Entrevista publicada originalmente no portal Cultura e Mercado – www.culturaemercado.com.br
Por Carlos Minuano
O coordenador de políticas digitais do Ministério da Cultura, Cláudio Prado, é uma figura singular. No currículo, uma bagagem musical invejável: já foi produtor de bandas como Mutantes e Novos Baianos e dos festivais de Glastonbury, maior festival de rock do Reino Unido, e de Águas Claras, conhecido como o "Wojosdireitoacotock brasileiro". Quase sempre trajando roupas coloridas, define-se como hippie, reclama da burocracia que, em grande parte, serve à corrupção, e define seu papel dentro do Ministério como de agente da “contracultura”. Ele conta, sem esconder uma pitada de orgulho quixotesco, que faz parte do único governo que possui uma área para tratar exclusivamente dos avanços tecnológicos sob o prisma cultural. Entre as prioridades, acompanhar o avanço dos debates sobre o tema no Brasil e no mundo e avaliar o impacto do amplo espectro digital nas inúmeras esferas que ele atinge.
Um amplo universo também conhecido como ciberespaço, que abrange temas como direito autoral, patentes, distribuição, software livre, entre outros diferentes elementos, todos pressionados a se adaptarem aos novos paradigmas impostos neste começo de século. “Tudo pede novos modelos de negócio, essa é uma discussão trazida pela convergência das tecnologias, mas que também traz a necessidade de unificar as agendas dos diferentes temas tocados pelo digital, que até então caminhavam isoladamente”, defende. Os obstáculos são vários, começam, segundo ele, nas próprias contradições da legislação brasileira. “Há um paradoxo na Constituição que opõe o direito do autor sobre sua produção intelectual e acesso ao conhecimento”.
Pouco antes de embarcar para Brasília, onde participaria do 1º Fórum de TVs públicas, realizado entre 8 e 11 de maio, Cláudio Prado recebeu em seu apartamento em São Paulo, a reportagem do 100Canais (núcleo editorial do Cultura e Mercado) para esta entrevista exclusiva ao Cultura e Mercado. Entre ligações e preparativos para a viagem, falou cerca de uma hora sobre diversos assuntos – sobrou bordoada até para o músico Lobão, que desistiu dos processos que movia contra a gravadora Sony/BMG. Mas, apesar do tom ácido, mostrou-se um otimista visionário declarado: “A internet precipita uma revolução ética, ela foi criada por pessoas que não pensaram no próprio bolso, e sim no avanço da humanidade. Neste cenário, os verdadeiros piratas são as grandes gravadoras”. Leia, a seguir, trechos da entrevista.
Há uma previsão de que o digital acabará com a música, tal qual a conhecemos hoje, você acredita nisso?
Cláudio Prado – O digital nos colocou em uma grande encruzilhada, dizem que ele traz prejuízos, que viabiliza a pirataria, eu discordo frontalmente. Quem afirma isso tem interesse que o modelo analógico continue. O digital sugere novos modelos de negócio. Não faz sentido transportar e distribuir CD em caminhão, quando isso poderia ser feito por meio de um clic. Seria o mesmo que impedir a criação do motor a vapor, porque danaria a vida do construtor de mastros e velas, alegando-se ser pirataria. A história não quer saber dos dramas que o avanço na tecnologia de navegação trouxe aos empresários que detinham modelos antigos, ela diz: dane-se! Se o mundo digital acabará com a música, no formato que a conhecemos hoje, fazer o quê? O problema é que as pessoas estão presas a velhas formas de ganhar dinheiro, isso vale, sobretudo, para os intermediários. O digital elimina os intermediários que não agregam valor. Não faz mais sentido, por exemplo, gravadoras no velho formato que conhecemos. Precisamos de novas intermediações que tornem as minorias possíveis. Em vez de apenas cinco gravadoras, monopolizando o mercado, podemos ter 500 mil selos com uma distribuição de música muito maior.
Você vê algum sinal de mudança de postura por parte da grande indústria fonográfica?
Há uma catástrofe, que eles, obviamente, estão percebendo, mas eu não creio que possuam capacidade de olhar para um novo paradigma. Novas gravadoras que estão surgindo são mais interessantes. Veja o Lobão, por exemplo, que voltou a assinar com a Sony/BMG e anda dizendo que as gravadoras mudaram de mentalidade. Não me parece honesto o que está fazendo agora em relação ao discurso que manteve durante anos, em minha opinião, ele adapta seu discurso às necessidades, está querendo ganhar dinheiro pelo sistema velho, somente isso.
Em relação ao movimento de software livre, você acredita na possibilidade de uma articulação de atores ligados ao Governo Federal para estratégias conjuntas?
Se não for uma ação centralizadora eu acho ótimo, porque o software livre é justamente o fruto de uma ação sem poder central, e um dos pilares de sustentação do novo paradigma do século 21. Isso graças a um maluco, Richard Stallman, que propôs uma coisa que ninguém acreditou, e que, em si, já é o resultado de uma revolução ética, a internet foi pensada para todo mundo e não para enriquecer ninguém. Mas claro que as articulações são necessárias, e mudanças também.
Você esteve presente no 8º Fórum Internacional de Software Livre [Fisl 8.0] (leia aqui), que avanços você destacaria? Houve algum desdobramento importante no âmbito do MinC, por exemplo?
O Fórum de Porto Alegre é interessante, aborda questões relevantes, mas acho que o mundo do software livre corre um sério perigo de tornar-se uma coisa fundamentalista, fechada em si mesmo, olhando para o próprio umbigo, deixando de enxergar seu papel no mundo. Por exemplo, houve, neste evento, uma redução enorme nas discussões culturais e políticas, que são questões fundamentais. O software livre está sujeito a ficar restrito a um grupo de especialistas e, como tal, virar mais um ramo da ciência descontextualizado, que não tem consciência daquilo que está fazendo, quando é justamente a ferramenta necessária para que as pessoas tenham autonomia, liberdade, para inventar, produzir, trabalhar, partilhar novos caminhos e percepções, na direção de mudanças necessárias para o desenvolvimento do planeta.
Com a prevalência do posicionamento do Ministério das Comunicações em relação à digitalização dos meios de comunicação, ainda há espaço para os argumentos do MinC, mais alinhados com a sociedade civil, serem contemplados?
Existe espaço total, o Fórum de TVs Públicas é uma amostra disso. Aliás, ele nasce de lacunas que surgiram no processo de criação da TV digital brasileira que omitiu varias questões em seus debates. Sou um dos representantes do MinC no comitê gestor da TV digital, lá discutimos exaustivamente que modelo de televisão queremos. Afinal, o que é uma TV pública digital? Ela não é uma conseqüência direta e natural da TV analógica, assim como o computador não foi conseqüência da máquina de escrever. Não podemos olhar para TV que existe no ar hoje como se ela fosse continuar a mesma, isso seria retrógrado, seria pensar de uma maneira absolutamente burra. No caso da TV pública, é preciso olhar para as possibilidades de interatividade de comunicação e de regulação da canalização de uma forma totalmente nova, usando as possibilidades que a tecnologia traz para aumentar e democratizar o acesso à informação estabelecendo um novo paradigma nas comunicações e no acesso. É necessário aproximar a televisão e a internet, buscando uma simbiose entre elas. Não há mais razão tecnológica para separar uma coisa da outra. A TV pública precisa ser conjugada com a internet.
Foi criado um grupo pela ONU para trabalhar a questão da regulação da internet. Em que nível encontra-se essa discussão?
Hoje os governos correm para tentar a regulação da internet, invertendo o processo de uma maneira interessante. Antes as coisas existiam, eram reguladas e tornavam-se públicas, agora é o contrário. Mas não vão conseguir, não há como regular a internet. Na realidade, a regulação que precisa haver é a que garanta a liberdade, a autonomia e a neutralidade da rede em relação a governos e corporações. E por trás disso, sou a favor de uma política pública de banda larga, defendida, aliás, pelo MinC, que dê condições de acesso a todos. Outro ponto relevante é o seguinte: não é mais possível discutir o digital localmente, trata-se de uma questão transnacional, só será possível pensar a internet mundialmente, mas acho difícil que isso aconteça no âmbito da ONU, que, obviamente, não tem poderes para isso. É preciso criar uma instância com poderes efetivos, infelizmente isso ainda não me parece próximo.
Qual sua opinião sobre o recente convênio entre a Fapesp e a Microsoft para desenvolvimento de TI?
Um convênio que prevê a obrigatoriedade de patente é uma burrada, retroage em relação àquilo que de mais precioso existe hoje, que é a possibilidade de democratizar acesso à informação. A Fapesp, em tese, deveria priorizar a democratização do conhecimento e não privilegiar aspectos privados de alguma empresa. Não sou contra ganhar dinheiro, mas há outros modelos de negócios que transcendem a idéia da patente, dos modelos fechados, e que partem de novos paradigmas. Temos que nos livrar dos velhos padrões, o século 20 foi um equívoco que deu em um beco sem saída. O século 21 é uma nova história, é o contrário do anterior, que apontava para o fim da vida e do planeta, que nos levou a um mundo que produz três vezes a quantidade de alimentos necessária para alimentar a todos e, no entanto, metade da população passa fome enquanto a outra é obesa. Hoje, a corrupção nos governos e nas corporações é uma constante, podemos praticamente definir o século 20 como um período de engano e mentira que não olhou para nada que não fosse dinheiro. Só poderia dar nisto: em ladrão, pirataria. Na minha concepção, no mundo da música, por exemplo, os piratas são as gravadoras, elas que é que ganham muito dinheiro. Não podemos ficar enroscados nessa idéia de que só a patente oferece garantias ao autor. No caso da medicina e no conhecimento tradicional indígena, sei que há patentes engavetadas de remédios que curam, porque outros que não curam ainda não foram pagos, isso é criminoso.
publicação autorizada, desde que citada a fonte original.
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