, quais os maiores prejuízos que podem surgir para a livre expressão e a criação artística?

Pedro Paranaguá: Hoje, caso alguém escreva algo, automaticamente está protegido por direitos autorais – desde que original. Não há necessidade de registro. E os direitos são reservados na sua integralidade. Agora pergunto: protegidos de quem? Parece que somos um bando de bárbaros que, sedentos por cultura e informação, quebramos tudo o que encontramos pela frente de modo que as criações do intelecto têm de ser protegidas e mantidas à distância de nós. No Brasil, caso um livro esteja fora de catálogo, ou seja, não esteja à venda e, portanto, a editora não recebe qualquer remuneração, mesmo assim ninguém poderá fotocopiá-lo. E como fica a função social da propriedade, garantida por nossa Constituição? Na Alemanha não é assim, caso o livro esteja fora de catálogo por 2 anos, pode-se fotocopiá-lo na íntegra. Ou seja, o Brasil não implementou todas as flexibilidades previstas em tratados internacionais. Será a pressão da "priority watch list"? Por exemplo, o Creative Commons, forma de licenciamento de obras, criado pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, e que é representado no Brasil pelo Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, é baseado nos direitos autorais, mas ao invés de "todos os direitos reservados", é um instrumento de "alguns direitos reservados", o que promove a disseminação do conhecimento, através de um maior equilíbrio entre o interesse público e o privado.

Prometheus: O que é a Agenda para o Desenvolvimento e como ela pode contribuir para reverter este cenário?

Pedro Paranaguá: A Agenda para o Desenvolvimento é uma iniciativa de 15 países em desenvolvimento, liderados por Brasil e Argentina, no âmbito da OMPI, para promover a flexibilização no debate sobre propriedade intelectual de forma a trazer equilíbrio entre o interesse público e o privado. A Agenda foi apresentada no final de 2004 e vem sendo discutida de forma calorosa desde então, na OMPI, em Genebra. Agora no final de 2006 ocorrerá a Assembléia Geral da OMPI, momento no qual a Agenda terá seu poder de reversão do cenário testado. Do ponto de vista de êxito de suas várias propostas, tendo a ser relativamente cético, ou melhor, realista: a pressão de grandes corporações, organizadas há décadas, com grande capital e com seus fortes lobbies, tem jogado um balde de água fria nas discussões. Mas uma coisa é certa: apesar do pouco preparo da maioria dos representantes de governos do hemisfério sul, está se formando, ainda que timidamente, uma coalizão de aliados incluindo a academia, organizações não governamentais (ONGs) representantes de consumidores e do interesse público, e mesmo de governos do hemisfério sul. E nesse sentido a Agenda para o Desenvolvimento tem tido um papel crucial.

 

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