Por Guilherme Jeronymo
Jornalista, na formação e nos períodos em que trabalhou na Folha de São Paulo, no Jornal do Brasil e no Jornal dos Sports, Sérgio Sá Leitão enveredou pelos caminhos da gestão em cultura, com pós-graduação em Políticas Públicas (USP) e Marketing (Ibmec). Desde então foi, entre 2003 e 2006, Chefe de Gabinete do Ministro da Cultura e Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, onde coordenou programas como o Música do Brasil, CulturaPrev e os programas de Economia da Cultura.
Hoje, aos 40 anos, é Assessor da Presidência do BNDES, cargo que ocupa desde maio de 2006, onde foi um dos responsáveis pela criação do Departamento de Economia da Cultura e do Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual, atividades que divide com a cadeira de professor da Pós-Graduação em Gestão Cultural da Universidade Cândido Mendes e de membro do Conselho Consultivo dos Projetos Setoriais de Exportação de Artes Visuais e Produção Independente de TV, da Apex, além de produzir vídeos e de ter publicado cinco livros.
Na entrevista que nos cedeu, o assessor apresenta os mecanismos de fomento e investimento do BNDES em cultura, fala sobre os programas e a estrutura do Departamento de Economia da Cultura, contextualiza as políticas públicas voltadas para a “economia da cultura” e a importância do setor no mundo e para o Brasil, dá direções de quais serão as posturas da gestão de Luciano Coutinho para a área, fala do potencial não explorado do Brasil nessa economia da criatividade e da inovação e dá pinceladas na participação do banco em programas de fomento à radiodifusão comercial e pública e à TV Digital.
CulturaeMercado – Na conjuntura atual, o que podemos considerar “economia da cultura”?
Sérgio Sá Leitão – Do ponto de vista da economia, a expressão “economia da cultura” identifica o conjunto de atividades econômicas relacionadas à cultura, incluindo a criação e o fazer cultural. Do ponto de vista da cultura, o conjunto das atividades culturais que têm algum impacto econômico. Pode-se incluir neste conjunto qualquer prática direta ou indiretamente cultural que gere valor econômico, além do valor cultural. A economia é, portanto, uma das dimensões da cultura. E a “economia da cultura” constitui um campo da economia. As atividades geradoras de valor econômico deste “setor cultural e criativo” são as que constituem o campo da “economia da cultura” e influenciam outros setores, como os de ciência e tecnologia e de eletro-eletrônicos.
Quais são as principais características deste “setor cultural e criativo”?
Pesquisas recentes indicam que a “economia da cultura” é, atualmente, o setor que mais cresce, gera renda, exporta e emprega, e o que melhor remunera. É ainda o que mais impacta outros setores igualmente vitais. E produz maior valor adicionado. Está baseado no uso de recursos inesgotáveis (como a criatividade) e consome cada vez menos recursos naturais esgotáveis. Apresenta um uso intenso de inovações e impacta o desenvolvimento de novas tecnologias. Finalmente, seus produtos geram bem-estar, estimulam a formação do capital humano e reforçam os vínculos sociais e a identidade.
Este campo inclui apenas as indústrias culturais?
As indústrias culturais e seus serviços derivados são a vitrine deste campo. Refiro-me à indústria editorial, à indústria do audiovisual e à indústria da música, entre outras. Tais setores estruturam-se como cadeias produtivas. Basicamente, dizem respeito à criação, produção, distribuição e consumo de conteúdos e experiências culturais. Mas há também as atividades econômicas relacionadas à cultura que se estruturam como arranjos ou sistemas produtivos locais. E as de caráter individual, associativo e institucional. Além do setor industrial da cultura, que inclui os segmentos do audiovisual, da música e da publicação de livros, entre outros, o estudo inclui, no campo da “economia da cultura”, a indústria da mídia (imprensa, rádio e TV), o campo criativo (moda, arquitetura, publicidade, design gráfico, design de produtos e design de interiores), o turismo cultural e as expressões artísticas e instituições culturais (artes cênicas, artes visuais, cultura popular, patrimônio material, museus, arquivos, bibliotecas, eventos, festas e exposições).
Qual é o tamanho da “economia da cultura” no mundo?
Segundo o “Global Entertainment & Media Outlook 2006-2010”, da Price Waterhouse Coopers, o setor passará de US$ 1,3 tri em 2005 a US$ 1,8 tri em 2010, crescendo 6,6% ao ano, bem acima da média da economia mundial (5%). Na América Latina, espera-se um crescimento anual médio de 8,5%, com o mercado passando de US$ 40 bi em 2005 para US$ 60 bi em 2010.
Qual é a importância da “economia da cultura” para a geração de renda no país atualmente?
O Brasil tem o maior potencial de crescimento no continente, por dois fatores: mercado interno expressivo e a riqueza e a diversidade da nossa cultura. Deve-se tratar de “economia da cultura” no Brasil pensando não apenas na situação existente, mas, sobretudo, no potencial não-realizado, assim como nas oportunidades que se colocam. De acordo com o “Sistema de Informações e Indicadores Culturais” (IBGE/MinC, 2006), o “setor cultural e criativo” respondia em 2003 por 5,7% dos empregos formais, 6,2% do número de empresas, 6% do valor adicionado geral e 4,4% das despesas médias das famílias. Estima-se que a participação no PIB seja de 5%.
Por que a “economia da cultura” é um setor estratégico para o país?
A “economia da cultura” é um novo front de desenvolvimento, por sua grande capacidade de geração de renda e emprego, por seu impacto na formação do capital humano e no desenvolvimento de novas tecnologias, e por seus efeitos sociais positivos. O crescimento do setor no Brasil tem sido muito expressivo, mesmo que os valores absolutos ainda sejam modestos, se comparados aos que se verificam nos países desenvolvidos. Segundo a Price Waterhouse Coopers, a “economia da cultura” no Brasil passou de US$ 11,548 bi em 2001 para US$ 14,648 bi em 2005. O estudo projeta que o setor atingirá a marca de US$ 21,917 bi em 2010, com uma taxa de crescimento anual estimada em 8,4%, ou quase o dobro da estimativa de crescimento do PIB brasileiro.
E como estimular o desenvolvimento da “economia da cultura” no Brasil?
O poder público já acordou para a “economia da cultura” e o que ela pode representar em termos de desenvolvimento. Em 2005, coordenei no MinC a formulação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec), que a partir de 2006 passou a integrar o Plano Plurianual e ganhou recursos próprios. Entre as ações desenvolvidas destaca-se o apoio aos Programas de Exportação de Música, Cinema e Produção Independente de TV, realizados em parceria com a Apex, o Sebrae e entidades setoriais. O ministro Gilberto Gil tem sido um apóstolo desta causa, e há cada vez mais adeptos.
E o que o BNDES pode fazer nesta área?
O BNDES criou em junho de 2006 o Departamento de Economia da Cultura, a partir de uma proposta que apresentei quando fui convidado a trabalhar na Assessoria da Presidência. Cerca de cinco meses depois, lançamos o Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual (Procult/Audiovisual), orçado em R$ 175 milhões. Antes, em 2004, o BNDES havia criado duas linhas de crédito, uma para salas de cinema e outra para edição de livros, a partir de um processo de diálogo com o MinC do qual tive a felicidade de participar, ao lado de Leopoldo Nunes, Mário Diamante e Galeno Amorim. Tais linhas foram fundamentais para produzir massa crítica interna e abrir caminho para o Decult.
Quase um ano depois, pode-se dizer que o Departamento de Economia da Cultura esteja maduro para atender aos objetivos do BNDES e às demandas do setor?
Penso que o Decult apresenta um desempenho significativo, graças ao empenho e à qualidade de sua pequena equipe, e ao respaldo da Diretoria e da Presidência. O BNDES aprovou em fevereiro um financiamento de R$ 7 milhões para a construção, em São Paulo, de um complexo de estúdios e serviços voltado à produção de filmes, séries de TV e outros conteúdos audiovisuais. Foi a primeira operação do Decult. Na semana passada, aprovamos a segunda, no valor de R$ 2 milhões, para a construção de seis salas de cinema em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde há claramente uma reduzida oferta de lazer. Além do financiamento aos projetos da Quanta e da CineSystem, há mais 20 operações em análise. A performance inicial indica que o BNDES acertou ao apostar no potencial de expansão do setor e tomar medidas relativamente ousadas, como a criação de um departamento exclusivo e a adaptação de suas regras gerais às peculiaridades deste mercado. A tarefa não é simples, pois trata-se de uma iniciativa nova; e o setor, embora emergente, ainda demonstra elevada dependência de incentivos e baixa capacitação.
Que mecanismos de financiamento foram criados a partir do Decult, e qual sua importância política para as cadeias produtivas da cultura?
Há dois programas em andamento: o Procult/Audiovisual e o Protvd/Conteúdo. O primeiro reúne linhas de crédito para empresas de produção, comercialização, exibição e infra-estrutura de audiovisual. O patamar para operações diretas é R$ 1 milhão; os juros variam de 1,8% a 3,8% ao ano + TJLP (hoje em 6,5% ao ano). O objetivo central do BNDES é fazer com que pequenas, médias e grandes empresas da cultura usem seus mecanismos de estímulo ao crescimento, já disponíveis para outros setores da economia. O Decult pode usar outros mecanismos? O BNDES lida basicamente com quatro mecanismos: crédito de longo prazo a juros baixos, participação no capital de empresas, investimento de risco através de fundos, como os Funcines, e crédito de curto e médio prazos para aquisição de bens de produção (Cartão BNDES). Este é o “arsenal” do Decult. Para usar este arsenal, o primeiro desafio do departamento era compreender as singularidades da “economia da cultura” e adaptar as regras da nossa política operacional para que os programas voltados ao “setor cultural e criativo” tivessem efetividade. O segundo era ter uma postura ativa, ir ao mercado divulgar as linhas e prospectar operações. Foi o que fizemos nos últimos meses, e os resultados estão aparecendo aos poucos.
O Decult vai ficar apenas no segmento do audiovisual?
O Decult está atualmente analisando várias operações de crédito no âmbito do Procult, investirá em novos fundos devotados à indústria do audiovisual, como o Funcine RB 1, da Rio Bravo, e tem procurado estimular o uso do Cartão BNDES. Sua próxima tarefa será a formulação de um programa para a cadeia da música, com meta análoga à do audiovisual: apoiar a expansão das empresas do setor, elevando sua capacidade de gerar renda, emprego e inclusão ao consumo. O Procult/Audiovisual, por sua vez, será aperfeiçoado, em especial no que diz respeito à produção. É preciso flexibilizar ainda mais as garantias, incluindo a precificação de obras, e encarar o risco, desde que haja confiança no projeto e na empresa. A opção pelo audiovisual foi uma questão de estratégia. Vamos avançar.
E o Protvd?
O Decult também é o responsável por analisar operações de conteúdo no âmbito do Programa de Apoio à Implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (Protvd), criado para apoiar, via financiamento ou participação acionária, a implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). O Protvd contempla fornecedores de infra-estrutura e radiodifusores, que podem financiar hardware/software e produção de conteúdo e está orçado em R$ 1 bilhão. É importante frisar que o spread é menor caso a empresa de radiodifusão compre produção independente.
Além do projeto do SBT, há outros empréstimos para radiodifusoras comerciais sendo avaliados?
O SBT foi a primeira empresa de radiodifusão a submeter um projeto no âmbito do Protvd. Mas este projeto, até agora, diz respeito à migração de infra-estrutura. Está, portanto, sob análise do Departamento de Telecomunicações. O Decult já recebeu uma consulta preliminar sobre o Protvd/Conteúdo. Espero que prospere. Penso, porém, que a TV digital vai além da radiodifusão. Vista sob um prisma mais amplo, ela abre um vasto horizonte para a produção e o consumo de conteúdos audiovisuais. Pode-se falar em TV na Internet e no celular. O Procult foi pensado para lidar com este novo cenário.
Como é a estrutura do Decult?
O Decult tem duas gerências. Uma, que já existia previamente, ligada ao Departamento de Comunicação, lida com patrocínio a projetos culturais, através das leis de incentivo ou de recursos próprios. Esta gerência cuida do Programa de Apoio à Revitalização do Patrimônio Histórico e Arqueológico, do Programa de Apoio a Projetos de Preservação de Acervos, do Projeto Quintas no BNDES e do Programa de Apoio à Produção de Filmes de Longa-Metragem. A outra gerência, criada há pouco, é a de investimentos, que cuida do Procult, do Protvd/Conteúdo e dos Funcines, entre outros instrumentos. O Decult também apóia eventos setoriais focados em negócios, reflexão e capacitação.
O Decult tem, como se vê, uma peculiaridade: a dupla função de patrocinador, ligado ao marketing, e de banco de fomento, através de diversas ferramentas como empréstimos a juros baixos. Por que tratar essas duas vertentes do financiamento à atividade cultural juntas?
Penso que as funções de patrocinador e financiador podem e devem ser complementares. Tanto que o Decult está estudando agora a possibilidade de combinar recursos reembolsáveis (próprios) e não-reembolsáveis (através das leis de incentivo), de modo a viabilizar operações que não comportem o uso exclusivo de financiamento. O principal papel que o BNDES pode desempenhar é o de apoiar o desenvolvimento da “economia da cultura”. E setor algum se desenvolve apenas com incentivo fiscal. De qualquer modo, é preciso dizer que a dimensão do marketing jamais foi prioritária para o BNDES.
O patrocínio pode ser um fator de desenvolvimento?
A atuação do poder público na área da cultura baseou-se, historicamente, num sistema de financiamento que destina apenas recursos não-reembolsáveis, oriundos de orçamento ou de renúncia fiscal, a projetos culturais. Este sistema mostrou-se adequado para viabilizar uma parte da nossa produção cultural, mas insuficiente para estimular de modo sustentável o desenvolvimento das indústrias culturais brasileiras (e também a necessária expansão do consumo). Penso que o BNDES está ajudando a suprir uma lacuna.
Como medir o retorno de um investimento em cultura? É possível pensar além dos ganhos intangíveis, como diversidade cultural, ou de ganhos em marketing?
O impacto de um empreendimento cultural pode ser medido de vários modos. Para o BNDES, a questão central é a do desenvolvimento, tanto do setor quanto do país. Além de aspectos próprios de um financiamento, como capacidade de pagamento e histórico de desempenho, o BNDES analisa o que o projeto significa em termos de geração de emprego, renda e inclusão ao consumo. Queremos saber ainda como o projeto contribui para a estruturação de sua cadeia produtiva e se estimula a produtividade e a inovação.
Neste sentido, como vocês consideram a questão da inovação nas cadeias produtivas da cultura? Há alguma mudança com o início da gestão do Luciano Coutinho?
O novo presidente sinalizou claramente em seu discurso de posse a necessidade de o BNDES abordar o conjunto das cadeias produtivas da economia e seus vários elos. Também destacou que é preciso incentivar a internacionalização das empresas brasileiras e a elevação da produtividade, do grau de inovação, do uso de novas tecnologias e do valor adicionado. O crescimento do país ainda se apóia em atividades de baixa produtividade e baixo valor adicionado. É preciso mudar este quadro. A “economia da cultura” é um setor que se caracteriza pelo grande potencial de internacionalização, pela alta produtividade e influência na inovação, e pelo uso intenso de novas tecnologias.
Como ficam as TVs públicas na atual situação? Elas também podem captar recursos nas novas linhas? Em seu discurso no encerramento do Fórum Nacional de TVs Públicas, o presidente Lula colocou a necessidade de participação do BNDES na formação da rede pública, através de um PAC da cultura. Como isso está sendo recebido pelo banco?
O caso da TV pública é diferente do caso da radiodifusão privada. Não creio que uma linha de crédito tradicional faça sentido. É preciso pensar outras formas. Representei o BNDES no Grupo de Financiamento do Fórum de TVs Públicas (leia mais sobre o fórum) e pude estudar o assunto em profundidade. A TV pública deve aproveitar o contexto da migração para rever sua estrutura e seu modelo de gestão, financiamento e programação. Deve abrir-se à produção independente e expandir-se para Internet e celular. A existência de uma TV pública eficiente e contemporânea é chave para a saúde da democracia brasileira. O BNDES está atento e participará do processo. Mas devemos buscar também outras fontes, como os fundos de telecomunicações. Penso que o Procult e o Protvd são um PAC da cultura.
O BNDES tem aumentado sua participação em Funcines. Como funcionam estes mecanismos, e para que tipo de investidores pode ser rentável investir em cultura?
Acho que o momento não poderia ser mais adequado para o capital de risco descobrir a “economia da cultura” no Brasil. As chances de crescimento são claras. Os Funcines tendem a ser o melhor instrumento, no que diz respeito ao audiovisual. Para os investidores, a presença do incentivo fiscal mitiga o risco e potencializa o retorno. Para o setor, a busca do retorno e a gestão profissional são fatores estruturantes. O BNDES está feliz com o Funcine em que investiu e espera apoiar outros. O RB Cinema 1 (veja matéria de Carlos Minuano sobre o fundo) já investiu em oito filmes e na criação de uma distribuidora internacional de filmes brasileiros. Nosso objetivo é consolidar o instrumento e atrair investidores privados e gestores.
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