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O espetáculo antijornalístico

As quartas-feiras à noite eram, até pouco mais de um mês, prioridade do futebol nos principais canais de televisão do país. No último dia 07, a Rede Globo “perdeu” a transmissão do primeiro gol do São Paulo contra o Nacional do Uruguai, no Morumbi, para transmitir a prisão do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Helicópteros seguiam a comitiva de carros do Batalhão de Operações Especiais de São Paulo, enquanto mais de 800 pessoas acompanhavam a prisão em frente ao apartamento de onde saiu o casal. Esse é apenas um exemplo banal para mostrar o quanto a mídia espetacularizou um caso e deixou a informação não sensacionalista de lado. Estamos realmente passando por uma crise do jornalismo.

“Quando um fato que realmente é importante simplesmente não é noticiado porque não tem capacidade de emocionar significa que o trabalho jornalístico está sendo totalmente distorcido”, afirmou o professor Carlos Alberto Di Franco, em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line. Nesta conversa, ele analisa o tratamento que a mídia deu para os casos Isabella e Ronaldo, reflete sobre a espetacularização que a mídia e, ainda, sobre a possibilidade da criação de um Conselho de Comunicação no país. “Eu acredito que o que funcione mesmo seja a sociedade civil organizada; não vejo outra saída além dela”, disse.

Carlos Alberto Di Franco é diretor do Master em Jornalismo para Editores do Instituto Internacional em Ciências Sociais, da Universidade de Navarra, do qual também é representante da Faculdade de Comunicação no Brasil.

Confira a entrevista.

Por que a mídia dá tanta atenção a casos como o de Isabella e do jogador Ronaldo e não analisa, por exemplo, o aumento considerável de casos de violência contra a criança no país?
Carlos Alberto Di Franco
– Eu acredito que isso tenha uma explicação do ponto de vista da mecânica da mídia, de como ela funciona na realidade. É evidente que temos problemas graves de prostituição infantil, de pedofilia, de violência contra as crianças etc., mas o que acontece é que existem determinados casos de grande impacto na opinião pública ou que envolvem a chamadas “celebridades”, com um apelo muito forte para a mídia. Apelo forte exatamente porque são fatos geradores de audiência, e a tendência da mídia é embarcar nisso.

O que tem faltado, em minha opinião, é mais equilíbrio ao se noticiar esses fatos e aproveitar cada episódio para entrar nos temas mais problemáticos e aprofundar  questões subjacentes. O Estado de S. Paulo fez uma matéria interessante no terceiro ou quarto dia do caso Isabella. Ele deu uma página inteira falando das Isabellas que não foram notícia. Então, o jornal levantou o caso de dez crianças que morreram em situação parecida e cujos casos não foram esclarecidos ou não apareceram nas “páginas da História”.

Esse tipo de edição de jornal é interessante, porque, a partir de um caso que chama a atenção do grande público, lançou luz para o problema de fundo, para a ausência de resolução para outros casos. Penso que a razão seja essa. A mídia está muito sensível para tudo que diga respeito a espetáculo, a show, a entretenimento. Como existem episódios que estão muito mais ligados ao espetáculo do que à informação, isso explica a tendência de a mídia ir atrás desse tipo de informação.

Há culpados por essa espetacularização da mídia?
Carlos Alberto Di Franco
– Há coisas, a meu ver, que se realimentam. Por um lado, você pode observar que a cobertura foi muito mais grotesca e exagerada por parte da televisão do que da mídia impressa. Porque a televisão está absolutamente monitorada pelo ibope. As decisões editoriais da televisão, infelizmente, com muita freqüência são decisões que não estão pautadas por critérios estritamente editoriais, de avaliar a importância da notícia, de sua repercussão pública, mas sim por oscilações no ibope. Por outro lado, a sociedade também vai atrás desse tipo de matéria, ou seja, no fundo existe uma tendência que é humana, explicada pela Psicologia, que diz que o espectador tem atração por aquilo que é mórbido e pelo que emociona. Claro que uma pessoa mais culta é menos influenciável por esse tipo de conteúdo. Por isso, a grande batalha do Brasil é vencer a batalha da educação.

Numa sociedade educada, é evidente que o nível da programação é mais exigente. Você pode reparar que os telejornais que mais exploraram o episódio foram os de perfil popular, exatamente porque as pessoas que consumem esse produto são menos educadas e, portanto, mais influenciáveis. Então, uma coisa alimenta a outra: a televisão está atrás de audiência e produz espetáculo. Enquanto isso, o público alimenta a audiência, assistindo ao espetáculo e fazendo com que a televisão aumente seus índices e a transmissão de programas mais impactantes. Isso se transforma num círculo vicioso e que deveria ser transformado, segunda a ética, num círculo virtuoso.

No caso Isabella Nardoni, em que medida a ação da mídia interfere na investigação e/ou julgamento do caso? Podemos dizer que ela dificulta o processo?
Carlos Alberto Di Franco
– A culpa é dos dois lados: da mídia e das autoridades. Na verdade, quem começou a confundir a área não foi a mídia, mas o Ministério Público e a polícia. Quando o crime ocorreu, a delegada de polícia passou a falar como se fosse uma celebridade, dando entrevistas constantemente, chamando um dos suspeitos de assassino. Isso tudo numa fase inicial de investigação, o que é inacreditável. O promotor de Justiça falou tanto que foi advertido pelo Judiciário, e o caso passou a transcorrer em segredo de justiça, em função do excesso de declarações dele. É evidente que quem deu o primeiro passo foi a autoridade pública. Então, a mídia entrou e começou a publicar coisas que não tinham, necessariamente, a ver como a realidade. Pior ainda foi quando ela começou a noticiar a ausência de notícias, ou seja, durante muitos dias, quando não tínhamos fatos novos, eram feitas chamadas como: “No próximo bloco, acompanhe o caso Isabella”. Entretanto, não havia novas notícias, mas replays de cenas de dias anteriores, imagens repetitivas. Quer dizer: show, espetáculo, sem algum fundamento noticioso e, portanto, antijornalístico, porque o jornalismo é, por definição, passar para o consumidor, telespectador ou leitor, uma informação. Quando não existe informação, o jornalismo não precisa estar presente.

No cotidiano do jornalismo, quando termina a informação e começa o espetáculo?
Carlos Alberto Di Franco
– A informação termina com o trabalho jornalístico que reclama, apura, denuncia se for o caso, presta serviços etc. O espetáculo começa quando acaba o jornalismo, pois ele é o contrário da notícia. É quando se considera que as coisas são importantes não porque de fato ocorreram, mas sim pelo poder que elas têm de emocionar o telespectador. Isso é gravíssimo, porque estamos caminhando para um jornalismo que até pode prescindir do jornalista. No entanto, não se precisa de jornalista para produzir um espetáculo, mas produtores do mundo do entretenimento. O jornalismo exige um editor, alguém capaz de ponderar sobre a importância dos fatos. Todos os dias, temos, por exemplo, 500 acontecimentos. Desses, ele vai passar para o seu leitor ou espectador uns 15. Essa seleção é feita por alguém que sabe da importância dos fatos, que sabe separar o que é um fato relevante e o que é um fato intranscendente. No mundo do espetáculo, isso não acontece, porque o que não tem importância passa a ter na medida em que tem capacidade maior de emocionar. Quando um fato realmente importante simplesmente não é noticiado, porque não tem capacidade de emocionar, significa que o trabalho jornalístico está sendo totalmente distorcido. A meu ver, estamos assistindo a uma crise importante do trabalho jornalístico.

E desde quando essa crise se dá?
Carlos Alberto Di Franco
– Ela foi muito acentuada por alguns fatores. O primeiro é a crise da reportagem. Há alguns anos, você tinha um investimento grande dos jornais em reportagens, porque elas viam a realidade mesmo, ou seja, o repórter saía, a fim de conversar com a fonte, checar os dados. Entretanto, hoje 70% das informações são passadas por telefone, ou seja, o repórter faz matéria sentado na redação. Às vezes, eu brinco que, dependendo da localização do pauteiro – aquele que vai dizer o que se vai cobrir –, na redação, ele não sabe nem como está o tempo. E é essa pessoa que vai definir o que sairá no jornal no dia seguinte, o que está acontecendo de importante. Em grande parte, a crise começa aí. Quer dizer, quando você perde a capacidade de ver a vida como ela é, de procurar conhecer a realidade de perto, de ver as pessoas face a face, presenciar a reação delas, você vira facilmente refém do mundo da frivolidade, da superficialidade, do mundo do espetáculo, que não precisa de aprofundamento, mas, sim, de sensacionalismo, que não tem relação direta com o jornalismo.

Se jornalismo passa a não mais informar e apenas a suscitar emoções nos espectadores, podemos prever um fim para esse profissional?
Carlos Alberto Di Franco
– Eu não prevejo o fim, porque considero existir muita gente trabalhando bem. Há jornais que fazem bons produtos, e a sociedade demanda um bom jornalismo. Penso que as pessoas, num primeiro momento, foram atraídas pelo caso Isabella e outros casos espetaculares por uma reação momentânea. Mas, num segundo momento, quando é o momento da razão, quando se emite um juízo de valor, elas vão condenar o jornalismo que fez isso, sem a menor dúvida. Uma coisa é a curiosidade, e outra é a aprovação. Isso os jornais não estão percebendo. Eles estão, num processo de suicídio, dando um “tiro de morte” na credibilidade. Num segundo momento, você pode ter certeza de que vai se estabelecer uma grande discussão a respeito da qualidade dessa cobertura. Isso, inclusive, já está acontecendo e vai sobrar para a televisão.

Existe, de qualquer modo, muita coisa boa sendo feita, por gente com boa percepção, afinal o público precisa da informação. Eu preciso da informação para viver, mas não do espetáculo. As informações são necessárias para eu tomar decisões na minha vida. Isso apenas o verdadeiro jornalismo pode fazer, não o mundo do espetáculo. Em suma, eu acredito que haja muito espaço para o jornalismo de qualidade.

Do ponto de vista "legal", o que falta para as empresas de Comunicação exercerem a sua responsabilidade social?
Carlos Alberto Di Franco
– Falta uma cobrança maior da sociedade. Se você analisa um pouco a qualidade da televisão brasileira, você percebe que ela não está cumprindo o que rigorosamente o que a Constituição, no artigo nº 221, determina, ou seja, dar prioridade aos assuntos educacionais, culturais. Na televisão, não há prioridade alguma aos assuntos educacionais e culturais. Então, a Constituição está aí um pouco para inglês ver. Como se consegue cumprir isso? Exercendo a cidadania, eu acredito muito na pressão do telespectador. No mundo inteiro, existem telespectadores que cobram duramente a televisão. A BBC de Londres foi obrigada a estabelecer um código de ética interno pressionada pelos telespectadores. Todos os anos, ela precisa publicar um relatório de prestação de contas do seu código de ética aos seus telespectadores. Vendo isso, percebo que somos passivos, assistimos ao espetáculo e queremos que o governo cobre as televisões. Não vejo outra saída senão o exercício da cidadania.

Qual é a sua opinião sobre a criação de um Conselho de Comunicação?
Carlos Alberto Di Franco
– Trata-se de uma teoria, ou seja, é criar mais uma estrutura burocrática. Já temos a Comissão de Comunicação no Senado, que não faz absolutamente nada. Eu não acredito, infelizmente, olhando o quadro público brasileiro, nos políticos brasileiros. Embora sejam necessários, o quadro que assistimos é bastante triste. Eu acredito que o que funciona mesmo seja a sociedade civil organizada; não vejo outra saída além dela.