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“Para que usar o controle remoto?”

Há pouco mais de oito anos, o jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho está, desde a estreia, à frente do programa VerTV, uma produção da TV Brasil, que discute, com especialistas, os conteúdos apresentados pela televisão brasileira, trazendo uma boa dose de reflexão para os telespectadores.

Pesquisador na área de Políticas da Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Lalo acompanha as tendências e novas abordagens da televisão brasileira. Não é à toa que já escreveu quatro livros sobre a sociedade e a televisão.

Em entrevista à revistapontocom, o apresentador faz uma breve análise da atual programação da televisão brasileira. Na opinião dele, a audiência está mais exigente, mas ainda há muito a se fazer. “Infelizmente o público brasileiro, pela história de nossa TV, dificilmente tem a oportunidade de conhecer outros tipos de programas e programações. Fica difícil para o telespectador exigir níveis melhores de qualidade sem que ele conheça um referencial desse tipo. São várias gerações educadas para acreditar que esse modelo de TV é o único possível de existir”, destaca.

Acompanhe a entrevista:

Na avaliação do senhor, qual é o mérito do VerTV?

Laurindo Lalo Leal Filho – O programa estreou no dia 16 de fevereiro de 2006. Está portanto há mais de oito anos no ar. Acredito que o mérito principal tem sido o de colocar em debate o papel da televisão na sociedade brasileira sobre a qual ela exerce grande influência. Costumo dizer que a TV no Brasil trata, bem ou mal, de uma gama praticamente universalizada de assuntos, só não trata dela mesma. O VerTV procura, na medida do possível, realizar esse trabalho.

E de que forma isso acontece na prática?

L.L.L.F. – O programa procura levar ao público análises críticas sobre a televisão brasileira e, a partir daí, mostra, com exemplos nacionais e internacionais bem sucedidos, que um outro tipo de televisão é possível. Infelizmente o público brasileiro, pela história de nossa TV, dificilmente tem a oportunidade de conhecer outros tipos de programas e programações. Fica difícil para o telespectador exigir níveis melhores de qualidade sem que ele conheça um referencial desse tipo. São várias gerações educadas para acreditar que esse modelo de TV é o único possível de existir. Uma outra contribuição do VerTV para esse debate é dada pela sua reprodução e análise realizadas por professores em diferentes cursos no país. O programa acabou se tornando um importante instrumento didático, utilizado em salas de aula.

O senhor acabou de falar sobre o público que não tem outras referências de TV. Mas o senhor não acha que essa ‘audiência brasileira’ está mais exigente?

L.L.L.F. – Acredito que sim. Já houve momentos piores em nossa TV. Basta lembrar o que ocorria nos auditórios na década de 1990. Nessa época surgiu a Ong Tver e depois a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” como tentativas de enfrentar aquela situação. O próprio programa VerTV é resultado daquele momento. Essas iniciativas contribuíram para ampliar a visão critica da sociedade sobre os produtos oferecidos pela televisão. As coisas mudaram um pouco. Já não se vê, por exemplo, “teste de DNA” nos palcos ou ataques homofóbicos desferidos por apresentadores. Isso não quer dizer que não exista ainda muito a fazer. A exploração da violência como espetáculo segue revelando os níveis ainda rasteiros de nossa TV. Mas creio que o principal fator do aumento das exigências do público esteja sendo o grande crescimento dos níveis de escolaridade registrados no Brasil nos últimos anos. Pessoas mais ilustradas tendem a se tornar mais exigentes em termos de informação e entretenimento, dos quais a TV é parte importante.

E, por outro lado, o senhor acredita que os canais estão mais preocupados em oferecer qualidade?

L.L.L.F. – Isso não. Infelizmente o referencial único dos canais comerciais são os índices de audiência cujo resultado determina a obtenção maior ou menor de receitas publicitárias. Então as mudanças só ocorrem quando o público começa a se afastar deste ou daquele programa. As mudanças são realizadas apenas para fazer com que a audiência não caia. O critério qualidade é secundário.

E o que seria um programa de qualidade?

L.L.L.F. – São programas que despertem o espírito crítico do telespectador. Que elevem a sua sensibilidade em relação ao mundo e à vida. Ou numa síntese feliz de alguns fundadores da televisão pública europeia: que tornem os temas simples respeitáveis e os complexos agradavelmente simples. Vou dar um exemplo de um programa de qualidade que vi há alguns anos na TV Globo: a Paixão de Cristo, encenada pelo Grupo Galpão nas ruas de Ouro Preto. Excepcional. Reuniu a competência técnica da emissora e o alto nível de qualidade artística do grupo teatral mineiro na abordagem de um tema de fácil assimilação para o público. Pena que tenha sido apenas um raro exemplo de qualidade e não uma constante.

O senhor citou uma TV comercial e o seu foco na audiência. E o que dizer dos outros tipos de TVs, a pública e a estatal?

L.L.L.F. – Essa divisão ainda é muito precária. Na verdade nós temos uma televisão comercial hegemônica, ditando os padrões da TV brasileira, ao lado de um grupo pequeno de emissoras estatais e de outro, ainda mais reduzido, de emissoras que podem ser consideradas públicas. A programação das comerciais apresenta padrões muito semelhantes, todas reproduzindo as mesmas formas que consideram eficazes na luta pela audiência. É por isso que torna-se falaciosa a frase “o melhor controle é o controle remoto”. Para quê usar o controle remoto se ao trocar de canal se vê a mesma coisa? Mudam os cenários, os apresentadores, mas os conteúdos são os mesmos. As poucas experiências em busca daqueles padrões de qualidade que mencionei anteriormente vêm das emissoras não comerciais. Experiências que, quase sempre, não têm continuidade pelos eternos problemas de recursos e de gestão.

O que podemos apontar, hoje, como avanços e desafios na TV brasileira?

L.L.L.F. – A diversidade de ofertas através das TVs por assinatura (para uma parcela privilegiada economicamente da população) e da proliferação das antenas parabólicas têm sido fatores positivos na medida em que oferecem a um público maior canais não comerciais, cuja referência principal não é a busca de elevados índices de audiência. Alguns desses canais, dentro de suas limitações, têm oferecido programas de melhor qualidade, inexistentes nas emissoras comerciais. O desafio maior neste momento é aprovar uma Lei de Meios semelhante a que está em vigor na Argentina. É a única forma de ampliar o número de vozes na televisão brasileira, dividindo o espectro eletromagnético em partes iguais para que emissoras públicas, comunitárias e comerciais. Só assim, a riqueza e a diversidade cultural existente no pais poderá ser vista e assimilada por todo o público brasileiro por meio da TV.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada em revistapontocom e reproduzida de Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

Crianças e redes sociais: estudo indica novas relações e desafios

A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de investigação o Orkut e o Facebook.

“Em 2009, meus alunos de seis anos, na classe alfabetização, perguntavam frequentemente se eu tinha Orkut e revelavam, com frequência, novidades sobre seus perfis. Enquanto isso, o grupo de pesquisa do qual faço parte desde 2005, Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, coordenado pela professora Rita Ribes, na UERJ, voltava seu foco de estudos para a relação das crianças com as mídias digitais, oportunizando a sistematização teórica e metodológica das minhas questões nascidas na escola. Buscava entender porque as crianças estavam no Orkut, como acessavam e o que gostavam de fazer nas redes sociais online. Dois anos depois, as crianças migraram para o Facebook e, em pouco tempo, muitas tinham suas primeiras experiências com as redes sociais nele. Por isso, os dois sites foram as principais plataformas de análise”, conta.

Segundo Nélia, o grande desafio foi conseguir construir uma metodologia que não desprezasse a dimensão técnica do fenômeno que pretendia estudar e que conseguisse captar, de alguma forma, a fugacidade das relações online e, em última instância, a dinâmica da cultura contemporânea. “Foi assim que nasceu uma pesquisa online, em que eu conversei com crianças entre oito e onze anos através dos chats, além de observar constantemente todas as atualizações nos perfis infantis”, destaca.

Em entrevista à revistapontocom, Nélia conta detalhes do estudo e suas principais conclusões sobre a relação das crianças com as redes sociais online. “Desejo que a entrevista seja o começo de uma conversa com quem se interesse pelo tema e que traduza também num convite para a leitura da tese”, afirma.

O que leva as crianças a participarem, cada vez mais, das redes sociais?

Nélia Mara – As redes sociais despontam na fase atual da cibercultura como uma potência que inaugura novas experiências nas formas de se relacionar, aprender, conviver, se expressar… Quando me interessei pelo tema, busquei selecionar os sites que as crianças mais acessavam, como forma de conhecer suas experiências e preferências na internet. Queria ir onde elas estivessem. E apesar de, em 2009, época em que surgiram os primeiros movimentos da pesquisa, eu ter conhecido alguns sites de rede social voltados especialmente para crianças, estes não eram sequer citados pelas crianças quando as indagava sobre o que faziam na internet. Talvez esse seja um bom exemplo para pensar que as crianças não vivem num mundo apartado dos adultos, mas estão inseridas na cultura e dela participam ativamente. As crianças querem estar onde todos estão.

Como podemos definir as crianças que participam das redes sociais?

N.M. – São crianças que inauguram experiências que situam a infância em um lugar social inédito na cultura. A pesquisa me permite afirmar que a presença e a participação das crianças nas redes sociais online possibilitam que as vozes das crianças habitem o ciberespaço numa relação de horizontalidade com as vozes dos adultos. Estão todos lá, convivendo, interagindo, comunicando. Isto quer dizer que a possibilidade de as crianças serem emissoras de conteúdo guarda uma potência que liberta a infância dos estatutos modernos calcados na ideia de menoridade e inferiorização em relação ao adulto. São crianças que burlam os protocolos dos sites – que é bom lembrar, ostentam uma proibição hipócrita, visto que atraem as crianças de forma velada –, criam e se apropriam cada vez mais de novas linguagens, novas formas de ser criança e de viver a infância. Para essas crianças, as redes sociais representam hoje, sobretudo, novas formas de interação e sociabilização. Elas jogam, brincam, conversam, assistem a vídeos, produzem vídeos, se informam, aprendem coisas novas, consomem. No entanto, é importante não perder de vista que a cibercultura, essa cultura em rede que vivemos hoje, nos afeta não só materialmente, mas, sobretudo, simbolicamente. Está em jogo a produção de novas linguagens, subjetividades, de novas formas de aprender, de se relacionar, novas relações com o tempo e com o espaço, o que é também vivido por quem não tem, necessariamente, um perfil no Facebook.

São grandes as diferenças de formação, oportunidade, experiência e conhecimento entre crianças que acessam e as que não acessam as redes?

N.M. – Pesquisas oficiais de cunho quantitativo sobre crianças e internet, como as realizadas pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC) em todo o território nacional, têm demonstrado o quanto a condição socioeconômica é fator que determina o acesso à internet, a frequência com que ocorre, bem como a posse de aparatos técnicos. Renda familiar, classe social e região do país – dada desigualdade no investimento das condições técnicas para a distribuição da conexão, se compararmos os dados da região norte com a sudeste, por exemplo – são elementos que interferem de maneira decisiva para a participação das crianças nas redes sociais. No caso específico da pesquisa que realizei, é importante dizer que não se adotou um recorte de classe, pois se buscou, inicialmente, dialogar com crianças que já possuíam perfis em sites de redes sociais e, num segundo momento, crianças que fizessem parte da minha rede de contatos. Dito isto, a pesquisa que realizei não se debruçou sobre um estudo comparativo entre as crianças que têm acesso e as que não têm. No entanto, se aceitamos a ideia de que a cibercultura nos afeta simbolicamente, a questão se complexifica e exige aprofundamento. Mas é inegável que a oportunidade de entrar em contato com o mundo através do seu próprio celular posiciona a criança no mundo de maneira diferente daquela que, sequer, tem o que comer. São, sem dúvida, experiências de infância distintas qualitativamente. Penso que autonomia e criatividade estão no centro da participação nas redes sociais online. Inclusive, as crianças precisam, muitas vezes, criar datas de nascimento fictícias para terem acesso a uma conta no site. Precisam criar um perfil com inúmeras informações sobre si. O próprio ato de apenas “curtir”, no Facebook, alguma postagem, já evidencia uma expressão. Solidariedade e ética são noções por demais subjetivas para serem definidas aqui como algo propiciado pelas redes sociais. As crianças que estão nas redes sociais estão em diálogo com o mundo – elas têm acesso à informação, são encorajadas a se mostrar, a emitir opiniões, a compartilhar o que gostam, a conversar. Mas a formação se dá a todo momento: para a leitura, para a escrita, para a relação com o outro, para a construção da própria identidade, para a construção das noções de privacidade, formação para o consumo… Por isso, ao mesmo tempo em que é indiscutível reconhecer a centralidade que ocupam hoje as redes sociais na vida de muitas crianças, é indispensável pensar em formas articuladas de oferecer uma mediação que possam amplificar e qualificar todas estas fontes de in(formação).

Quando falamos de mediação pensamos no papel dos adultos. As crianças estão sozinhas na rede?

N.M. – Não, elas não estão sozinhas, ainda que acessem a internet sem ninguém por perto fisicamente. Penso que o grande desafio, hoje, para pais, professores e pesquisadores é pensar em novas formas de mediação online. Dado o caráter diferenciado das tecnologias digitais, a mediação não pode ser pensada sobre as mesmas bases, já consolidadas, das mídias eletrônicas. A mobilidade, por exemplo, é uma realidade e uma tendência também entre as crianças, já que a miniaturização dos aparelhos produz também condições para um uso mais individualizado. Se, por um lado, a impossibilidade de acompanhar fisicamente os acessos das crianças à rede pode sugerir menos possibilidade de acompanhamento dos adultos ao que as crianças acessam, há que se compreender que, online, as crianças nunca estão sozinhas. Estar nas redes sociais pressupõe estar em diálogo com alguém, seja um amigo, um familiar, um estranho ou mesmo uma empresa. O “estar com” é a essência do “estar em rede”. Por isso, friso, nosso papel enquanto adultos é buscar o diálogo com as crianças também online, fazendo-se presente também nas redes sociais. Há responsáveis que, sim, marcam sua presença de diferentes formas nos perfis de seus filhos; outros não. Há uma diversidade nas formas como a permissão do acesso às redes sociais acontece nas casas das crianças: há pais que criam os perfis dos filhos, incentivando que coexistam em rede; também há filhos que criam contas para seus pais, em busca de “atualizá-los”. Há famílias, por exemplo, que impõem uma idade mínima para que a criança conquiste o direito de estar numa rede social online, entendendo que é preciso crescer para ganhar novas responsabilidades, mesmo que não seja uma idade inferior à recomendada por sites como o Facebook ou o Orkut. Há pais que usam seus perfis com os filhos, um uso compartilhado. Em outros casos, e aqui já me posiciono como forma de dizer que penso ser a postura mais interessante, cada indivíduo da família possui um perfil, mas os pais e demais adultos interagem online com a criança frequentemente, além de conversarem em casa sobre o assunto. É uma forma de estar junto em rede, de acompanhar o que a criança faz, com quem interage, o que comunica, mas permitindo que ela tenha seu espaço, que ela construa seu perfil com suas características, preferências, fotos que gosta, podendo expressar a singularidade da sua identidade na internet.

E quanto à escola?

N.M. – A escola, de maneira geral, ainda não consegue ocupar o espaço de quem pode e deve colocar esse assunto como questão curricular porque ainda se baseia na lógica da vigilância, da proibição ou mesmo da didatização das tecnologias sob um viés, algumas vezes, empobrecedor e distante dos usos que as crianças fazem fora das salas de aula. Há instituições que, inclusive, proíbem o uso de aparelhos em suas dependências, parecendo fechar-se a uma realidade que está posta. Em paralelo, crianças postam, em seus perfis, fotos na escola em tempo real, o que denuncia que, a despeito de normas meramente burocráticas, as crianças estão em rede, se conectam de seus dispositivos móveis e, na maioria das vezes, a escola não se oferece para o diálogo.

E ao contrário do que se pensa, as crianças têm conhecimento dos perigos da internet, não é isso?

N.M. – As crianças demonstram ter muita informação sobre os perigos a que, possivelmente, estamos todos expostos na internet e nas redes sociais. Essas informações e ressalvas chegam de variadas fontes: a família conversa e instrui, a televisão noticia casos variados sobre o assunto e, mais timidamente, mas progressivamente, a escola também vai se envolvendo neste debate, ainda que o uso de sites de redes sociais seja comumente proibido em seus espaços. As crianças mostraram que elegem critérios para aceitar ou recusar pedidos de amizade e eu fui, inclusive, recusada por muitas quando busquei realizar a pesquisa com crianças indicadas por amigos, desconhecidas para mim. As recusas me obrigaram a redesenhar os critérios de escolha dos interlocutores e foram fundamentais no percurso da pesquisa. Ao longo do processo, também me dei conta, em diálogo com outras pesquisas a que fui tendo acesso, que as redes sociais são espaços de encontro entre pessoas que têm ou já tiveram algum tipo de relação face a face. Assim, sob esta lógica, as recomendações dos pais aos filhos sobre os perigos de dar atenção a pessoas estranhas é incorporada também para a vida online. É possível que esta constatação na minha tese, que nem sempre emerge em outros estudos, tenha a ver com a abordagem teórico-metodológica que adotei na pesquisa. A minha premissa foi de que as crianças estão de forma ativa e autônoma nos sites de redes sociais e me interessou ver o que fazem, como usam, por que usam e, em última instância, o que comunicam sobre suas experiências quando estão em rede, enquanto sujeitos criativos e produtores de cultura que são. Há outros estudos que, embora se detenham em temática similar, se fundamentam em concepções de infância que remetem aos pilares modernos de vulnerabilidade, inabilidade e menoridade, já elencando como premissa que há perigos, há uma proibição burocrática e, portanto, as crianças não deveriam estar lá. Penso que falamos, portanto, de lugares distintos; logo, nos posicionamos de formas diferentes em relação às crianças e às experiências de infância, conduzindo as pesquisas por caminhos que, nem sempre, se encontram. É preciso enfatizar aqui que reconhecer que as crianças entendem os perigos a que estamos expostos na internet não representa ignorar a importância do adulto no que diz respeito ao seu papel de proteção da criança. Friso que é fundamental que o adulto assuma o seu lugar de quem se oferece ao diálogo e aponta o caminho seguro. No entanto, me preocupa observar como essa relação se traveste, muitas vezes, em controle e vigilância por parte dos pais. Se é certo admitir que estamos todos, adultos e crianças, aprendendo a viver em rede, também é preciso compreender que a produção compartilhada de sentidos sobre o que nos desafia é um processo que se dá em diálogo.

A participação de crianças e adultos no ambiente online vem estabelecendo um novo tipo de relacionamento?

N.M. – Essa pergunta conduz ao debate pertinente em torno da questão geracional que marca os estudos sobre crianças e tecnologias digitais. Quando nos espantamos com a intimidade dos bebês com um tablet nas mãos, evidenciamos que a questão geracional está posta. Mas é importante não perder de vista que a relação com as mídias sempre esteve atravessada por essa tensão. O que parece complexificar a questão no contexto cibercultura é que a velocidade das transformações e a obsolescência como marca dessa era nos coloca, enquanto adultos, num lugar frágil de quem também se vê inseguro e rendido pelas constantes novidades, tão bem recebidas e incorporadas pelas crianças. Elas lidam com os aparatos de forma lúdica, criativa e desbravadora, enquanto o adulto, com um olhar mais cristalizado para a realidade, se relaciona de forma menos espontânea. Mas, se as redes sociais podem ser concebidas como lugares de encontro, podemos percebê-las na potência do encontro entre adultos e crianças, e não como algo que produz algum tipo de impacto negativo, ou que gera um abismo geracional.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada na revistapontocom e reproduzida do Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

“Ainda não temos um protagonismo da sociedade dentro da EBC nem do Conselho”

O Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) decidiu no dia 13 de novembro reconduzir à presidência do órgão a conselheira Ana Fleck, representante do Congresso Nacional, de onde é funcionária de carreira. Nomeada em agosto de 2008, Fleck preside o Conselho desde dezembro de 2011. Confira abaixo a entrevista que o Observatório do Direito à Comunicação fez com ela.

-Você acompanha o Conselho como representante do Senado e, nos últimos dois anos, como presidente do órgão. Viu boa parte da sua trajetória. O que considera os principais temas que o Conselho enfrentou?
De maneira específica, posso citar alguns assuntos que foram bandeiras levantadas por nós – algumas delas resultaram em resoluções, motivaram Roteiros de Debates e levaram a Empresa a mudar procedimentos, outras, foram apenas alvo de debates constantes durante as reuniões do pleno, o que, por si só, já contribui para a tomada de decisões por parte da Diretoria. São elas: a programação religiosa; o Jornalismo da EBC; a autonomia da Empresa frente ao Governo; os mecanismos de medição da audiência; a regionalização dos conteúdos; a capacitação dos funcionários da casa; a programação infantojuvenil; as fontes de financiamento da EBC; a melhoria da qualidade de transmissão da TV Brasil e o espaço da emissora no Operador Nacional de Rede. Além disso, acredito que o modelo de escolha de conselheiros representantes da sociedade civil e as formas de participação da sociedade dentro do colegiado são temas recorrentes e uma preocupação importante do órgão.

-Você considera que o Conselho se transformou nesse período? Como?
Com o passar do tempo, o papel do Conselho está ficando mais claro para a Empresa, para a sociedade e para os próprios conselheiros. Essa definição tornou a atuação do colegiado mais qualificada e nossas resoluções, cada vez mais, eficientes, gerando resultados práticos na programação dos veículos da EBC. Hoje, o Conselho é uma instância mais consolidada e influente do que na sua criação, com certeza. Com isso, passamos a ser mais cobrados pela sociedade civil, que enxergou no Conselho uma possibilidade de diálogo com a EBC – o que ele realmente o é. Isso se refletiu na entrada de conselheiros indicados diretamente pela sociedade e numa nova dinâmica que eles trouxeram para o colegiado, cada vez mais preocupado em ser aberto e participativo.
 
-Pode-se dizer que o Conselho ainda tem dificuldades para ampliar a dinâmica de participação democrática? Lembro que a primeira audiência pública somente aconteceu 18 meses depois de criado o conselho.
Sendo sincera, acho que ainda não temos um protagonismo da sociedade dentro da EBC nem do Conselho, mas essa é nossa luta constante. Temos instrumentos que mostram essa priorização, como as Audiências e Consultas Públicas, os Roteiros de Debates, as reuniões abertas de Câmaras Temáticas e outros. Mas isso, por si só, não garante que eles sejam efetivos – nosso trabalho é levar o Conselho para a sociedade e estimular a participação. Esse é um esforço principalmente em um país onde as pessoas ainda não entenderam o que é a comunicação pública. Nosso compromisso é continuar em busca do mecanismo mais efetivo de participação, por isso, inclusive, a Consulta Pública sobre o modelo de escolha de novos conselheiros. Tudo que fazemos visa isso.
 
-Além dos temas referentes à produção de comunicação pública, o Conselho discute o seu próprio funcionamento. Não seria melhor o Conselho reduzir o grau de interferência que tem na nomeação dos novos conselheiros, limitando-se a coordenar um colégio eleitoral e sugerir diretrizes aos eleitores a partir da reflexão que faz?
Essa questão está sendo objeto de análise do Conselho nesse momento, como você sabe. Não cabe a mim, como presidenta, apresentar conclusões antes que o colegiado tome uma decisão sobre o melhor modelo de escolha de novos conselheiros. A proposta apresentada na sua pergunta é apenas uma das contribuições que recebemos da sociedade civil, portanto, a definição será coletiva, tomada a partir da maioria absoluta dos votos do pleno, e acontecerá – provavelmente – em nossa próxima reunião, no dia 11 de dezembro.

-O Conselho tem conseguido garantir de forma efetiva o pluralismo regional, de gênero, étnico-racial e os demais, representando diversos interesses da sociedade brasileira?
Ainda não, mas creio que vamos avançar nisso com a entrada dos novos cinco conselheiros, no próximo ano. Alguns pontos foram consenso durante a discussão sobre o modelo de escolha e, de alguma forma deverão estar presentes no próximo edital, são eles: a necessidade de se garantir, entre os conselheiros, representação regional, de pessoas com deficiência, jovens e indígenas, além de alcançar a equidade de gênero e praticar uma política afirmativa para afrodescendentes.  

-O Conselho consegue de fato interferir no funcionamento da EBC? Como? Tem alguns exemplos?
Bom, o papel do Conselho não é interferir diretamente no funcionamento da EBC, mas sim, dar diretrizes para o conteúdo que é produzido por ela. Nesse sentido, embora medidas administrativas impactem o que vai ao ar, não é responsabilidade direta do Conselho determinar essa ou aquela compra de conteúdos ou o enfoque de uma matéria, ou até mesmo a contratação de um apresentador, por exemplo – quem deve responder por isso frente a sociedade é a Diretoria da Empresa. Mas é de responsabilidade do Conselho, novamente usando um exemplo, dizer que o respeito à diversidade deve estar presente em todas as produções da EBC e fiscalizar isso. Essa orientação e controle já geraram resultados práticos sim, como a implantação da Faixa da Diversidade Religiosa, o lançamento do Manual de Jornalismo da EBC e outras medidas que foram soluções da Empresa para as demandas levantadas pelo Conselho.

 -Qual o desafio principal da presidenta do Conselho ao ocupar essa posição?
Acredito que é mediar os anseios do Conselho Curador, e da sociedade que este representa, junto à Diretoria da Empresa, além de articular essas demandas nos Planos de Trabalho que a EBC apresenta anualmente ao colegiado.

-Você está sendo reconduzida ao cargo de presidência. Mesmo diante da comprovada competência e do bom desempenho, não é salutar que haja um revezamento nas posições de direção?
Sim, acredito que toda alternância de governo é saudável. O Conselho entende isso e é por esse motivo que nosso Regimento Interno permite a reeleição de seu presidente apenas uma vez.

-Qual a dinâmica existente entre o Conselho Curador e o de Administração, no qual não existe representação da sociedade civil?
Hoje essa dinâmica entre os conselhos não está sistematizada, mas percebemos a necessidade de convergir nossas agendas, pois, de fato, existem demandas que perpassam a atuação tanto do Conselho Curador quanto do Conselho de Administração, que seriam otimizadas se nosso diálogo fosse maior.

“Governo está em dívida com a sociedade”

O PT manifestou no início de março apoio ao Projeto de Lei de Iniciativa Popular para um novo marco regulatório das comunicações, capitaneado pelo FNDC. Em entrevista, o presidente do partido, Rui Falcão, lembra que a regulação foi resolução de conferência nacional e que discutir o marco regulatório representa ampliar a democracia. Para ele, o governo tem uma dívida com a sociedade.

Logo após a divulgação, no início de março, da nota pública do Partido dos Trabalhadores (PT) intitulada “Democratização da mídia é urgente e inadiável”, os veículos que compõem o monopólio da comunicação no Brasil trataram a iniciativa do partido como censura. Em entrevista ao FNDC, o presidente do partido, Rui Falcão, destaca que discutir o marco regulatório representa exatamente o contrário: ampliar a democracia. Para ele, o governo mantém uma dívida com a sociedade ao não adotar a regulação definida pela Conferência Nacional de Comunicação (Confecom).

O presidente do partido destacou, ainda, que a legenda pede o cumprimento dos artigos da Constituição que proíbem a existência de monopólios e oligopólios e a aplicação da complementaridade, ou a convivência de três tipos de sistema de comunicação.

Para Falcão, a resistência à regulamentação será vencida por meio da formação do conjunto da sociedade sobre o tema, e que as ações dos movimentos sociais pela democratização da comunicação devem dialogar com a população e conseguir assinaturas para o projeto de Lei de Iniciativa Popular – esclarecendo a opinião pública sobre as mudanças “difíceis”, pois “mexem com interesses poderosíssimos e que hoje estão interditando o debate político mais livre na sociedade”.

Leia abaixo a entrevista.

FNDC – Por que precisamos de um novo marco regulatório no Brasil?
Rui Falcão –
Todos os países têm algum tipo de regulação sobre os meios eletrônicos e não é cerceamento, ao contrário, procuram corresponder ao fato de que o direito à informação, à liberdade de expressão, é também um direito individual. Mas, com os meios modernos de comunicação, com a convergência das mídias, cada vez mais esse direito é interativo, coletivo e social. É preciso que o Estado, em nome da sociedade, fixe parâmetros e regras que não implicam a restrição de conteúdo, mas normas de funcionamento para esses meios, que são cada vez mais poderosos, formam opiniões e difundem interesses. Em todos os países há alguma regulamentação para os meios eletrônicos.

No Brasil, a Constituição fixou algumas regras para os meios de comunicação: os artigos 220, 221,222 e 223. O que temos defendido é que o marco regulatório deve se restringir ao que está escrito na Constituição e carece de regulamentação. Sei que na sociedade há propostas que extravasam isso. Esse debate foi feito na Conferência Nacional de Comunicação, que estabeleceu uma série de compromissos para o governo, você tinha a Lei de Imprensa, de 1969, que foi derrubada pelo Supremo, tem o Código Brasileiro de Telecomunicações, que já completou mais de 50 anos e é de uma época em que não havia nem internet. Até para atualizar a legislação você precisaria de um marco regulatório.

FNDC – O que o PT defende na prática?
Rui Falcão –
Primeiro, que se cumpram os artigos da Constituição que proíbem a existência de monopólios e oligopólios e a aplicação da complementaridade, a convivência de três tipos de sistema de comunicação: o privado, que predomina no Brasil e não vai ser desapropriado, nem seus conteúdos serão cerceados; o estatal e o setor público, que também deveria conviver nessa tríade. É preciso estimular o surgimento de um setor público, ter novas normas e leis que protejam as rádios comunitárias para que não aconteça como atualmente, em que boa parte funciona ilegalmente. A própria normatização das TVs abertas exige um percentual de conteúdo nacional e, para isso, precisa produzir um conteúdo que atenda à complexidade do país, as culturas, os sotaques.

Com relação à mídia impressa, não há nenhuma interferência do marco regulatório, a não ser a discussão se é necessário ou não uma lei específica para o direito de resposta, que não tem relação direta com o marco regulatório. A revogação da Lei de Imprensa deixou um vazio jurídico. Pessoalmente, entendo que deveríamos ter uma lei específica que não jogasse sobre o jornalista e sim sobre as empresas a responsabilidade sobre reparações financeiras. Também seria importante os jornalistas apoiarem esse movimento, que significa mais empregos e melhores condições de trabalho e permitiria estabelecermos um código de ética que fosse aceito nas empresas com direito de objeção de consciência – o jornalista não ser obrigado a fazer determinadas matérias que violem suas convicções.

E é importante enfatizar cada vez mais que isso não diz respeito a nenhum cerceamento de liberdade de expressão, não estamos propondo orientar as matérias que os jornalistas produzem e nem suprimir a oposição pela regulamentação dos meios. Se pode haver algum tipo de restrição, é aquilo que está previsto na Constituição.

FNDC – O secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Cesar Alvarez, disse que o governo não discutirá o marco regulatório. Como fazer para o governo mudar de opinião?

Rui Falcão – Na reunião do diretório no início de março, fizemos um apelo ao governo para que reconsidere essa decisão. E o próprio Congresso Nacional, se quisesse, poderia regulamentar os artigos da Constituição independentemente do Executivo. Mas não parece ser esse o quadro no Congresso, tanto que tivemos, um dia depois da nossa decisão de apoiar a iniciativa popular da CUT e do FNDC de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, um dirigente do PMDB dizendo que é totalmente contrário a esse tipo de política que defendemos. Há setores do Congresso que se opõem a essa regulação e por isso não se faz. Há propostas, por exemplo, de que político não seja proprietário de meio de comunicação. É evidente que se isso fosse lei você precisaria de um tempo para que o político ou desistisse do mandato ou transferisse para outra pessoa a propriedade. Porque o argumento é que quem autoriza e renova concessão, no caso dos meio eletrônicos, não pode conceder pra si mesmo, mas sabemos que há resistência.

FNDC – E como se vence essa resistência?

Rui Falcão – Através da pressão da sociedade. É uma luta de muitos anos que vem sendo travada por dezenas de entidades e acho que ganhou novo impulso porque parece que há o desejo de grandes entidades de levarem essa campanha pra rua. E é bom que se diga, ninguém vai mexer com o futebol na TV, ninguém vai acabar com as novelas. Ao contrário: em vez de acabar com o futebol, tem que democratizar a possibilidade de mais gente transmitir as partidas.

São coisas assim de senso comum, mas acho que a campanha da CUT, do FNDC, do Intervozes, das dezenas de blogueiros e entidades que lutam pela democratização da comunicação têm de dialogar com a sociedade e conseguir assinaturas e ganhar opinião pública para essas mudanças que são difíceis, mexem com interesses poderosíssimos e que hoje estão interditando o debate político mais livre na sociedade.

Estamos vivendo o período mais longo de democracia no Brasil e há mudanças que são urgentes e inadiáveis, e uma delas é o alargamento da liberdade de expressão. Estamos há anos falando da democratização da comunicação e fica parecendo que não vamos conseguir isso tão cedo, mas a pressão da sociedade e a influência das mídias digitais, a sociedade em movimento, uma grande ascensão social pode mudar a cabeça das pessoas. Por isso a importância dessa campanha ir pra rua, pedir assinaturas, porque cada assinatura requer uma informação, é a sociedade fazendo política.

FNDC – Qual a avaliação que o senhor faz a partir dos governos Lula e Dilma sobre o interesse em democratizar a comunicação?

Rui Falcão – Primeiro, de que não há repressão sobre jornalistas e imprensa. Não há uma atividade de censura, uma invasão de empresa jornalística, um jornalista perseguido. Segundo, aprovamos a Lei de Acesso à Informação, que é um passo importante para democratizar a comunicação oficial, que sempre foi muito fechada. Terceiro, a veiculação de publicidade oficial se espalhou bastante. Essa também é uma postura que favorece ter mais liberdade de expressão no Brasil. Diminuiu muito a perseguição às rádios comunitárias, algumas TVs tiveram autorização para funcionar, como a TVT, que está prestes a conseguir instalar uma antena na Paulista e poderá atingir toda a região metropolitana. Houve a criação da TV Brasil. São avanços ainda insuficientes, mas que, comparados ao período anterior, são avanços. Como a realização da Conferência Nacional da Comunicação que, apesar da oposição de setores da grande imprensa, foi um sucesso. Uma das propostas era, inclusive, a construção de um marco regulatório. E isso o governo está devendo, sua própria deliberação.

FNDC – Em evento recente da CUT, o presidente Lula defendeu que os movimentos sociais se articulassem para a construção de uma mídia própria. Mas como é possível vencer esse gargalo se os critérios técnicos de publicidade federal acabam ainda beneficiando os monopólios e o acesso às concessões de rádio e TV por essas organizações ainda é muito difícil?
Rui Falcão –
Quanto mais o campo popular puder reunir suas publicações, seus veículos eletrônicos para ter conteúdo semelhante, eu acho positivo. Mas não creio que esse seja o caminho alternativo à criação de um marco regulador. Cada publicação e cada veículo tem sua linha, representa seus segmentos, representa categorias profissionais, fica difícil ter pauta unificada. Quanto mais sinergia puder haver entre esses veículos, melhor, mas não creio que isso seja um contraponto ao monopólio. Eu acho que deveriam ser revistos os critérios para termos a possibilidade de novas concessões, e é preciso reorientar, sem favorecer, os critérios de veiculação.

“Nós somos fruto desse movimento da sociedade civil”

Criada no dia 22 de janeiro de 2013, a Empresa Pernambuco de Comunicação (EPC) é o primeiro empreendimento de comunicação concebido na forma de empresa pública estadual, reunindo um canal de televisão e uma rádio. Sua instalação é resultado da mobilização e cobrança da sociedade civil, interessada na existência de um canal com perfil público, de qualidade e participativo.
 
Nomeado diretor-presidente da EPC, o publicitário Guido Bianchi falou em entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação sobre as expectativas em relação à implementação da empresa,  a instalação de seu Conselho de Administração com a participação da sociedade civil, os modos de financiamento,  a autonomia política e o perfil de conteúdo que será produzido e veiculado.
 
 
Observatório – Qual o perfil dessas pessoas que estão na direção da EPC hoje?
Guido Bianchi – O que se tem é o núcleo dela, que tem essa principal missão de conduzir o processo de implantação. A direção são sete membros. Inicialmente se tem três membros. São pessoas oriundas da luta pela democratização dos meios de comunicação. Já tem esse viés, que é algo positivo. São pessoas de três áreas distintas, porém que se tocam. Um jornalista e professor do curso de jornalismo da Universidade Católica (Unicap), que é o Paulo Fradique. Eu, que venho da área da propaganda institucional, política e comercial. E o Roger de Renor que vem da área da cultura, que é um promotor e agitador cultural. E o que nos une é a participação nessa história do movimento pela democratização dos meios de comunicação.

Qual a situação em que se encontra a EPC hoje?
Concretamente hoje não tem nenhuma alteração da TV no sentido prático (do que ela está produzindo, co-produzindo, veiculando ou exibindo), porque ela é uma empresa “S.A.” (sociedade anônima) que foi constituída nascendo do zero. Por estar nascendo do zero, tem todas as implicações de uma empresa que está nesse estágio inicial. Tem todo um caminho a ser percorrido: de legalização da empresa, da configuração jurídica dela, os registros cartoriais, montar contabilidade… A retaguarda formal tem que ser montada. Enquanto essa retaguarda formal não for montada, a empresa não pode exercer o seu papel real.
Estão convivendo em paralelo hoje duas estruturas. Uma que já existe e outra que começa a existir. Elas vão conviver durante um bom tempo, porque uma, que é a Unidade Técnica/Detelpe (segmento da Secretaria de Ciência e Tecnologia que administrava a TVPE) vai desaparecer e migrar para a EPC. Então, os bens do Detelpe, hoje diretamente relacionados com a TV PE, já constituem a base do capital social da EPC. O restante também vai migrar para a EPC. São basicamente bens imóveis.
 
Como se dará o financiamento da EPC?
No estatuto social estão previstas várias fontes possíveis de financiamento. Uma delas é: num período de até três anos, a gente espera levantar, por um caminho que está sendo construído com o governo do estado, até R$ 25 milhões, que é o necessário para a recuperação de todo o aparato técnico e para o processo de digitalização da TV. Tem mais de 86 repetidoras, as outorgas e mais as outorgas digitais (isso vai pra 90 e pouco pelo estado todo), mas isso está em um certo grau de sucateamento. Nós precisamos recuperar equipamento de transmissão, de retransmissão, torres, os locais onde estão instaladas as torres, enfim… Tem um custo grande pra recuperar o que está sucateado e adquirir uma nova leva atualizada de equipamentos. O governo está construindo um caminho. Não dispõe hoje desse valor em termos líquidos para disponibilizar para a TV.  
 
Quais são esses caminhos?
São caminhos orçamentários dentro do governo. A empresa foi constituída em janeiro. Já tem o orçamento (do estado) desse ano. O orçamento sofreu um corte no custeio bastante razoável, fruto dos problemas econômicos internacionais, que terminam rebatendo no Brasil e terminam rebatendo nos estados. Então, por isso, eles estão estudando de onde vão conseguir esse recurso, mas esse dinheiro terá que vir dessa iniciativa mesmo: do próprio governo. As outras possibilidades de procurar financiamento (apoio cultural… essas coisas), em um primeiro momento, ficam difíceis, porque você não está ainda funcionando à plenitude, em condições boas, tendo uma programação de boa qualidade e um sinal bom.
Esse ano virá uma parte desse investimento pelos mecanismos do estado. O que tem concreto por enquanto é a disposição política. O problema é um problema de ordem financeira por conta dessa questão conjuntural resultante dessa crise econômica geral. Não tem a solução hoje. Estão correndo atrás das soluções.
Uma questão importante que está ali no estatuto social é que nós vamos dar ênfase na veiculação, na exibição, da produção independente. Dessa produção independente muita coisa não vai ter investimento da TV. Essa produção independente vai se auto-financiar por vários caminhos que existem: sejam caminhos institucionais, sejam caminhos privados. Uma parte poderá ser feita em parceria.
 
Qual a área de cobertura que o sinal da EPC deve abranger?
A proposta é cobrir o estado todo, mas tem problemas. Se eu conserto um problema aqui, abre outro problema lá. Se eu conserto uma cidade-pólo que está com problema no transmissor, eu resolvo o problema aqui e surge um na antena da outra cidade. A cobertura que a TV PE tem legalmente com as outorgas nenhuma outra TV tem em Pernambuco. Só ela tem essa possibilidade de ter uma cobertura quase de 100%. Desde que tudo funcione, né? [risos] Em tese, ela tem essa possibilidade.
E quando tudo ficar digital, aí o problema do UHF desaparece. Então, daqui a três anos no máximo, até 2016, se não for adiado, quando toda a TV for digital… Por isso que nesse investimento técnico de R$ 25 milhões está prevista a digitalização, porque nós temos que nos enquadrar à nova lei.
 
Você diz que a empresa precisa andar com as próprias pernas. Não há perigo de se dar espaço demais para o mercado na determinação do funcionamento da EPC?
É aquela história… Se ficar só dependente do Estado, aí todo mundo fala: “não vai ficar muito dependente do Estado e do governo da ocasião?” Aí, não tem jeito. O problema é o seguinte: quem está dirigindo essa TV? que governo é esse que está no poder? qual é a intenção política desses dois segmentos?” Se a intenção política for boa, vai caminha bem. O problema é esse. Depende mais da política de quem está no comando. Então, a intenção de diminuir a dependência do Estado é para a TV não ser um ônus para o estado. Entretanto, ela só pode captar os seus recursos dentro do que está previsto no estatuto, com aquelas delimitações. Dentro daquilo: apoio cultural, convênio etc.
Pode, por exemplo, fazer um convênio com uma universidade estadual para a difusão das pesquisas da área científica da Física. Então, está aí, garantido o financiamento pra fazer um programa, uma série ou seja lá o que for. E está cumprindo o papel do que a TV deve fazer: levar educação para o povo. Está levando educação para o povo e, em vez de tirar o recurso do caixa do governo, a universidade estadual tira do seu próprio caixa e financia esse programa.
 
Como se pode mensurar o grau de autonomia política que a EPC possui?
De fundo, não tem uma autonomia completa, pois o próprio Estado é detentor da concessão e, pelo próprio estatuto social, ele tem um poder de ingerência. Mas acho que se deu um passo adiante sobre o peso desse poder de ingerência com anuência do governo atual. Claro que não chegamos ao ideal.
Como é que é o Conselho de Administração? São treze membros. Dos treze, sete são indicados: um da associação dos prefeitos do estado, os outros seis são indicados pelo governo do estado, com os representantes de seis secretarias, e aqueles seis que são da sociedade civil passam por um processo eletivo. A minuta do edital que vai fazer o processo de eleição já está pronta. Está passando só pelo crivo jurídico, pra ver se não tem nenhuma impropriedade. A nossa idéia é terminar isso após o carnaval [esta entrevista foi conferida no dia 7 de fevereiro], quando a vida começa oficialmente em Pernambuco [risos]… Mas depois do carnaval isso já está na mão das pessoas envolvidas, estão discutindo. Quando passar pelo crivo jurídico e pelo crivo da Secretaria de Ciência e Tecnologia, que é quem vai comandar o primeiro processo eletivo da parte da sociedade civil, quando a minuta se tornar o projeto do edital, nós vamos fazer uma reunião com o pessoal do movimento social antes de publicar (até pra dar voz pras pessoas dizerem: “pô! Tá bacana esse edital, acho que é isso mesmo” “Tô com essa dúvida. Como é que é isso? Como é que não é?”).  A gente vem tendo isso desde o começo desse processo, esse diálogo, até porque nós somos fruto desse movimento da sociedade civil.
Então, nós vamos ter uma conversa sobre a proposta final do edital e depois a gente publica. A Secretaria publica e faz o processo. E o processo deve acontecer em trinta dias. Tem um prazo pras entidades se inscreverem. Tem um prazo pra a comissão eleitoral da Secretaria analisar as inscrições e ver se todo mundo está dentro das exigências do edital. Enfim, no cronograma dá uns trinta dias, mas estamos agilizando. Acho que até 15 de março a gente está publicando isso.
 
Como vocês estão pensando o perfil da programação jornalística?
Nós estamos pensando que o jornalismo deve ser muito mais analítico do que factual, porque esse já tem muitos veículos aí noticiando. Então, acho que a gente deveria iniciar com um jornalismo mais analítico até pra poder ser um contraponto ao que se faz de jornalismo hoje em dia.
 
E não é justamente o jornalismo analítico que gera mais resistência da parte dos governos?
É, mas nós estamos entendendo que estamos vivendo dentro de um governo progressista. Então, para um jornalismo mais analítico, debaixo de um guarda-chuva progressista, ele pode cumprir um papel mais interessante.
Ele também será factual. Tem montanhas de informações que não viram notícia. Muitas são de interesse local, de interesse do expectador pernambucano, que os poucos veículos comerciais existentes não abordam. Questões mesmo até do que o estado promove, que são muito interessantes e que não noticiam. Não dão dimensão pra isso. Sequer informam o grande público! Eles ficam muito presos às questões mais macro, da luta política, com suas visões políticas. A gente pretende dar vazão a essas informações, mas sendo analíticos.
 
Pernambuco é famoso pela riqueza da produção cultural. Como vocês pensam em trabalhar a absorção dessa produção?
Esse é mais um desafio que nós temos pela frente. Fazer da TV um veículo de comunicação que vai se interiorizar. A gente quer servir de canal de expressão dessa produção cultural do estado. Não se limitar à região metropolitana. Então, esse vai ser mais um desafio que temos pela frente.
 
Quando o Pernambucano vai poder perceber que a EPC está funcionando?
Nós estamos nos dando esse prazo de no fim do ano as pessoas pelo menos poderem ligar o canal correspondente da sua cidade e dizer “Pô, tá bacana. É algo novo que tá surgindo”.