Arquivo da categoria: Entrevistas

O laptop nas escolas

Foi realizado no último dia 25 de abril, na Fundação Getúlio Vargas, o 2º Encontro sobre os Laptops na Educação. O evento teve o objetivo de avaliar de que forma encontra-se, hoje, o projeto Um Computador por Aluno (UCA), já em experiência em cinco escolas do país. Participaram das discussões representantes de cada uma das cinco unidades, além de um dos consultores do projeto, o professor doutor Simão Pedro Marinho, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

De acordo com a professora Denise Vilardo, idealizadora e organizadora do encontro, as experiências desenvolvidas pelas escolas desde o ano passado já mostram o potencial positivo da proposta. Segundo ela, é perceptível o interesse dos alunos, que não faltam mais às aulas e têm apresentado um bom rendimento na leitura e na escrita.

Em entrevista ao site do RIO MÍDIA, Denise Vilardo, professora da Prefeitura do Rio, contou detalhes do projeto e do encontro, que teve o apoio da Rede Peabirus, da Fundação Getúlio Vargas, da Advanced Micro Devices (AMD) e do Colégio Graham Bell do Rio de Janeiro.

*

Qual é exatamente o objetivo do projeto Um Computador por Aluno (UCA)? É um projeto do Governo Federal que foi lançado em 2005, não é isso?
Denise Vilardo –
O projeto se baseia, inicialmente, nas idéias da Organização OLPC (One Laptop per Child), que foram apresentadas no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em janeiro de 2005, ao governo brasileiro. Logo em seguida, Nicholas Negroponte, Seymour Papert e Mary Lou Jepsen, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), vieram ao Brasil, especialmente para conversar com o presidente da República e expor os objetivos da proposta. O presidente da República aceitou o desafio e instituiu um Comitê Gestor interministerial para avaliá-lo. Esse grupo estudou o projeto, ouvindo e discutindo com o MIT, com as universidades, com as indústrias e com o próprio governo. O trabalho desenvolvido destacou três premissas básicas: 1) A aprendizagem e a educação de qualidade para todos são fatores essenciais para alcançar uma sociedade justa, eqüitativa, econômica e socialmente viável; 2) O acesso a laptops móveis, em escala suficiente, oferecerá reais benefícios para o aprendizado e proporcionará extraordinárias melhorias no âmbito nacional; 3) Enquanto os computadores continuarem sendo desnecessariamente caros, esses benefícios continuarão sendo privilégio de poucas pessoas.

Mas, afinal, o projeto já saiu do papel?
Sim, por meio do trabalho do Comitê Gestor, que reúne pesquisadores brasileiros de diversas universidades brasileiras, envolvidos tanto com a Educação quanto com o desenvolvimento de sistemas. Atualmente, cinco escolas-piloto participam do Projeto UCA. No primeiro semestre de 2007, o trabalho foi iniciado na Escola Estadual de Ensino Fundamental Luciana de Abreu (Porto Alegre) e na Escola Municipal de Ensino Fundamental Ernani Silva Bruno (São Paulo). No segundo semestre do mesmo ano, novas escolas foram incorporadas: Ciep 477 Professora Rosa da Conceição Guedes (Rio de Janeiro), Escola Estadual Dom Alano Marie Du Noday (Tocantins) e Escola Vila Planalto (Brasília). Participam do Comitê Gestor: o MEC, por meio da Secretaria de Educação a Distância; o Laboratório de Sistemas Integráveis, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo; e o Laboratório de Estudos Cognitivos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estão presentes ainda o Laboratório de Interação Avançada, da Universidade Federal de São Carlos; a Universidade Federal Fluminense; a Fundação Certi (Centro de Referência em Tecnologias Inovadoras), o Centro de Pesquisas Renato Archer e o Serpro. Mais detalhes podem ser obtidos neste link: http://www.peabirus.com.br/redes/form/post?topico_id=6552

Quando o projeto vai englobar outras escolas?
A previsão é de que, ainda este ano, sejam comprados 150 mil laptops. A meta do governo federal é implementar o projeto, em 2008, em 300 escolas do país. No final do ano passado, foi aberto um processo de licitação para a compra dos laptops. No entanto, ele foi interrompido. Não houve acordo entre o governo e as indústrias que produziriam as máquinas. Esse processo deverá ser retomado a qualquer momento.

De que forma os laptops devem ser utilizados nas escolas?
Os laptops devem ser utilizados dentro das salas de aula da mesma forma que os cadernos, nos quais se anotam trabalhos, produzem textos e criam imagens. Os computadores podem e devem ser usados individual ou coletivamente. E, sim, eles estarão conectados à internet. O objetivo é possibilitar o acesso das escolas à tecnologia, no caso específico, ao computador, compartilhando informações e criando conhecimento. Inicialmente, a adesão ao projeto é voluntária. As escolas serão convidadas a participar, mas podem aceitar ou não o convite. Normalmente, é um acordo entre a escola, a secretaria de Educação, a coordenação dos NTEs (em alguns casos) e o governo federal.

O que as experiências das escolas-piloto têm revelado?
As experiências mostram a necessidade de as escolas reformularem seus respectivos projetos político-pedagógicos; de haver um maior envolvimento de toda a comunidade escolar; de uma capacitação contínua dos professores; de um apoio/estudo teórico-metodológico; e até mesmo de uma adequação física para receber e guardar os equipamentos. Além disso, se faz necessário que o projeto desenvolvido por cada escola seja único, respeitando o contexto local, as reais possibilidades e a limitação de cada espaço de ensino. Percebe-se ainda a resistência de alguns professores em trabalhar com o laptop, o que é superado quando os alunos alcançam bons resultados. Sim, já é possível perceber uma melhora na auto-estima e no rendimentos dos alunos. Praticamente não há mais faltas. Os professores dizem que também estão surpreendidos com os resultados da leitura e da escrita. Os alunos usam a agenda e o diário virtual, os blogs, os wikis e os chats. Escrevem de forma compartilhada e trocam informações via e-mail. Estão mais confiantes e seguros. O desembaraço dos estudantes para lidar com os laptops é quase imediato. Os alunos “descobrem” muito rapidamente a função dos diferentes aplicativos e dos diversos softwares, incluindo a possibilidade de fotografar e filmar com eles. Das cinco escolas-piloto, três contam, efetivamente, com um computado por aluno. Em outras duas, o laptop é compartilhado por dois ou três alunos. Mas, na escola de Porto Alegre, os alunos podem, inclusive, levar os laptops, diariamente, para casa.

A senhora acha que as escolas do Rio estão preparadas para incorporar este projeto?
Depende do que se entende por “estar preparadas”. É muito difícil falarmos em condições ideais, tanto no aspecto físico quanto no aspecto humano. Se formos esperar as melhores condições, não começaremos nunca. Isso não quer dizer que não devemos lutar para que essas condições se realizem. Mas penso que já aprendemos que toda mudança é difícil e tende a ser negada, num primeiro momento. Precisamos de melhores equipamentos? Sim. Precisamos de segurança? Sim. Precisamos de aperfeiçoamento contínuo dos professores? Sim. Mas as coisas se constituem de maneira imbricada. Não se aguarda o encerramento de um ciclo para se ingressar em outro. A professora Regina de Assis [presidente da MULTIRIO] costumava nos dizer, quando era secretária Municipal de Educação do Rio, que tínhamos que andar com o carro e tirá-lo do atoleiro ao mesmo tempo… É isso que estamos fazendo continuamente: avançando e retrocedendo para avançar um pouco mais.

Sem política para as telecomunicações

Diante das transformações que o setor de comunicação vem sofrendo nos últimos anos, a atualização da Lei Geral de Telecomunicações se faz necessária. Porém, todas as tentativas que têm sido feitas para estabelecer regras mais sólidas e atuais sobre o meio são repelidas pelo empresariado do setor, que concentra as atividades. O Estado acaba não exercendo seu poder regulador sobre os serviços, na opinião do engenheiro eletrônico Israel Fernando de Carvalho Bayma.

Nesta entrevista ao e-Fórum, Israel Bayma fala sobre o trabalho do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), onde tomou posse em março (leia matéria), sobre convergência digital e inclusão. Analisa a necessária regulação da comunciação e políticas para o setor. Entre as suas preocupações, está a concentração da mídia no Brasil e como essa característica influencia na vida política e institucional do País, onde o Estado é, segundo Bayma, ausente por falta de instrumentos de intervenção e regulação para o setor.

*

Como funciona e quais as funções do Conselho Consultivo da Anatel?
Bayma
– O conselho é um órgão criado pela Lei Geral das Telecomunicações (lei 9.472 de 16 de Julho de 1997), a LGT, e estabelece a participação da sociedade na Agência. Tem, entre suas atribuições, que opinar sobre o Plano Geral de Outorgas do setor, o Plano Geral de Metas para Universalização (PGMU) de serviços prestados no regime público e demais políticas governamentais de telecomunicações. Deve aconselhar sobre política tarifária e industrial, implementação dessas políticas nos contratos de concessão, e no que se refere à gestão de fundos, como o Funtel, Fistel e o próprio Fust. Cabe ainda ao conselho apreciar o relatório do conselho diretor e aconselhar. Dentro dessas políticas, ele pode fazer propostas e requerer informações ao Conselho Diretor.

Pela falta de quorum, o conselho passou o ano de 2007 praticamente sem se reunir. Algumas matérias ficaram retidas, sem apreciação. Ele precisa se reunir ordinariamente para apreciar esses relatórios anuais do conselho diretor sobre o PGMU, PGO, assim como para apreciar essas políticas. E, extraordinariamente, pode se reunir para discutir questões de sua própria competência.

Os trabalhos são regimentalmente realizados na sede da Anatel, mas nós temos proposto uma agenda de trabalho, que ainda não esta fechada, com preposições para reuniões descentralizadas. Essas reuniões servem para discutir essas políticas com a sociedade. As reuniões são agendadas. Essa pauta que queremos construir para descentralizar terá agenda fixa. É um ponto de discussão do conselho. As atas são publicadas no site da Anatel, a pauta também é breviamente apresentada no site.

Que pontos centrais, em relação à regulação, você acredita que devem ser enfrentados no trabalho do conselho? Qual o papel da Anatel na questão da TV digital?
Bayma
– Eu acho que a própria Lei Geral de Telecomunicações, que já completou 10 anos, precisa ser atualizada. As várias iniciativas que existem no âmbito do legislativo, no pronunciamento dos agentes do setor, da sociedade civil, na dinâmica do segmento de telecomunicações, em face da convergência tecnológica, impõem essa atualização.

Cito o projeto de lei 29/07 que hoje tramita no Congresso Nacional. Ele representa um pouco essa necessidade da reformulação, porque mexe na Lei, cria uma legislação referente à TV por assinatura, traz para o bojo os serviços que não estavam submetidos à regulação.

Outro exemplo é a convergência, que acaba alterando todo o contorno regulatório para o serviço, como o caso da TV digital. Essa questão acaba por transcender um pouco o limite da lei geral, então a Agência terá que discutir sobre esse sistema que envolve a convergência na TV digital.

Ainda sobre a TV digital, qual é o posicionamento do conselho?
Bayma
– Até o momento, não fechamos a pauta do Conselho. Por isso, ainda não houve aprofundamento sobre a TV, mas há interesse por parte dos conselheiros de voltar à discussão do cenário.

Houve uma frustração do que seria a entrada do modelo digital, do ponto de vista da tecnologia, política industrial, porque não aconteceu como disseram que iria acontecer. Eu creio que, como tratamos, o conselho tem que se pronunciar sobre a aplicação da política industrial e a política industrial, no que diz respeito aos contratos de concessão e termo de autorização e da própria TV por assinatura. Isso tem um impacto na política industrial voltada para o segmento TV digital.

A própria tecnologia de semi-condutores era uma contrapartida exigida pelo Brasil na escolha do padrão tecnológico, quando se adotou o padrão japonês com um compromisso de transferência de tecnologia, de uso de todo o mídia necessário para incorporar o sistema digital. O que eu tenho lido e ouvido é que isso não está ocorrendo. Houve até certo recuo das indústrias japonesas, no sentido de transferir essa tecnologia. Se isso ocorre, é um problema.

Como são tratadas no conselho as questões políticas do mercado de comunicação?
Bayma
– Durante algum tempo, a Anatel fazia a política em função da omissão do poder concedente, o Ministério, na formulação dessas políticas. Mas sua elaboração cabe ao Executivo. À Agência, cabe cumprir e fiscalizar sua aplicação. Para isso, ocorre que o Executivo precisa estabelecê-las. Se a política é incompleta, inconsistente, ela tem que ser revista e reformulada.

Nada impede que os conselheiros, que representam o segmento da sociedade, se pronunciem sobre a questão. Nós fizemos uma proposta, recentemente aprovada, de convidar o deputado Walter Pinheiro, presidente da Comissão Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), para ir à Agência e fazer um debate conjunto sobre a pauta de trabalho para 2008 e 2009 da Comissão. Sabemos que o Pinheiro apresentou como proposta a discussão e a elaboração de um projeto de Lei Geral de Comunicação.

A CCTCI tem discutido nas subcomissões alguns temas, como, por exemplo, políticas de concessão para radiodifusão. Nós queremos acompanhar institucionalmente na Câmara esse tema, que está de fato afinado com a consignação de freqüência. A Anatel não pode se isolar do debate, que é também convergente.

Como o conselho vê a questão das fusões do mercado de telecomunicações que vem ocorrendo?
Bayma
– O conselho consultivo ainda não se pronunciou sobre isso formalmente. Ele só se pronuncia depois do conselho diretor, mas é claro que temos acompanhado todo movimento ocorrido entre os interessados no processo de fusão, tanto dos acionistas quanto a sociedade, que tem se pronunciado de forma apreensiva. A sociedade quer saber o que essa fusão vai representar: se vai manter postos de trabalho, beneficiar os usuários, enfrentar a pressão de empresas internacionais, assegurar condições de competitividade e mecanismos que ofereçam barreiras às possibilidades de vir a vender essa empresa a um grupo estrangeiro.

Sobre a inclusão digital (id) no país, que medidas, na sua opinião, deveriam ser adotadas para garantir a universalização do acesso?
Bayma
– Há uns dois anos atrás, fiz um trabalho de identificação das várias iniciativas de inclusão digital que haviam no país, notadamente no setor público. Descobri um universo de iniciativas muito boas, porém todas apontam que essas políticas não propiciam condições de auto-sustentabilidade. Todas vêm sendo sustentadas pelos próprios agentes públicos que implementam os programas de inclusão digital.

Por outro lado, percebi na época uma superposição de iniciativas no mesmo local, no mesmo bairro. Duas, três instituições querendo fazer a mesma coisa; a descordenação dessas ações é muito grande, dispersa esforços. Isso é ruim.

Na minha opinião, precisava haver uma política que articulasse essas iniciativas. Dentro do próprio governo há iniciativas num ministério e outro e elas acabam não sendo coordenadas. O governo criou uma coordenação que tenta exercer, mas não tem muita eficácia, porque não há uma política institucional clara de poderes para determinar que política deve ser essa.

Por exemplo, recentemente o governo aprovou o PGMU e fez uma negociação com as concessionárias de telefonia fixa de levar banda larga para as escolas; basicamente, era chegar com a central telefônica (backroom), o grande canal de comunicação, no município. Isso foi positivo, mas acho que foi tímido. O governo poderia ter negociado melhor a questão se tivesse, entre outros pontos, uma coordenação eficaz dessas políticas, o que não tem.

A ausência de política na área de telecom durante muitos anos fragilizou essas negociações. Levar só o backroom pressupõe um conjunto de políticas articuladas para usar toda essa capacidade do sistema para escolas, instituições, para a sociedade civil. Não é suficiente dizer que o custo da conectividade que o sistema vai cobrar é muito caro, mas essa é a lógica do mercado, a privatização impôs essas condições e regras.

Por isso, acho que ao invés esse debate sobre 'qual a política de inclusão, é preciso'um debate sobre por que ela tem que privilegiar tarifas baixas para garantir universalização. Esse discurso escamoteia a política mais adequada, que, a meu ver, é enfrentar a mudança na lei geral do setor.

Para corrigir as distorções, precisa mexer na lei e não criar situações de subterfúgio. De dizer que a concessionária, a empresa de telefonia, por exemplo, tem que oferecer uma tarifa mais baixa. Claro que tem, mas a lei protege a concessionária dizendo: ela não pode oferecer uma tarifa que não remunere adequadamente o serviço.

Muda-se a lei, o marco legal, para segurar uma tarifa social para as camadas da sociedade que não tem acesso.

Fale sobre o seu capitulo no livro Democracia e Regulação dos Meios de Comunicação de Massa, recém-lançado pela Editora FGV.
Bayma
– Há vários anos venho trabalhando sobre a concentração da propriedade a partir de alguns conceitos dinâmicos, procurando até um referencial teórico para melhor identificar o coronelismo eletrônico. Outro tema, também, é a corrupção clientelista. Eu queria identificar, no meu trabalho, como isso se dá no cenário eleitoral. Então, faço uma amostragem desse universo pesquisado.

O clientelismo é um problema a se enfrentar nos meios de comunicação (MCs). Os MCs têm um papel fundamental no aprofundamento da democracia. No caso do Brasil, especialmente, a legislação tem um caráter concentrador a respeito da propriedade. Isso fortalece sobremaneira alguns grupos que controlam o setor de mídia, de comunicação em geral, que passam a exercer um poder político muito grande e influenciar na vida política e institucional do País. Isso é ruim para a democracia, porque um concessionário pode vir a alterar as políticas do país, abalar as instituições ou até, em alguns casos, a própria democracia.

Como nossa legislação, no que diz respeito à comunicação, especialmente a radiodifusão, é desatualizada, fragmentada, dispersa, todas as tentativas que têm sido feitas para estabelecer regras mais sólidas e atuais sobre o meio têm sido repelidas. Ou seja, o Estado acaba não exercendo seu poder regulador sobre o setor.

No mundo, os meios que têm liberdade também tem regras. A regulação é mais firme e aprimorada em alguns países. Já no caso brasileiro, o segmento de comunicação é tão forte que impede que o Estado o regule. Um exemplo claro são os vários dispositivos na Constituição Federal brasileira em relação à comunicação social que não foram regulamentados até hoje. O empresariado do setor se posiciona contra, acha que é um cerceamento à liberdade. O Estado fica desaparelhado porque não tem instrumentos de intervenção, de regulação nesse setor.

Acho que, ao identificar os interesses que estão por trás dessa postura – que são legítimos em sua grande maioria – interpretar neste trabalho a relação entre financiamento eleitoral de campanha e a mídia, de maneira geral, introduzo uma variável que eu gostaria que fosse considerada na discussão: o papel dos meios de comunicação na democracia e a necessidade de intervenção do Estado enquanto regulador neste setor tão importante para a sociedade.

* Israel Fernando de Carvalho Bayma, engenheiro eletrônico, foi recentemente empossado no Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), representando a Câmara dos Deputados. É pesquisador do Laboratório de Política de Comunicação da Universidade de Brasília. Atua como consultor para a área de telecomunicações, comunicação, informática, energia, gás e petróleo. Ex-assessor especial da Casa Civil da Presidência da República, já atuou como diretor de Planejamento e Engenharia da Eletronorte e assessor da Companhia Energética de Brasília. Também foi diretor do Comitê de Incentivo ao Software Livre e Gratuito – CIPSGA.

O espetáculo antijornalístico

As quartas-feiras à noite eram, até pouco mais de um mês, prioridade do futebol nos principais canais de televisão do país. No último dia 07, a Rede Globo “perdeu” a transmissão do primeiro gol do São Paulo contra o Nacional do Uruguai, no Morumbi, para transmitir a prisão do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Helicópteros seguiam a comitiva de carros do Batalhão de Operações Especiais de São Paulo, enquanto mais de 800 pessoas acompanhavam a prisão em frente ao apartamento de onde saiu o casal. Esse é apenas um exemplo banal para mostrar o quanto a mídia espetacularizou um caso e deixou a informação não sensacionalista de lado. Estamos realmente passando por uma crise do jornalismo.

“Quando um fato que realmente é importante simplesmente não é noticiado porque não tem capacidade de emocionar significa que o trabalho jornalístico está sendo totalmente distorcido”, afirmou o professor Carlos Alberto Di Franco, em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line. Nesta conversa, ele analisa o tratamento que a mídia deu para os casos Isabella e Ronaldo, reflete sobre a espetacularização que a mídia e, ainda, sobre a possibilidade da criação de um Conselho de Comunicação no país. “Eu acredito que o que funcione mesmo seja a sociedade civil organizada; não vejo outra saída além dela”, disse.

Carlos Alberto Di Franco é diretor do Master em Jornalismo para Editores do Instituto Internacional em Ciências Sociais, da Universidade de Navarra, do qual também é representante da Faculdade de Comunicação no Brasil.

Confira a entrevista.

Por que a mídia dá tanta atenção a casos como o de Isabella e do jogador Ronaldo e não analisa, por exemplo, o aumento considerável de casos de violência contra a criança no país?
Carlos Alberto Di Franco
– Eu acredito que isso tenha uma explicação do ponto de vista da mecânica da mídia, de como ela funciona na realidade. É evidente que temos problemas graves de prostituição infantil, de pedofilia, de violência contra as crianças etc., mas o que acontece é que existem determinados casos de grande impacto na opinião pública ou que envolvem a chamadas “celebridades”, com um apelo muito forte para a mídia. Apelo forte exatamente porque são fatos geradores de audiência, e a tendência da mídia é embarcar nisso.

O que tem faltado, em minha opinião, é mais equilíbrio ao se noticiar esses fatos e aproveitar cada episódio para entrar nos temas mais problemáticos e aprofundar  questões subjacentes. O Estado de S. Paulo fez uma matéria interessante no terceiro ou quarto dia do caso Isabella. Ele deu uma página inteira falando das Isabellas que não foram notícia. Então, o jornal levantou o caso de dez crianças que morreram em situação parecida e cujos casos não foram esclarecidos ou não apareceram nas “páginas da História”.

Esse tipo de edição de jornal é interessante, porque, a partir de um caso que chama a atenção do grande público, lançou luz para o problema de fundo, para a ausência de resolução para outros casos. Penso que a razão seja essa. A mídia está muito sensível para tudo que diga respeito a espetáculo, a show, a entretenimento. Como existem episódios que estão muito mais ligados ao espetáculo do que à informação, isso explica a tendência de a mídia ir atrás desse tipo de informação.

Há culpados por essa espetacularização da mídia?
Carlos Alberto Di Franco
– Há coisas, a meu ver, que se realimentam. Por um lado, você pode observar que a cobertura foi muito mais grotesca e exagerada por parte da televisão do que da mídia impressa. Porque a televisão está absolutamente monitorada pelo ibope. As decisões editoriais da televisão, infelizmente, com muita freqüência são decisões que não estão pautadas por critérios estritamente editoriais, de avaliar a importância da notícia, de sua repercussão pública, mas sim por oscilações no ibope. Por outro lado, a sociedade também vai atrás desse tipo de matéria, ou seja, no fundo existe uma tendência que é humana, explicada pela Psicologia, que diz que o espectador tem atração por aquilo que é mórbido e pelo que emociona. Claro que uma pessoa mais culta é menos influenciável por esse tipo de conteúdo. Por isso, a grande batalha do Brasil é vencer a batalha da educação.

Numa sociedade educada, é evidente que o nível da programação é mais exigente. Você pode reparar que os telejornais que mais exploraram o episódio foram os de perfil popular, exatamente porque as pessoas que consumem esse produto são menos educadas e, portanto, mais influenciáveis. Então, uma coisa alimenta a outra: a televisão está atrás de audiência e produz espetáculo. Enquanto isso, o público alimenta a audiência, assistindo ao espetáculo e fazendo com que a televisão aumente seus índices e a transmissão de programas mais impactantes. Isso se transforma num círculo vicioso e que deveria ser transformado, segunda a ética, num círculo virtuoso.

No caso Isabella Nardoni, em que medida a ação da mídia interfere na investigação e/ou julgamento do caso? Podemos dizer que ela dificulta o processo?
Carlos Alberto Di Franco
– A culpa é dos dois lados: da mídia e das autoridades. Na verdade, quem começou a confundir a área não foi a mídia, mas o Ministério Público e a polícia. Quando o crime ocorreu, a delegada de polícia passou a falar como se fosse uma celebridade, dando entrevistas constantemente, chamando um dos suspeitos de assassino. Isso tudo numa fase inicial de investigação, o que é inacreditável. O promotor de Justiça falou tanto que foi advertido pelo Judiciário, e o caso passou a transcorrer em segredo de justiça, em função do excesso de declarações dele. É evidente que quem deu o primeiro passo foi a autoridade pública. Então, a mídia entrou e começou a publicar coisas que não tinham, necessariamente, a ver como a realidade. Pior ainda foi quando ela começou a noticiar a ausência de notícias, ou seja, durante muitos dias, quando não tínhamos fatos novos, eram feitas chamadas como: “No próximo bloco, acompanhe o caso Isabella”. Entretanto, não havia novas notícias, mas replays de cenas de dias anteriores, imagens repetitivas. Quer dizer: show, espetáculo, sem algum fundamento noticioso e, portanto, antijornalístico, porque o jornalismo é, por definição, passar para o consumidor, telespectador ou leitor, uma informação. Quando não existe informação, o jornalismo não precisa estar presente.

No cotidiano do jornalismo, quando termina a informação e começa o espetáculo?
Carlos Alberto Di Franco
– A informação termina com o trabalho jornalístico que reclama, apura, denuncia se for o caso, presta serviços etc. O espetáculo começa quando acaba o jornalismo, pois ele é o contrário da notícia. É quando se considera que as coisas são importantes não porque de fato ocorreram, mas sim pelo poder que elas têm de emocionar o telespectador. Isso é gravíssimo, porque estamos caminhando para um jornalismo que até pode prescindir do jornalista. No entanto, não se precisa de jornalista para produzir um espetáculo, mas produtores do mundo do entretenimento. O jornalismo exige um editor, alguém capaz de ponderar sobre a importância dos fatos. Todos os dias, temos, por exemplo, 500 acontecimentos. Desses, ele vai passar para o seu leitor ou espectador uns 15. Essa seleção é feita por alguém que sabe da importância dos fatos, que sabe separar o que é um fato relevante e o que é um fato intranscendente. No mundo do espetáculo, isso não acontece, porque o que não tem importância passa a ter na medida em que tem capacidade maior de emocionar. Quando um fato realmente importante simplesmente não é noticiado, porque não tem capacidade de emocionar, significa que o trabalho jornalístico está sendo totalmente distorcido. A meu ver, estamos assistindo a uma crise importante do trabalho jornalístico.

E desde quando essa crise se dá?
Carlos Alberto Di Franco
– Ela foi muito acentuada por alguns fatores. O primeiro é a crise da reportagem. Há alguns anos, você tinha um investimento grande dos jornais em reportagens, porque elas viam a realidade mesmo, ou seja, o repórter saía, a fim de conversar com a fonte, checar os dados. Entretanto, hoje 70% das informações são passadas por telefone, ou seja, o repórter faz matéria sentado na redação. Às vezes, eu brinco que, dependendo da localização do pauteiro – aquele que vai dizer o que se vai cobrir –, na redação, ele não sabe nem como está o tempo. E é essa pessoa que vai definir o que sairá no jornal no dia seguinte, o que está acontecendo de importante. Em grande parte, a crise começa aí. Quer dizer, quando você perde a capacidade de ver a vida como ela é, de procurar conhecer a realidade de perto, de ver as pessoas face a face, presenciar a reação delas, você vira facilmente refém do mundo da frivolidade, da superficialidade, do mundo do espetáculo, que não precisa de aprofundamento, mas, sim, de sensacionalismo, que não tem relação direta com o jornalismo.

Se jornalismo passa a não mais informar e apenas a suscitar emoções nos espectadores, podemos prever um fim para esse profissional?
Carlos Alberto Di Franco
– Eu não prevejo o fim, porque considero existir muita gente trabalhando bem. Há jornais que fazem bons produtos, e a sociedade demanda um bom jornalismo. Penso que as pessoas, num primeiro momento, foram atraídas pelo caso Isabella e outros casos espetaculares por uma reação momentânea. Mas, num segundo momento, quando é o momento da razão, quando se emite um juízo de valor, elas vão condenar o jornalismo que fez isso, sem a menor dúvida. Uma coisa é a curiosidade, e outra é a aprovação. Isso os jornais não estão percebendo. Eles estão, num processo de suicídio, dando um “tiro de morte” na credibilidade. Num segundo momento, você pode ter certeza de que vai se estabelecer uma grande discussão a respeito da qualidade dessa cobertura. Isso, inclusive, já está acontecendo e vai sobrar para a televisão.

Existe, de qualquer modo, muita coisa boa sendo feita, por gente com boa percepção, afinal o público precisa da informação. Eu preciso da informação para viver, mas não do espetáculo. As informações são necessárias para eu tomar decisões na minha vida. Isso apenas o verdadeiro jornalismo pode fazer, não o mundo do espetáculo. Em suma, eu acredito que haja muito espaço para o jornalismo de qualidade.

Do ponto de vista "legal", o que falta para as empresas de Comunicação exercerem a sua responsabilidade social?
Carlos Alberto Di Franco
– Falta uma cobrança maior da sociedade. Se você analisa um pouco a qualidade da televisão brasileira, você percebe que ela não está cumprindo o que rigorosamente o que a Constituição, no artigo nº 221, determina, ou seja, dar prioridade aos assuntos educacionais, culturais. Na televisão, não há prioridade alguma aos assuntos educacionais e culturais. Então, a Constituição está aí um pouco para inglês ver. Como se consegue cumprir isso? Exercendo a cidadania, eu acredito muito na pressão do telespectador. No mundo inteiro, existem telespectadores que cobram duramente a televisão. A BBC de Londres foi obrigada a estabelecer um código de ética interno pressionada pelos telespectadores. Todos os anos, ela precisa publicar um relatório de prestação de contas do seu código de ética aos seus telespectadores. Vendo isso, percebo que somos passivos, assistimos ao espetáculo e queremos que o governo cobre as televisões. Não vejo outra saída senão o exercício da cidadania.

Qual é a sua opinião sobre a criação de um Conselho de Comunicação?
Carlos Alberto Di Franco
– Trata-se de uma teoria, ou seja, é criar mais uma estrutura burocrática. Já temos a Comissão de Comunicação no Senado, que não faz absolutamente nada. Eu não acredito, infelizmente, olhando o quadro público brasileiro, nos políticos brasileiros. Embora sejam necessários, o quadro que assistimos é bastante triste. Eu acredito que o que funciona mesmo seja a sociedade civil organizada; não vejo outra saída além dela.

A nova linguagem do jornalismo multimídia

Se você navega por sites gringos, com o olho condicionado, encontra reportagens de altíssima qualidade. Isso é resultado da explosão do jornalismo digital nos últimos dois anos. Texto, áudio, vídeo, foto, mashups, mapas reunidos por criativos jornalistas resultam em histórias contadas de um jeito que jamais se viu. Alguns chamam de multimídia. Eu gosto da expressão hipermídia.

No Brasil, esse processo é mais lento. Pouca gente, até agora e infelizmente, apostou em boas reportagens digitais. Há apenas um centro de excelência, montado no Jornal do Comércio em Recife. Quando estive na direção da Agência Brasil, tentei construir algo. Às vezes, surge coisa interessante no G1. São exceções. A regra é produzir com pouco orçamento materiais quase amadores.

Daí o pioneirismo da Garapa, produtora de jornalismo multimídia montada por Paulo Fehlauer, Leo Caobelli e Rodrigo Marcondes. São poucos os trabalhos disponíveis no site do coletivo. Mas esse pouco já permite dizer que estamos diante de grandes contadores de histórias. Em especial, destaco o trabalho de Caobelli sobre a cobertura do caso Isabella pela imprensa.

A inspiração da Garapa é o MediaStorm, de Brian Storm, ex-diretor da MSNBC que resolveu apostar seus dotes e dólares na construção de uma produtora digital para a rede. O MediaStorm tem trabalhos publicado por veículos da grande mídia americana, entre os quais a própria MSNBC, o Washington Post e o Los Angeles Times.

É impossível não se emocionar com trabalhos como o Blodlines, finalista do Emmy, ou o sensacional Kingsley Crossing, vencedor do Emmy. Na época do vídeo fácil, do YouTube, o MediaStorm tem apostado em trabalhos de altíssima qualidade, baixo orçamento e muita criatividade. E tem contribuído para ampliar os horizontes de quem trabalha contando histórias no mundo digital.

Fehlauer, Caobelli e Marcondes resolveram entrar nessa briga. Por enquanto, estão fazendo na raça. Logo-logo, espero, alguém vai sacar e vai bancar para eles condições de seguirem aperfeiçoando essa linguagem. Leiam, abaixo, uma entrevista que fiz com Fehlauer. Leia mais também no blog Em Busca da Palavra Justa.

***

Quando a Garapa foi fundada, por quem e qual a idéia de vocês com isso?
Paulo Fehlauer – Acho que ainda estamos nesse processo, descobrindo uma linguagem. A Garapa foi meio que gerada, espremida mesmo, quase como uma vontade coletiva dos três sócios, que colidiu em um momento muito oportuno. Voltei de Nova York com muita vontade de explorar esses novos caminhos do jornalismo, tendo participado um pouco desse debate por lá. Chego ao Brasil e encontro o Leo, que trouxe o Rodrigo de Londres, pensando em fazer algo na mesma linha. Somos três "garapeiros": Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes, três jornalistas-fotógrafos indignados com a mesmice do nosso jornalismo.

Falem um pouco das influências. Dá para perceber que Brian Storm e sua MediaStorm são referências de vocês. Quem mais?
P.F. – A MediaStorm é definitivamente uma inspiração. Pelo que sabemos, é a única empresa dedicada à produção desse tipo de conteúdo. É incrível que eles consigam fornecer ao mercado editorial peças com mais de 10 minutos de duração, um tempo relativamente longo para a internet. As agências VII Photo e Magnum têm trabalhos belíssimos, mais ligados à tradição fotográfica. Acho que também somos influenciados por uma tradição de documentaristas, fotógrafos e cineastas e, por que não, romancistas, cronistas. No fim das contas, queremos contar histórias, e estamos explorando os meios que nos parecem mais interessantes.

Vocês partem da fotografia para o exercício da narrativa hipermidiática. Esse tem sido um caminho natural nos Estados Unidos. O último Pulitzer premiou uma fotógrafa que fez um trabalho, fantástico, audiovisual. É esse o caminho para os fotógrafos agora?
P.F. – Não sei se para os fotógrafos de forma geral. Tem muita gente que não quer saber disso, mas achamos que há um espaço a ser ocupado. Nos EUA, há até uma certa pressão sobre os fotojornalistas. Muitos são obrigados pelos jornais a levar câmeras de vídeo e gravadores de áudio para a rua. Por outro lado, ainda tem muita gente que não abre mão do filme. Mas não há dúvida que a internet abriu muitos caminhos e há uma geração de fotógrafos e jornalistas que quer explorá-los. Há uma linguagem a ser desenvolvida, e um público a ser formado – público esse, é bom lembrar, que se habituou rapidamente aos vídeos curtíssimos do YouTube e congêneres. Com a internet, os formatos se diluíram muito, fica difícil delimitar os conteúdos. E, se os campos se cruzam, é natural que a fotografia se ligue a outros formatos. As ferramentas são cada vez mais acessíveis, e o fluxo de informação cada vez maior. Acho que a idéia é achar formas de expressão que se encaixem nesse fluxo, e acho que essa é a nossa busca.

Qual a sua avaliação do trabalho realizado pelos veículos jornalísticos online? Você acha que os grandes abrirão espaço para esse tipo de trabalho?
P.F. – O mercado brasileiro é bem diferente do norte-americano, é bem menor, bem mais concentrado, tradicional, familiar, é até injusto comparar. Pelos contatos que tivemos recentemente, percebemos que essa abertura deve começar pelos veículos essencialmente online, como os grandes portais. A estrutura dos grandes conglomerados da mídia impressa ainda é arcaica, conservadora, pouco atenta às mudanças. É impensável, por exemplo, uma integração de redações como aquelas por que têm passado os grandes jornais dos Estados Unidos. Aqui, impresso é impresso, online é primo pobre e a lógica nesse caso costuma ser a do máximo lucro com mínimo investimento. Mas em algum momento essa abertura vai acontecer. Grande parte do público desses veículos tem acesso à banda larga e há um potencial de geração de receita com publicidade, ainda pouco explorado. Quando o primeiro grande veículo investir, a concorrência vai ter que correr atrás. Acreditamos que, em um momento não muito distante, a produção online vai se dissociar bastante do conteúdo impresso.

‘Quem critica a minoria branca é ignorado’

Enquanto alguns o acusam de ser chapa-branca, Mino Carta puxa sem dó as orelhas do presidente Lula, que diz ser um sintoma de que alguma coisa começou a mudar no Brasil, mas de quem guarda uma sincera decepção pela falta de ousadia. “Para que agradar tanto aos banqueiros?”, reclama. Nesta entrevista, Carta fala do preconceito do mercado publicitário contra quem critica o pensamento único. Fala das origens da passividade do povo, da selvageria do capitalismo, de cinema, gastronomia e de amor. Conservador nas miudezas e anárquico no atacado, ele não tenta se explicar, mas será facilmente entendido.

Aqui é o lugar onde você mais gosta de trabalhar de todos os que já passou?
Talvez seja onde a margem de criação é maior. Mas cada coisa se encaixa no seu tempo e à moldura das possibilidades oferecidas. Eu lancei o Jornal da Tarde, foi uma empreitada valiosíssima, mas estava trabalhando no Estadão. A autonomia que tive foi muito grande em termos de criação, paginação, texto, o jornal foi até bastante revolucionário, mas politicamente a margem de manobra era mínima. Você tinha de se adaptar aos pensamentos da casa. Na Veja eu contava com patrões idiotas, e isso ajuda um bocado. Os Civita não sabiam onde estavam, e foi fácil fazer uma revista que mereceu censura, que foi perseguida violentamente.

Você já contou várias vezes a história da sua saída da Veja, em 1976. Isso é algo que o marcou, não?
Certamente, e positivamente. É problema você no Brasil lidar com a mídia, ela não quer saber de quem nada contra a corrente. A mídia está toda compactada nos patrões, em seus sabujos da redação, que giram em torno de uma idéia única. A idéia é reagir a qualquer tipo de ameaça, porque não se aceita a possibilidade de que o sistema possa ser interrompido, posto em risco, em xeque. Espanta o comportamento dos jornalistas brasileiros; não têm noção do que é ser jornalista. O jornalismo decaiu muito.

Por que o jornalismo hoje não se compara com o que se fazia na década de 60, 70…
Ou mesmo antes. Rubem Braga e Joel Silveira cobriram a campanha dos pracinhas na Itália, na Segunda Guerra Mundial, de forma impecável, com textos dignos do melhor jornalismo contemporâneo do mundo. Se você pensa que o jornalismo brasileiro já teve esse tipo de herói, você põe as mãos nos cabelos! Cláudio Abramo…

Perseu Abramo…
Perseu era mais notável não como jornalista, mas como político, como intelectual, que transmitia integridade, sem dúvida. Era sobrinho do Cláudio, embora a diferença de idade não fosse assim tão grande (seis anos), e filho do Athos, o segundo da estirpe (Lívio, Athos, Fúlvio, Lélia, Beatriz, Mário e Cláudio). O primeiro era o Lívio, grande gravurista, artista extraordinário. Entre o Lívio e o Cláudio tinha 20 anos de diferença. O Athos era o segundo. Com a Lélia eu trabalhei. Meu pai arranjou um emprego para ela. Ótima atriz, muito talentosa. Quando voltou da Itália, já era quarentona, trabalhou numa companhia amadora de teatro. Fez de tudo, teatro, cinema, e era engajadíssima.

Dessa geração que você viu, com a qual trabalhou, conviveu esses anos todos, quem você destacaria?
Ah, tem muitos. Eu não gostaria de cometer injustiças. Quando eu voltei da Itália, em 1960, fui lançar a Quatro Rodas – sem saber dirigir, até hoje não sei, e não distingo um Volkswagen de um Mercedes. Tive ali repórteres extraordinários. Trabalhei com Zé Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, depois veio o Sérgio de Souza. O Hamilton Almeida, que foi um excelente repórter, Tão Gomes Pinto. Estive em contato com gente de altíssima qualidade, jornalistas como hoje não se fazem mais.

E o Reali Jr.
O Reali é ótimo, é um grande sujeito. Eu acho que ele vai escrever coisa para a Carta Capital agora, de Paris. Já estamos engatilhando algo para que o Reali escreva pra gente. Meu pai era amigo do pai dele, é uma coisa muito, muito antiga.

Recentemente houve dois importantes “não-acontecimentos”: a batalha de Luis Nassif com a Veja e a saída de Paulo Henrique Amorim do IG. Como vê esses dois episódios?
Isso se encaixa exatamente na lógica do que eu disse. No Brasil você tem uma situação muito peculiar, que não existe em outros lugares que já saíram da Idade Média. Uma mídia compactamente unida apenas em torno da defesa dos interesses piores, aqueles da minoria branca, para usar a expressão do Cláudio Lembo. É muito simples: quem de alguma forma põe em xeque, critica a minoria branca e identifica esses interesses, que são os dela apenas, e não os do país, da sociedade brasileira, do povo brasileiro, quem faz isso é ignorado. E a técnica é a de sempre, antiqüíssima, usada inescapavelmente em todas as situações: “Ignore, porque aí não acontece, ninguém vai saber”. A estratégia, do ponto de vista deles, é extremamente eficaz. Saiu nesses dias um estudo em que você verifica que 58% da população brasileira não lê jornal, não lê livro, não vai ao cinema, não vai ao teatro. Alimenta-se só de TV, quem se alimenta. Há um distanciamento brutal em relação às notícias, à existência de fatos. Isso é muito claro no Brasil. E eles se aproveitam disso.

O que nasceu primeiro: a indiferença do povo ou a péssima qualidade da mídia?
Nada acontece por acaso e certas situações são inescapáveis. O povo brasileiro é um povo que traz no lombo a herança do chicote e da escravidão. Que seja um povo paciente, resignado, é indiscutível. É um povo que vive no limbo, isso não é nem o inferno, nem o purgatório. O Brasil sofreu desgraças terríveis. Foi uma terra predada como colônia, antes pelos portugueses, depois pelos ingleses, depois submetida ao superpoder americano. Essa foi a primeira desgraça. A segunda foi a escravidão, pela qual pagamos até hoje. E a terceira o golpe de 1964, o golpe da minoria branca. Hoje me surpreende a mídia falar em ditadura; antes falavam em revolução. Agora falam em ditadura, mas acrescentam “militar”. Isso me deixa num estado de profunda irritação: os militares foram os gendarmes que executaram o serviço sujo dos seus patrões brancos. Quem fez esse golpe senão a mesma mídia que agora decidiu mudar o nome de “revolução” para “ditadura militar”? Neste país, onde é muito fácil manipular a opinião pública, a chamada classe média estava convencida de que o golpe era absolutamente indispensável porque havia a “marcha da subversão” que batia às portas. Vocês viram a marcha da subversão? Eu espero até hoje… O golpe deu-se em uma hora, sem que fosse derramada uma única e escassa gota de sangue nas calçadas. Que golpe é esse? Era assim: amanhã tem o golpe. Vamos programar para amanhã porque é um dia bom, parece que vai ter sol.

Que arma a sociedade tem para enfrentar uma elite golpista?
Eu não tenho muitas esperanças em relação ao Brasil, infelizmente. E vocês vejam: país extraordinário, recursos absolutamente fantásticos, mais fértil do mundo, muito mais que a China. Onde você plantar, dizia o Pero Vaz de Caminha e é verdade, a coisa dá. Não tem cataclismo, o subsolo é rico em minérios, metade do ferro do mundo está aqui, agora descobrimos também petróleo onde não imaginávamos que houvesse. E temos a pior elite do mundo! A elite (desculpe a referência chula e mesquinha, talvez) da Daslu, de exibicionistas, cafajestes, cheios de si próprios, se acham notabilíssimos, inteligentes, elegantes, brilhantes. É um bando! É o país onde se fala mais palavrões na rua, desbocado, vulgar. Eu não tendo a enxergar o pecado no povo, o povo é o que pode ser. Os que mandam são os que não fizeram esforço algum para ser diferentes, para pensar em todo mundo, em vez de pensar somente neles próprios.

Mas o povo não tem uma responsabilidade por não reagir a isso?
Aí é que está. O golpe de 1964 é uma desgraça porque interrompe um processo, que não se realizaria no dia seguinte. Ia se realizar no espaço de 10 ou 15 anos, paulatinamente. Surgiria inevitavelmente aquilo que foi bucha de canhão dos grandes partidos de esquerda europeus: um operariado mais consciente. Os operários que não queriam ser operários, queriam ser burgueses. Hoje efetivamente a questão esquerda e direita tem de ser dimensionada de forma diferente, mas não no Brasil, ao contrário do que supõe o senhor Gabeira. Eu nasci na Itália, ela não vive um momento excelente – eu diria muito ao contrário –, mas apesar disso a Itália que saiu da guerra em escombros, muito atrasada, conseguiu superar-se graças ao Partido Comunista Italiano, que foi um grande partido, graças à presença de um proletariado que começou a ter consciência de sua força, e cuja força era de pretender ser burgueses. Eles eram proletários, mas queriam ser burgueses. Esse sonho todo de uma certa esquerda de que o operário adora ser operário é uma bobagem inominável. Isso encanta porque normalmente é uma esquerda mais ou menos intelectual, que gosta da companhia do operário porque depois diz: “Olha aí como eu sou generoso”. Não tem nada disso: o operário é ótima bucha de canhão. Eles querem ser burgueses. Na Itália, sindicatos fortes faziam greves gerais de um dia para o outro, paravam tudo. A elite brasileira que viajava para a Europa ficava desesperada, descia do avião e não tinha carregador para as malas; desciam dos trens e cadê os carregadores? Se queixavam muito. A greve parava mesmo, não tinha trem, você ficava preso em um lugar, tinha programado uma visita no dia seguinte e não podia viajar. Era muito triste.

E a imprensa noticiava isso?
A imprensa não funcionava se a greve envolvesse a categoria dos jornalistas, não funcionava e havia uma parte conspícua da imprensa que apoiava os trabalhadores. O jornal de maior tiragem na Europa era o L’Unità, do partido comunista. Estou falando dos anos 50. Havia três edições do L’Unità, em Roma, em Milão e em Turim, cada uma com sua redação. Hoje seria possível fazer um jornal só e mandar para qualquer lugar, mas nesse tempo não. Eram três redações distintas que tiravam 1,5 milhão exemplares por dia juntas. Portanto, era uma outra coisa.

O capitalismo brasileiro, depois dos estragos da passividade colonial, da escravidão e do autoritarismo na formação do país, não aprendeu com esses erros? Não amadureceu a ponto de querer construir um país menos concentrador?
Acho que eles estão pensando como sempre. Embora possa haver alguns sintomas de mudanças em cantos afastados das metrópoles. Rondonópolis (MT), me dizem que é um exemplo de lugar muito álacre e muito bem-sucedido, que avança à revelia dos padrões do Brasil que aparece mais. Eu acredito que possa acontecer uma espécie de revolução, não política, mas de hábitos relacionados inclusive com a produção na periferia do Brasil. Isso é possível e seria bom.

Mas os grandes centros ainda determinam os rumos do país, não?
Não sei. Sou bastante decepcionado com o governo Lula de vários pontos de vista, mas a eleição do Lula – e, muito mais que ela, a reeleição – mostra que uma mudança se dá. Talvez sem clara percepção por parte da maioria, mas os senhores do poder sabem perfeitamente da gravidade dessa mudança para eles. Tanto que malham o Lula automaticamente – não que ele não mereça, até porque ele faz tudo para agradá-los, sem conseguir, aliás. Mas eles sabem o significado da eleição de alguém que é igual ao povo brasileiro. Essa é a grande novidade. O povo brasileiro, que achava que o presidente da República tinha de ser bacharel e dormir de gravata, de súbito decide eleger um igual a ele, um operário, um tosco, despreparado, como diz a minoria branca. O Lula, a meu ver, não entendeu. Se tivesse entendido, teria ido bem mais longe do que foi. Por que agradar tanto aos banqueiros?

O que lhe desagrada mais?
Tem duas coisas que para mim têm importância e são positivas. Uma, muito claramente, é a política exterior. A segunda, a verificar os efeitos em longo prazo, é a expansão do crédito, que a meu ver é mais importante que o Bolsa Família, que é melancólico. Não porque eu ache que é uma medida assistencial, uma espécie de esmola. Não. É porque é triste. Um povo que se contenta com 50 paus a mais é porque realmente estamos mal. Agora, continuamos a ser exportadores de commodities.

Há quem diga que se Lula não tivesse cumprido os compromissos assumidos na Carta aos Brasileiros teria caído.
Eu duvido. Quem dá o golpe se o povo elegeu e reelegeu esse cara da forma como o elegeu e, sobretudo, como o reelegeu? A mídia compactamente contra ele, todo dia soltando informações sobre corrupção, envolvimentos terríveis com o que há de pior etc. etc., e assim mesmo ele foi reeleito. Quer dizer, a estratégia da minoria branca, que normalmente dá certo, desta vez falhou. Não acho que havia condições para nenhum tipo de golpe. Os grandes estadistas têm coragem. Claro, se ele me ouvisse dizer essas coisas, diria: “Ah, o Mino é um iludido, um anárquico”. Conheço o Lula há 30 anos, sei o que ele pensa. Em inúmeras vezes percebi que ele me achava incômodo. Sou amigo dele e gosto muito dele, o acho um sujeito extremamente dotado, além de tudo tem um QI muito bom. Mas falta peito, falta coragem.

Não acha que agora, no segundo mandato, ele está participando mais da política e sendo um pouco mais claro nas questões ideológicas?
Acho que o segundo mandato está pior que o primeiro. Fiz uma longuíssima entrevista com ele – 13 páginas – em novembro de 2005 e ele me disse: “Você sabe, Mino, que eu nunca fui de esquerda…” É um erro grotesco dos países de hoje, contemporâneos, dizer que a esquerda e a direta não existem mais. Como, se num país onde 5% vivem entre razoavelmente e bem demais e 95% vivem mal ou tragicamente? Como é possível dizer “aqui não existe esquerda e direita”? Tem uma metáfora magnífica que é a do metrô paulistano: se São Paulo tivesse um metrô digno de uma grande capital, como Londres, Paris, você teria muito menos carros na rua. O metrô é um transporte fantástico. Não! Eles cuidaram de construir túneis. Agora tem a ponte Espraiada e uma prefeita do PT chamou aquilo de Conjunto Viário Roberto Marinho, um salteador que infelicitou o Brasil, uma vergonha mundial, “jornalista”… Este é o único país que eu conheço onde jornalista chama o patrão de colega e o patrão consegue com o sindicato uma carteirinha de jornalista. Isso é Idade Média. Uma vergonha! Aqui temos diretores de redação por direito divino.

E como o país caminha para 2010?
Mal. Acho que se o Lula não se convencer de que não consegue fazer seu candidato, que não tem chance, que ele não transfere seu prestígio pessoal – e o Aécio já está dizendo isso –, ele vai optar por essa solução (mostra capa da Carta Capital de 2/4/2008, com reportagem abordando a possibilidade de Aécio Neves sair para presidente com Ciro Gomes de vice). E essa dupla (Aécio e Ciro) vai fazer as mesmas coisas que estão sendo feitas agora. Não imagine mudanças.

Como você vê o PT nessa história?
Há no horizonte claramente esboçada uma crise do PSDB, mas há também uma crise do PT, que no fundo já está em andamento. Já houve uma primeira fratura e haverá inevitavelmente outra. Eu sei que o Luiz Dulci (ministro da Secretaria-Geral da Presidência e liderança do PT de MG) não concorda com essa aliança mineira (do PT e do PSDB em torno do candidato do PSB à Prefeitura de BH). O Lula está feliz da vida com essa pax mineira. Há dentro do PT quem perceba que o partido está sendo de alguma forma diminuído, está perdendo peso, prestígio e importância.

Mas você vê um futuro com o Lula rompido com o PT?
Não posso crer. Acho que os partidos brasileiros não existem, são clubes recreativos para a minoria branca. Mas eu cheguei a achar que o PT tinha algo diferente. Nunca fui ligado a partido, mas apoiei muito o PT no seu nascimento, dentro das minhas modestíssimas possibilidades, porque sempre entendi que um partido forte de esquerda no Brasil, com coragem e determinação, poderia ter um papel muito importante. Mas o PT, em última análise, no poder, mostrou-se igual aos outros. É claro, o Brasil está crescendo no momento, mas está crescendo em cima de commodities, vamos ser claros! Isso é um futuro maravilhoso? Eu diria que não.

O que o governo deveria fazer para mudar isso?
É uma questão mundial. O deus-mercado é o pior dos deuses que o homem já conseguiu inventar. É uma desgraça. As bolsas do mundo – aliás, o Brasil cogita criar a terceira maior – são cassinos. Privilegiou-se a produção de dinheiro, em lugar da produção de bens. E eu me pergunto: isso leva a quê? O Brasil está nessa.

Tem alguém no mundo que não esteja?
Não, acho que o mundo está submetido a essa idéia. E estamos vendo que o mundo piora a cada dia. Temos por exemplo a “arte moderna”, uma prova da imbecilidade do mundo.

O Caio Túlio o procurou quando você deixou o IG em solidariedade a Paulo Henrique Amorim?
No próprio dia em que o Paulo Henrique caiu fora ele (Caio Túlio Costa, diretor do IG) ligou um monte de vezes, e eu acabei falando com ele à noite. Ele queria colocá-lo dentro de um fato consumado, deu as razões dele (por tirar Amorim do IG sem prévio aviso, meses antes de terminar o contrato). “Eu não quero perder você, pelo amor de Deus”. Aí a questão é de princípios. Eu não tenho dúvidas que o Caio Túlio agiu porque foi autorizado a tanto.

Você costuma navegar pelos blogs ou não se rendeu ao computador?
Não, tenho medo de computador. Computador me engole, ele tem uma bocarra que esconde os dentes, é coisa pior que tubarão. Se chegar muito perto, ele me engole. Já engoliu um monte de gente, principalmente a garotada, que vai pagar caro por isso.

Mas como você faz para responder aos seus leitores?
Tem aí uns escravos (risos, apontando para a redação).

Você compartilha da opinião de Paulo Henrique de que a internet como meio de comunicação é o “must”?
Eu diria que o instrumento é uma coisa e o homem que usa é outra. É como a televisão. Não é um instrumento fantástico? Você pode usá-la com os piores propósitos ou com os melhores. Idem a internet.

Paulo Henrique define a internet como o último reduto do jornalismo independente, pois o meio impresso, o rádio e a TV já estão dominados.
Isso no Brasil, nas nossas circunstâncias. Certamente não é na Europa. No Brasil é inevitável que ela também seja controlada, está sendo, o Brasil é medieval. A Europa não me parece que seja assim. Não que a internet não tenha uma razão de ser também lá. Mas se você pensar na mídia européia, por mais que existam lá os murdoch e os berlusconi, há uma diversidade muito grande. De alguma maneira, todas as tendências possíveis estão representadas na mídia. Na Itália tem um jornal extraordinário, o Il Manifesto, com paginação brilhantíssima, e de esquerda razoavelmente radical, não brinca em serviço.

De que jornais você gosta?
Il Manifesto é excelente. Não gosto muito do El País, aos espanhóis falta senso de humor, eles levam tudo muito a sério. A mídia americana já foi excelente, hoje está muito mal, como os Estados Unidos. La República é um jornal muito bom, muito melhor que o El País. Guardian, Independent são excelentes, de centro-esquerda, não de esquerda, mas muito bons. O Le Monde acabou, hoje é um jornal claramente comprometido. Já foi importante, até pela tentativa de criar ali uma cooperativa de jornalistas, de passar por cima e eliminar a figura do patrão. Infelizmente, e isso é cada vez mais claro, qualquer empreendimento editorial tem de ser encarado como negócio. Precisa ter retorno, senão você fecha.

Esse seu posicionamento em relação à elite branca gera algum problema comercial, de captação de publicidade para sua revista?
Gera. Tem muito publicitário que se submete à manipulação da Globo, da Veja, que repete as frases feitas da moda. É uma categoria muito alcançada por esse tipo de estratégia da minoria branca. Ela própria pertence à minoria branca. Ali tem um monte de gente que descobriu o vinho faz alguns meses e toma vinho nos restaurantes, e o ficam girando no copo e olhando e tal, e tem gravatas amarelas dessa largura, que são um símbolo dessa gente que está por dentro.

Você não tem gravata amarela?
Em princípio, não tenho nada contra, depende de como você a usa. Num tom não muito agressivo, usada com um paletó de tweed irlandês, por exemplo, eu diria até uma gravata de lã, é aceitável. Mas eles usam com terno azul marinho! (risos)

O que o anima? Cozinhar?
Sim, claro, cozinhar, comer.

Você come aqui no seu vizinho, o Massimo?
Nas noite de quinta, mas vai mal o Massimo. Houve uma briga entre os dois irmãos. Morreu a mãe, que era o tecido conectivo, e desandou. O Massimo propriamente dito já saiu, está aí o irmão. Mas não está indo bem.

Onde se come bem em São Paulo?
Dizem que é uma capital gastronômica do mundo… Mas come-se muito mal. É possível que aqui se possa comer comida japonesa muito bem – acho uma comida muito bonita, bem apresentada, uma arte, mas a comida em si, confesso, não me diz nada. Comida árabe eu acho muito saborosa, eu acho um quibe cru ótimo, uma abobrinha recheada ótima, é uma comida agradável, mas acredito que aqui a comida árabe no sentido completo da palavra não existe, porque sei de árabes que comem de uma forma bem mais criativa e com um cardápio muito mais amplo. A comida italiana em São Paulo é uma piada, dá para rolar de dar risada. A francesa também. Eu gosto de comer no Rufino porque tem um peixe muito fresco que eles fazem no vapor, temperam com azeite limão e sal, e está perfeito. Tem um restaurante engraçado, o La Frontera, do lado leste do cemitério da Consolação. De lá, eu olho para o canto onde está o Cláudio Abramo e isso facilita a minha digestão. É um restaurante engraçado, espirituoso, ambiente legal.

Você deu uma boa receita de bacalhau no blog.
Aquele bacalhau é um bacalhau à siciliana, não é único. Eu entendo que há três pratos de bacalhau que são imbatíveis. À portuguesa clássico, com legumes cozidos na água com bastante azeite, e o próprio bacalhau cozido na água com azeite, no fogo lento, por oito minutos mais ou menos, com dentes de alho que depois você retira, ovo duro, azeitona preta. Você sente o bacalhau, não é encoberto por molho ou coisa assim. Depois tem o bacalhau à espanhola, aquele em camadas: batatas, cebolas, pimentão, tomate, bacalhau. É excelente. E o outro é esse à siciliana, que faço com molho de tomate.

Você vai ao cinema, teatro?
Ao cinema eu não vou muitíssimo, mas vou. Infelizmente, São Paulo não recebe todos os filmes que eu gostaria de ver, mas recebe alguns, como esse filme dos irmãos Cohen (Onde os Fracos Não Têm Vez), extraordinário. Gostei desse Oscar. O Sangue Negro, eu gostei menos, está clara a metáfora do capitalismo e eu acho que essa idéia está perfeita, mas a realização e a interpretação do ator, que é endeusado, esse Daniel Day-Lewis, eu não gostei. E a culpa nem é dele, é do roteiro, você não entende direito o que é aquele cara. Aí você diz “é um louco”, e no que um louco representa o capitalismo? O capitalismo é outra coisa, tem de ser um cara muito esperto, muito egoísta, muito violento.

Você viu Jogos do Poder, em que Tom Hanks faz o papel de um deputado republicano que abasteceu a guerra do Afeganistão?
Um grande filme com o Tom Hanks é o Forrest Gump, que é uma metáfora dos Estados Unidos muito boa. (Sobre os Estados Unidos na guerra) assisti no último fim de semana em CVD, CDV…

DVD!
(Risos) Vê como eu sou tecnológico? Aliás, alguém tem de colocar o disco para mim, porque até agora eu não entendi como vai… Assisti ao No Vale das Sombras, com uma interpretação magistral de um ator chamado Tommy Lee Jones, que está no filme dos irmãos Cohen. É história de um marine cujo filho é chamado para a guerra no Iraque. É um bom filme, um pouco lento para o meu gosto também, mas a figura é perfeita, ao contrário do Sangue Negro, que não me entusiasmou. Gostei muito dos dois filmes do Clint Eastwood. Mas os dois são um pouco compridos. No que descreve o lado japonês (Cartas de Iwo Jima), à certa altura eu começo a sentir os glúteos em estado de letargia. Aí é ruim. O do lado americano (A Conquista da Honra) eu achei mais fácil de ver, e o outro, mais bonito. Mas o mais bonito nem sempre é o que você prefere, porque acontece que os glúteos se manifestam.

Falando em glúteos que se manifestam, você pensa em se aposentar?
Não, não tenho idade.

Depois de Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, Jornal da República, Carta Capital, qual é a próxima cartada?
Não, não tem próxima. Eu estou pensando em escrever um livro, o terceiro, que seria “O Brasil”, falando do Brasil, o que é o Brasil para mim. Mas não escrevi nada ainda.

Quem vai passar para o computador?
A Mara.

A Mara é sua escrava?
É uma das.

E quem conserta a máquina?
A Mara chama o técnico. Às vezes encavala a fita.

Ainda se faz fita para máquina de escrever?
Faz, acho que estão pensando em mim. É uma regalia. Eu tenho uma Olivetti Lettera 32 em casa e esta (Linea 88) aqui no escritório. Não me largam.

Nós ainda pegamos essa fase da máquina de escrever, pegamos a transição.
Você é muito novo.

Tenho 43.
É surpreendente. O meu filho (Gianni) tem 44.

Você tem mais filhos.
Tenho também uma filha (Manuela) e um enteado. Casei duas vezes. O primeiro casamento foi um episódio discutível, mas produziu dois filhos, e tem uma grande ligação entre nós. Depois tive um segundo casamento, muito bem-sucedido, muito feliz. Foram 29 anos de vida em comum. Infelizmente ela (Angélica) morreu, faz 11 anos, de câncer. Foi um baque. Era um casamento muito bom, mesmo. Eu tive, de certa forma, essa sorte e também padeci dessa desgraça. A sorte confrontada com esse momento é um golpe. Até hoje tomo todo dia remédio para estabilizar os humores. Eu sempre tive uma saúde de ferro. Nunca tinha tomado nem remédio para dormir, e durmo pouquíssimo. Aí eu comecei a querer me atirar pela janela. Faz 11 anos que eu tomo esse remédio.

Você chegou a parar de trabalhar?
Ela, durante anos, sempre venceu as paradas muito bem. Você olhava para ela e dizia “ela está ótima, não tem doença alguma”. Mas a partir de setembro de 1996 a coisa começou a ficar muito feia e eu me dediquei muito a ela (muito emocionado). Ela foi a melhor pessoa que eu conheci na vida. Além de ser a mulher que me despertava, era certamente a pessoa mais importante.

Seus filhos são casados?
Minha filha é divorciada, meu filho é muito bem casado, mas ele é um rapaz esperto, casou-se com 36 anos. Os dois são jornalistas. O meu enteado é casado e o filho dele do primeiro casamento, que está completando 16 anos, vive comigo. Era muito ligado à avó. A casa dele, para ele, é a nossa casa. Meu filho mora fora do Brasil desde os 15 anos. A minha filha é publisher disso aqui, é a única da família que lida com dinheiro. Eu me mantenho o mais possível longe, porque posso causar estragos absolutamente inimagináveis.

Onde você economiza?
Economizo na idéia de que é melhor você ter uma equipe pequena e bem paga – isso é muito claro para mim desde que saí da Veja, porque a partir daí tive de inventar outros empregos. Isso, além de tudo, cria uma afinação entre as pessoas, um entendimento, uma harmonia e um ambiente muito produtivo.

Você poderia posar para umas fotos?
Mas como? Eu sou um velho ridículo… Onde você quer?