Arquivo da categoria: Entrevistas

Canais de TV que alugam horário para igrejas são alvo de ação do Ministério Público Federal

Pela primeira vez, o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) vai recorrer à Justiça para combater o mercado de aluguel de horário da programação de TV e rádio a igrejas. O alvo principal da ação são as emissoras que lucram arrendando partes de sua grade para igrejas, que hoje possuem presença maciça na programação da TV aberta. Nas duas ações protocoladas, a Procuradoria move acusação contra a Rede 21 (UHF do grupo Bandeirantes), a TV CNT e a Igreja Universal do Reino de Deus e seus respectivos representantes legais.

Na ação, a Rede 21, o vice-presidente da Band, Paulo Saad Jafet, e o superintendente de operações e relações com mercado José Carlos Anguita são acusados de violar dispositivos do Código Brasileiro de Telecomunicações, regulamentações do setor e a Lei Geral de Telecomunicações, regulamentações do setor e a Lei Geral de Telecomunicações, isso porque firmaram contrato que cede 22h diárias da grade da emissora à Igreja Universal.

Para o Ministério Público, o contrato da Rede 21 com a Universal é ilegal, pois caracteriza “alienação de concessão pública”. O MP pede que a invalidação da outorga e a declaração de inidoneidade dos envolvidos, fato que se for consumado os impede de participar de novas licitações. A ação também pede que indenizem a União e sejam condenados por danos morais, a indisponibilidade dos bens dos citados e a suspensão de transmissão da Rede 21. Ação similar foi também protocolada contra a CNT, que aluga 22h diárias de sua grade à Universal.

Membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Pedro Ekman, disse à Fórum que acredita na punição dos canais. “A lei sobre o tema existe há muito tempo, mas o governo nunca se deu o trabalho de fiscalizar o seu cumprimento. Acredito que nunca houve punição para esse tipo de prática simplesmente por nunca ter havido uma postura ativa do governo em relação à isso. Essa é uma ação inédita na justiça e acho difícil que um juiz se furte da responsabilidade de aplicar a lei”, comenta.

Confira a entrevista:

O que você acha da ação do Ministério Público Federal?

Pedro Ekman – A ação do MPF é o resultado da atuação do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (FINDAC), que conta com a participação de organizações da sociedade civil como o Intervozes, Artigo 19 e Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. É fundamental para a democracia brasileira que uma instituição da importância do Ministério Público tenha iniciativas como essa que olham com prioridade para a defesa do direito da sociedade à comunicação, sobretudo com uma dinâmica de participação social.

Você considera que a ação vai adiante e que, de fato, estes canais serão punidos?

P.E. – A lei sobre o tema existe há muito tempo, mas o governo nunca se deu o trabalho de fiscalizar o seu cumprimento. Acredito que nunca houve punição para esse tipo de prática simplesmente por nunca ter havido uma postura ativa do governo em relação à isso. Essa é uma ação inédita na justiça e acho difícil que um juiz se furte da responsabilidade de aplicar a lei.

Acredita que a locação de grade horária pode acabar?

P.E. – Se os canais quiserem continuar alugando sua programação para terceiros, eles vão ter que restringir essa prática a 25% do tempo total de sua programação sem poder estabelecer mais nenhum tipo de contrato publicitário, o que não seria financeiramente interessante. Os canais vendem sua grade como uma forma de burlar o limite definido em lei. Não dá para seguir desobedecendo a lei indefinidamente, principalmente com o Ministério Público no seu pé. Acho que temos pela primeira vez na história da comunicação brasileira uma boa chance de acabar com essa prática que atenta contra o direito à comunicação.

Entrevista concedida a Marcelo Hailer, publicada no Portal Fórum

“Não há qualquer projeto de esquerda que implique na ampliação dos direitos sem a democratização dos meios de comunicação”

No dia 30 de novembro, a Frente Ampla elegeu Tabaré Vasquéz para comandar o Uruguai até 2020. O resultado das urnas mostrou que as políticas de desenvolvimento local e de ampliação de direitos trabalhistas e sociais desenvolvidas nos últimos 10 anos (primeiro com Tabaré e depois com Pepe Mujica) foram aprovadas pelos uruguaios. E a agenda política que saiu vitoriosa das urnas sinaliza para a ampliação de direitos e adoção de políticas para aprofundar ainda mais a democracia. Nesse contexto, uma das primeiras e mais polêmicas agendas a serem enfrentadas, ainda neste ano, é a discussão no Senado da Lei de Serviços Audiovisuais.

Pouco antes do primeiro turno da eleição, estive no Uruguai e entrevistei o jornalista Gabriel Mazzarovich sobre as dificuldades em se fazer avançar a agenda da democratização da comunicação no Uruguai. As similaridades com os problemas que enfrentamos no Brasil são muitas. Inclusive no discurso blocado dos “barões da mídia uruguaia”, que como nos disse Mazzarovich é a de que “a melhor lei de meios é a que não existe”.

Por isso, assim que perceberam a franca maioria da Frente Ampla no parlamento e o favoritismo de Vásquéz, os empresários dos meios de comunicação no Uruguai rapidamente se mobilizaram para manifestar seu repúdio ao projeto de lei construído pela Frente Ampla com apoio das entidades que participam da Coalização por uma Comunicação Democrática. O Diário El País estampou manchete nesta segunda-feira (01/12) destacando a posição da Associação Nacional dos Radiodifusores Uruguaios que taxa a proposta em tramitação no Senado de autoritária. “Em regimes autoritários da história do homem, como os fascistas, os mussolinistas e os stalinistas, ou em Cuba que não há liberdade para nada, ou na Venezuela onde estão fechando os veículos, há leis desse tipo”, afirmou o presidente da Andebu, Pedro Abuchalja. A reação é claramente uma tentativa de obstruir o debate, que contou com o apoio explícito do presidente eleito.

Se há uma clara semelhança entre a postura dos donos da mídia lá e aqui no Brasil, uma diferença entre a situação brasileira e a uruguaia nesta pauta é gritante e nos coloca, brasileiros, em grande desvantagem: no Uruguai há um projeto de lei tramitando no Congresso, já aprovado pelos deputados e aguardando votação no Senado, onde a Frente Ampla tem maioria para aprovar a proposta que conta com o apoio do atual presidente e do presidente eleito.

Mas, apesar do compromisso em votar o projeto ainda este ano, a luta política em torno da democratização da comunicação no Uruguai ainda tem um vasto caminho que passa, necessariamente, como alertou Gabriel Mazzarovich pela mobilização da sociedade em torno desta pauta, que é estratégica para qualquer projeto de poder.

ComunicaSul – Como está atualmente o debate sobre a comunicação no Uruguai?

Gabriel Mazzarovich – No Uruguai, assim como no mundo inteiro, o tema dos meios de comunicação para a esquerda e para o movimento popular é um tema que apenas recentemente vem sendo tratado como um problema estratégico. Muitos dos nossos companheiros dizem que há governos que governam bem, mas que têm problemas de comunicação. Nós dizermos que se a esquerda tem problema de comunicação, então governa mal. Comunicar é parte de governar e é parte de fazer política, sempre foi, mas nesta sociedade é muito mais. A democratização da sociedade é estratégia de poder e para fazer o debate da democratização da comunicação é preciso discutir poder. Há setores da esquerda e do movimento popular uruguaio que sequer o reivindicam, que a sua perspectiva estratégica é um programa de governo de cinco anos. Mas a nossa perspectiva estratégica é a revolução, portanto é uma perspectiva estratégica histórica e que necessita da democratização dos meios de comunicação, porque eles são um ponto central do poder. Não há democratização da sociedade possível e nem qualquer projeto de esquerda que implique na ampliação dos direitos sem a democratização dos meios de comunicação.

ComunicaSul – E como este debate está organizado na sociedade uruguaia?

Gabriel Mazzarovich – Temos no Uruguai a Coalização por uma Comunicação Democrática, um espaço muito amplo que integra o movimento sindical, as faculdades de comunicação, sindicatos de jornalistas, mas que tem tratado do assunto como um tema de lobby, realizando grandes seminários. Isso é muito importantes, mas nós estamos convencidos de que se não colocarmos milhares de pessoas nas ruas para lutar por esta pauta não teremos êxito. Porque os grandes meios de comunicação são os reis do lobby, eles o inventaram. Por isso temos que ter milhares de pessoas nas ruas.

ComunicaSul – E nos dez anos de governo da FA não houve avanços na pauta da Comunicação?

Gabriel Mazzarovich – O que mudou nos últimos anos. Nós, no Uruguai, temos um sistema de meios de comunicação parecido com o de outros países da América Latina, e que pode ser definido por quatro palavras: privado, comercial, concentrado e estrangeirizado. É uma merda. Um desserviço para a democracia uruguaia. No Uruguai vivemos num país capitalista, a propriedade capitalista está garantida pela Constituição, e existe propriedade capitalista em todos os setores da economia, menos na Comunicação. Na Comunicação a propriedade é feudal. As concessões de radiodifusão existentes foram outorgadas sem nenhum tipo de concurso e não têm fim, não têm prazo para acabar; 60% das concessões de rádio que existem no Uruguai foram outorgadas pela ditadura e ainda seguem vigentes. A direita segue sempre com o mesmo discurso que a melhor lei de meios é a que não existe. É mentira. No Uruguai existe uma lei de meios, é o único setor do Uruguai que continua sendo orientado por uma lei da ditadura. Mesmo com a recuperação democrática e 10 anos de governo de esquerda não conseguimos revogá-la. Não conseguimos mudar essa maldita lei da ditadura. Mas ainda assim, no governo da FA foram feitas várias coisas.

A primeira foi a lei das radiocomunitárias, que é um avanço histórico para o Uruguai no qual o Estado deixou de ser repressivo e passou a ser um Estado com ambição de inclusão. A lei estabelece pela primeira vez nas leis uruguaias três espaços para os meios de comunicação: o espaço privado, o espaço comunitário e o espaço público e estabelece que estes espaços devam ser equivalentes. Isso foi fundamental porque aqui se criou o antecedente para todo o resto. Hoje, 95% das rádios são privadas e 80% dos canais também. Todas as novas frequências estão sendo alocadas para as rádios comunitárias e para aumentar a presença das rádios públicas. Falta muito, mas efetivamente criamos este espaço.

O governo da Frente Ampla estabeleceu por decreto presidencial — por isso é tão importante a lei de serviços audiovisuais, já que decreto pode ser mudado por outro presidente – que é obrigatório haver licitação e audiências públicas para destinar as novas frequências e ainda proíbe a entrega de frequências radioelétricas um ano antes das eleições e seis meses depois de assumir o mandato. Porque é neste período que elas são repartidas para favorecer a cobertura da campanha e para dar os serviços aos candidatos e a FA é a única força política que não fez isso. Outro tema principal é o decreto da TV Digital, que definiu a distribuição das novas frequências da TV Digital a partir de um concurso público, que teve os seus problemas, mas que foi um concurso público, com audiência pública, os pleiteantes tiveram que apresentar um projeto de comunicação, foram julgados, e as concessões têm prazo para terminar (25 anos). Além disso, a cada 5 anos as emissoras serão submetidas a uma avaliação e se não cumpriram com seus planos de investimento e programação podem ter suas outorgas canceladas. Mas, mesmo com essas medidas, nós reiteramos que precisamos de uma nova lei de serviços audiovisuais porque ela é um instrumento legal e tem um peso que não têm os decretos.

ComunicaSul – E o que propõe a Lei de Serviços Audiovisuais?

Gabriel Mazzarovich – A lei de serviços audiovisuais é muito mais ampla. Ela outorga pela primeira vez direitos à audiência, cria-se a figura do defensor da audiência, estabelece a participação dos trabalhadores no acompanhamento da lei, estabelece que as emissoras devam respeitar os direitos trabalhistas e a liberdade sindical. Pela lei fica obrigada a reserva de uma porcentagem da programação para exibição de conteúdo nacional, estabelece critérios de como se devem dar as notícias de violência para proteger os direitos das crianças e adolescentes, estabelece prazos para a vigência das outorgas e estabeleces a divisão do espectro em terços: 1/3 privado; 1/3 comunitária e 1/3 pública. E mais, se não for possível ocupar o espectro reservado para o campo comunitário e público, porque não existiram propostas, esses espaços não podem ser oferecidos aos meios privados, eles se mantêm em reserva até que se tenha uma proposta comunitária e pública. O privado fica limitado a 1/3 do espectro. Este é o projeto de lei que o parlamento está discutindo, que já tem a aprovação dos deputados e agora resta ser aprovado pelo Senado.

ComunicaSul – E como é o cenário das Telecomunicações? O serviço no Uruguai é público certo?

Gabriel Mazzarovich – Sim. Nós temos uma coisa distintiva no Uruguai. Ainda durante a ditadura se criou Antel como ente das telecomunicações. Porque os milicos já tinham claríssimo, eles sim tinham estratégia de poder. Nós mantemos com vocês (privados) os meios de comunicação e cuidamos das telecomunicações, que são o futuro. E é lindo nós termos uma empresa de telecomunicação estatal, estratégica, e que é central para qualquer projeto de desenvolvimento. Por isso, nós temos que defendê-la. A Argentina não tem, está inventando. Todas as empresas de telecomunicações na Argentina são privadas, todas. Inclusive a plataforma pela qual vai circular a muito boa lei de meios que eles têm é toda privada. Eles não têm nada público. Aqui é o contrário, tudo é público, e o setor privado terá a obrigação de pagar para as empresas públicas para utilizar a plataforma digital. E na nossa proposta de lei agregamos uma coisa que é única no mundo, que se chama proibição cruzada. A lei tem um artigo que estabelece que as empresas que sejam concessionárias de ondas de televisão são proibidas de terem empresas telefônicas, e as empresas telefônicas são proibidas de terem concessão de radiodifusão. Por exemplo, no caso do Peru, a Movistar e Claro são donas de todas as televisões peruanas. Isso é o que se está passando no mundo. Por isso, o Uruguai enfrenta processos da Organização Mundial do Comércio e de outras cortes internacionais por violar a liberdade comercial, os tratados comerciais. Esse é o centro da disputa hoje, porque eles querem destroçar a Antel e dar mais poder a esta tropa. Então, essa é a lei pesada que estamos discutindo no parlamento hoje, mas que os deputados conseguiram aprová-la depois de um debate de dois anos. Foram feitas inúmeras modificações no projeto original de lei, algumas inclusive impulsionadas por nós, para aperfeiçoá-lo. Por exemplo, introduzimos a proposta de se criar um conselho independente que ficará encarregado de fazer a gestão de todos os temas relacionados ao assunto. No projeto original da FA não havia esse conselho.

ComunicaSul – E qual a sua perspectiva para a aprovação do projeto de lei dos serviços audiovisuais?

Gabriel Mazzarovich – O compromisso de Mujica e Tabaré é de votar depois das eleições. Queríamos votar antes de outubro. Apresentamos o projeto dois anos antes das eleições para que fosse votado antes. Mas não conseguimos colocar a massa lutando por ele. Se conseguirmos aprová-lo será um passo histórico para o uruguaio. O debate sobre o conteúdo da lei de serviços audiovisuais avançou muito no governo da FA. Mas veja, tivemos experiências fundamentais neste último período. Aprovamos no Uruguai a lei de responsabilidade penal empresarial, que é uma lei pesada, dura, uma das mais importantes que foram votadas no Uruguai. Também a lei de negociação coletiva e a lei que anula a lei da impunidade. Estas talvez tenham sido as três leis mais pesadas votadas no Uruguai. Elas representam um passo contra-hegemônico dos trabalhadores e da esquerda e por isso sofreram tanta resistência dos empresários, como se fossem uma revolução. Porque foram aprovadas? Porque houve uma pressão gigantesca para serem aprovadas. A bancada da esquerda mudou cinco vezes o seu voto. Começamos perdendo de 15 a 1 e terminamos ganhando de 12 a 5. Saiu porque tivemos 350 mil assinaturas, porque tivemos mais de 35 mil trabalhadores nas ruas e mais de mil assembleias de trabalhadores. Outras leis importantes que podemos usar de exemplo são a lei do matrimônio igualitário e da regulação da maconha. Elas representaram uma ampliação de direitos enorme, em uma sociedade hipócrita como essa, com toda a Igreja Católica e Evangélica lutando contra as duas, com a esquerda na dúvida se apoiava ou não. Porque saiu? Porque existiu um movimento popular pujante e novo que foi às ruas com mais de 30 mil pessoas defendendo essas bandeiras. O que aconteceu com a lei de serviços audiovisuais. Teve um debate programático na Frente Ampla, tem fundamentos de sobra, todos os debates que fizemos nós ganhamos, todos. Então, porque os donos dos meios de comunicação conseguiram trancar essa discussão? Porque neste processo não conseguimos mobilizar nem 10 pessoas para defender essa lei aqui no Uruguai. O dia em que se discutiu esse tema no Congresso éramos 20 pessoas nas galerias. Então, o tema da correlação de forças e da base social que é necessária para essa lei se tornar realidade é central. Este é o problema que nós estamos enfrentando agora, criar uma base social que dê respaldo para a lei, criar uma onda para todo movimento popular uruguaio tomar isso como bandeira central.

Entrevista concedida a Renata Mielli, publicada em ComunicaSul.

 

“Esperamos que o governo avance um novo marco regulatório para as comunicações”

Para muitos, é tão óbvio quanto angustiante: a mídia empresarial brasileira é dominada por monopólios consolidados na época da ditadura militar e não representa qualquer esboço de democratização das comunicações. Apesar das mídias ditas alternativas, a diversidade de opinião nos grandes meios de comunicação é inferior à dos anos 50 do século passado. Além disso, a falta de vez e voz das maiorias é dramatizada por um vazio jurídico pouco conhecido do público. Isso sim, devidamente censurado do noticiário.

“Enquanto a imensa maioria do espectro radiofônico é controlada por grupos empresariais que visam o lucro, ao contrário de vários países, o Brasil não tem um forte sistema público de comunicação. As emissoras comunitárias carecem de apoio estrutural e financiamento, quando não são altamente criminalizadas. O acesso à internet no Brasil ainda é excludente para metade da população. Portanto, vivemos um quadro em que o exercício da liberdade de expressão é praticado por quem detém o controle da propriedade dos meios, e não pela sociedade em geral”, resumiu a jornalista Bia Barbosa em entrevista ao Correio da Cidadania.

Na entrevista, a jornalista se vale da postura de diversos veículos nas eleições, de modo a deixar claro que tais grupos de mídia têm imensos interesses políticos e econômicos refletidos em seus conteúdos. “Acredito que os meios de comunicação ‘têm lado’ na disputa de um projeto de país. Tal lado, em períodos eleitorais, fica muito mais claro. O aspecto positivo é que, felizmente, uma parcela crescente da sociedade começa a se dar conta disso. Nesse caso, nem se trata de julgar se são conteúdos verdadeiros ou mentirosos.”

Bia Barbosa comenta ainda diversos pontos a serem contemplados por um Projeto de Lei da Mídia Democrática, desenvolvido pelos diversos grupos que compõem o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e que visa, antes de tudo, regulamentar artigos constitucionais até hoje hibernados. No entanto, “não tenho perspectiva, e creio que essa seja a leitura mais comum do movimento pela democratização da mídia, de que haverá uma radical transformação no cenário no segundo governo Dilma”, pontuou Bia Barbosa.

Como analisa o atual cenário das comunicações no Brasil, especialmente no que diz respeito à sua propriedade, aos conceitos de liberdade de imprensa e expressão e à regulamentação da mesma?

Bia Barbosa – O cenário brasileiro das comunicações pode ser bem caracterizado pela grande concentração da propriedade. Enquanto a imensa maioria do espectro radiofônico (rádios e TVs) é controlada por grupos empresariais que visam o lucro, ao contrário de vários países, o Brasil não tem um forte sistema público de comunicação. As emissoras comunitárias carecem de apoio estrutural e financiamento, quando não são altamente criminalizadas. O acesso à internet no Brasil ainda é excludente para metade da população, que não pode ser considerada usuária da rede mundial de computadores.

Portanto, vivemos um quadro em que o exercício da liberdade de expressão é praticado por quem detém o controle da propriedade dos meios, e não pela sociedade em geral. Esse desafio nos coloca uma demanda muito grande de mobilização pra enfrentarmos a conjuntura e transformar o cenário midiático brasileiro.

Sabemos do enorme poder político e econômico das empresas de comunicação. Enfrentá-lo, para garantir que o poder público tenha vontade política de democratizar a voz e a liberdade de expressão, é algo que requer uma organização e mobilização muito grandes da sociedade civil. E é nesse sentido que temos trabalhado. O Intervozes é só um dos grupos que faz a luta, ao lado do FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação) e centenas de outras entidades que têm essa luta como prioritária.

Qual a sua opinião quanto ao comportamento da mídia nos últimos anos, especialmente nas gestões petistas e no mandato de Dilma Rousseff, no que se refere a este contexto analisado?

B.B. – Acredito que os meios de comunicação “têm lado” na disputa de um projeto de país. Isso tem ficado cada vez mais claro ao menos em uma parcela da chamada grande mídia. Tal lado, em períodos eleitorais, fica muito mais claro. Vimos o comportamento dos grandes veículos no processo eleitoral, principalmente no segundo turno das eleições, mas é algo que se manifesta cotidianamente. Não só na eleição, mas nos grandes temas que envolvem o futuro da nação e os direitos da cidadania em geral.

O aspecto positivo é que, felizmente, uma parcela crescente da sociedade começa a se dar conta disso. E a entender que o conteúdo veiculado em tais meios é feito a partir de opções político-ideológicas deles mesmos. Nesse caso, nem se trata de julgar se são conteúdos verdadeiros ou mentirosos. Mas o simples fato de a população conseguir entender que há opções claras por trás das escolhas editorais, com defesas ou críticas a projetos, já faz com que telespectadores, ouvintes e leitores tenham uma postura mais crítica e autônoma em relação ao que tais veículos publicam, sem achar que ali constam verdades absolutas e inquestionáveis.

É claro que ainda temos desafios muito grandes. A televisão, em especial, tem um poder muito grande na formação da opinião pública nacional, mas avançamos cada vez mais no sentido da compreensão das pessoas sobre o papel dos meios de comunicação, entendendo suas escolhas e linhas editoriais, o que permite uma leitura mais crítica desses veículos.

Acredita que o novo mandato de Dilma possa avançar um processo de radical democratização da mídia, é possível ter otimismo quanto a isso?

B.B. – Temos de ser otimistas, senão desistimos de lutar. Mas não tenho perspectiva, e creio que essa seja a leitura mais comum do movimento pela democratização da mídia, de que haverá uma radical transformação no cenário. Saudamos a presidente Dilma quando diz que pretende abrir debate com a sociedade sobre a necessidade de fazer a regulação dos meios de comunicação.

É importante para desmistificar a ideia de que qualquer regulação é censura, como propagandeiam diariamente os meios de comunicação, que não querem, justamente, a democratização do setor. Com isso, colocam na cabeça das pessoas que a regulação poderia cercear a liberdade de expressão no país, o que não é verdade.

Assim, temos expectativa de que as declarações da presidente, tanto no segundo turno como nas entrevistas após o resultado eleitoral (ao dizer que o setor das comunicações, assim como outros, a exemplo da economia, precisa ser regulado, a fim de enfrentar a concentração da propriedade, quebrar monopólios, garantir uma diversidade maior de vozes no espaço midiático), se tornem ações concretas. E que, de fato, seja aberto o debate com a sociedade sobre a necessidade de um novo marco regulatório para as comunicações.

Do nosso ponto de vista, dos movimentos sociais, cobraremos que tal agenda seja realmente implementada. O que não pode continuar acontecendo é, depois de 12 anos de governo de esquerda no país, o debate seguir interditado. Não temos expectativa de que a questão, delicada e polêmica, se resolverá em quatro anos. Mas pelo menos o debate tem de ser aberto.

Quais medidas seriam, em sua opinião, essenciais a caminho dessa democratização? Como, por exemplo, a ideia de propriedade pública entra nesse contexto?

B.B. – O movimento social tem um conjunto de demandas já construído, a partir das resoluções da primeira Conferência Nacional das Comunicações, em 2009, que foram sistematizadas em torno de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, o Projeto da Mídia Democrática. Esse projeto, para o qual coletamos assinaturas em todo o país, prevê, em primeiro lugar, a regulamentação dos artigos da Constituição Federal que tratam da comunicação, desde o que proíbe o monopólio até os que preveem a garantia do direito de resposta, o incentivo à produção independente e regional, a complementaridade entre os sistemas públicos, privados e estatais. Todos esses artigos carecem de leis específicas, o que faz com que sigam valendo como princípios constitucionais, mas não sejam implementados na prática.

Nosso Projeto de Lei da Mídia Democrática também avança em outras questões, como a importância de garantir a diversidade da representação étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de respeito às pessoas com deficiência nos meios de massa etc. Defende mecanismos de proteção aos direitos das crianças e adolescentes na mídia, fala da importância de políticas públicas que incentivem a radiodifusão comunitária…

Enfim, trata-se de um conjunto de propostas que convidamos todos a conhecer. Também está no site Para Expressar a Liberdade, que sintetiza uma série de questões fundamentais de garantia do direito à comunicação no Brasil.

Finalmente, o que pode nos contar do seminário promovido pelo Fórum Nacional de Democratização das Comunicações e as atividades que se seguirão na Câmara dos Deputados?

B.B. – O seminário realizado pelo FNDC foi preparatório para o Fórum Brasil de Comunicação Pública, que ocorreu na Câmara e reuniu diferentes atores do campo público. Emissoras de rádio e TV, legislativas, públicas, comunitárias, universitárias e educativas, têm uma série de desafios a enfrentar para a consolidação do campo público da comunicação brasileira.

Nos últimos anos, tais entidades estavam desarticuladas, sem espaço de diálogo para construir estratégias comuns de ação. E como sabemos que o campo privado e comercial é muito forte e organizado, a garantia de espaço para o campo público requer muita articulação e mobilização. O que tentamos construir no Fórum é justamente isso, para pensarmos estratégias comuns. Foram mais de 300 pessoas participando e pode-se encontrar tudo no site e no canal de TV da Câmara.

Entrevista concedida a Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, publicada no Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br

Direitos, valores e sociedade

A liberdade de expressão está garantida na Constituição, assim como o acesso à informação. Mas não se tratam apenas de direitos que devem ser garantidos pelo Estado. É dever de toda a sociedade lutar, defender e reivindicá-los. Esta é a bandeira da organização Artigo 19, que está presente em vários países. No Brasil, o escritório fica em São Paulo. A revistapontocom conversou com Camila Marques e Karina Quintanilha, advogadas do Centro de Referência Legal, da Artigo 19.

Na entrevista que segue, elas explicam os desafios que o Brasil enfrenta para alcançar a ‘liberdade de expressão’. Mostram que, em alguns casos, é necessário encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e outros direitos, como o que defende as crianças. Falam também de dois temas polêmicos que envolvem a infância e a liberdade de expressão: a classificação indicativa e a propaganda abusiva. Segundo elas, a publicidade abusiva é toda aquela que se aproveita da vulnerabilidade do consumidor ou que viole valores sociais e morais do mesmo.

“Mesmo que se admita a existência de uma “liberdade de expressão publicitária”, é necessário primeiro avaliar os interesses da sociedade e verificar o que é mais importante: veicular a publicidade, garantindo a liberdade de expressão, ou proteger outros direitos e valores que podem ser prejudicados por ela. O que se busca ao regular a publicidade não é impedir seu exercício legítimo, mas definir parâmetros que estejam de acordo com os valores da sociedade. Quem deve definir os limites da regulamentação é, portanto, a própria sociedade, de maneira participativa e democrática, e não os publicitários e anunciantes isoladamente”, destacam as advogadas.

Qual é o objetivo da organização Artigo 19?

Camila Marques e Karina Quintanilha – A Artigo 19 trabalha para que todos e todas, em qualquer lugar, possam se expressar de forma livre, acessar informação e desfrutar de liberdade de imprensa. Compreendemos que a liberdade de expressão está baseada em um tripé: direito de se pronunciar, liberdade de imprensa e direito de saber. Nesse sentido, o principal objetivo da organização é proteger e promover o direito à liberdade de expressão e acesso à informação, previstos pelo artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este é o motivo para adoção do referido artigo como nome da organização. Para a Artigo 19, o acesso à informação é o oxigênio da democracia.

A criação da Artigo 19 é uma prova de que a liberdade de expressão ainda não é um direito?

C.M. e K.Q. – A existência de uma organização de direitos humanos como a Artigo 19 comprova que a garantia desses direitos pelo Estado não depende apenas de previsão legal, mas também de políticas públicas efetivas construídas de forma participativa com a sociedade. Assim, podemos afirmar que a liberdade de expressão, sem dúvida, é um direito fruto da luta histórica da sociedade por direitos, porém cabe a todos e todas exercer o controle social do Estado para cobrar que esse direito seja efetivado de forma igualitária na sociedade.

Quais são os desafios para se alcançar o pleno exercício da liberdade de expressão, nos três eixos citados: o direito de se pronunciar, liberdade de imprensa e o direito de saber?

C.M. e K.Q. – Para a Artigo 19, esses três eixos estão interligados, de forma que o pleno exercício da liberdade de expressão somente poderá ocorrer quando esse tripé – buscar, receber e difundir informações e ideias – esteja garantido. No Brasil, dentre os principais desafios para a realização plena da liberdade de expressão podemos citar: as barreiras impostas ao acesso à informação pública; violência contra jornalistas, comunicadores e defensores de direitos humanos; violência estatal e criminalização de protestantes; censura e vigilantismo na internet; a ausência de regulamentação e fiscalização para estimular o pluralismo e diversidade na mídia além de coibir o monopólio dos meios de comunicação e a apropriação desses meios por políticos; a criminalização dos meios comunitários de comunicação decorrente da ineficiência do Estado em garantir as outorgas; sanções criminais ou civis abusivas e desproporcionais por difamação contra aqueles que levantam a sua voz para denunciar violações a direitos humanos; acesso limitado à internet por grupos vulneráveis.

Dos três direitos, talvez o que trata da liberdade de imprensa seja o mais conhecido, pois volta e meia entra no discurso das grandes corporações de mídia. Os outros: o direito de saber e o de pronunciar parecem que estão ligados mais ao cidadão e são poucos conhecidos. Correto?

C.M. e K.Q. – Como mencionamos anteriormente, tratam-se de dimensões diferentes da liberdade de expressão, mas que estão intrinsecamente ligadas entre si. Pode-se dizer que houve uma evolução na concepção da liberdade de expressão. Assim, a interpretação contemporânea desse direito mostra que a liberdade de expressão vai além de um direito individual, pois implica no reconhecimento da dimensão coletiva desse direito, já que toda a sociedade tem o direito de difundir, receber e propagar informações e ideias num ambiente de pluralismo e diversidade. Dessa forma, superamos a interpretação tradicional desse direito que implicava no entendimento de que liberdade de expressão significava apenas o direito de cada um dizer o que “lhe vier a mente” sem nenhum tipo de restrição. A concepção contemporânea da liberdade de expressão mostra que existe uma dimensão individual e coletiva desse direito, já que o direito de receber informações de fontes diversas e variadas está embutido na liberdade de expressão enquanto cidadão e cidadã. Além disso, ainda existe o direito de todos nós de ter acesso aos meios necessários para difundir qualquer tipo de expressão que tenhamos interesse em difundir. Infelizmente, o desconhecimento sobre esses aspectos da liberdade de expressão é uma realidade. Acreditamos que isso ocorre, principalmente, pois existe uma omissão do Estado em desenvolver políticas públicas que incentivem a disseminação de informações e educação sobre os direitos humanos.

Se os cidadãos adultos muitas vezes não têm noção de tais direitos, o que dirá a infância ou a juventude. Pelo que vocês observam no dia a dia, crianças e adolescentes são considerados cidadãos com menos direitos?

C.M. e K.Q. – Realmente seria muito importante que o Estado se preocupasse desde os primórdios da educação infantil com a garantia desses direitos e a educação em direitos humano. Isso não quer dizer que crianças e adolescentes são considerados cidadãos com menos direitos, muito pelo contrário, as diversas legislações protetivas dos direitos das crianças e adolescentes mostram que existe um reconhecimento da sociedade da necessidade de garantir proteção especial para esse grupo.

Há algum trabalho específico de vocês para crianças e adolescentes?

C.M. e K.Q. – A Artigo 19 acompanha desde os primórdios a discussão sobre a classificação indicativa no Conselho Nacional de Comunicação. Sobre esse assunto, apresentou Amicus Curiae – espécie de parecer jurídico – no Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a constitucionalidade da classificação indicativa. Estamos envolvidos com algumas iniciativas no que diz respeito às medidas de proteção da criança e do adolescente frente aos conteúdos abusivos e violentos veiculados nos meios de comunicação. Recentemente acompanhamos as discussões decorrentes da Resolução 163 do Conanda a fim de mostrar que existem limitações legítimas à liberdade de expressão, como é o caso da limitação da publicidade comercial para proteger o direito das crianças e adolescentes.

No Brasil, qualquer tipo de ação política e ou política pública que tente de alguma forma regular qualquer questão frente às crianças e aos adolescentes (por exemplo, a questão da classificação indicativa, como vocês mencionaram) é associada à censura e consequentemente à violação da liberdade de imprensa. Por que isto acontece?

C.M. e K.Q. – Não se trata apenas de um fenômeno nacional. A regulamentação da mídia é tema de grande debate e resistência por parte das grandes corporações em todo o mundo. No Brasil, a questão é ainda mais complicada devido ao histórico monopólio dos meios de comunicação que favorece economicamente e politicamente os setores comerciais. Esses setores fazem uso do argumento da censura para convencer a opinião de pública de que a regulamentação da mídia restringiria a liberdade de imprensa. Ocorre, no entanto, que o Brasil é um dos mais atrasados nessa questão e toda a população sofre com ausência de parâmetros claros para garantir que não haja monopólio na mídia e para que existam políticas públicas que garantam espaço para grupos minoritários e independentes nos meios de comunicação. A política de classificação indicativa, por exemplo, que está sendo implementada no Brasil, tem sido elogiada por outros países como um modelo de regulamentação de acordo com os padrões internacionais de proteção às crianças e liberdade de expressão. No entanto, essa política que tem como finalidade proteger as crianças de conteúdos ofensivos ou prejudiciais a sua integridade psíquica e formação intelectual está sendo contestada nesse momento no STF sob a alegação de que se trata de uma limitação ao direito à liberdade de expressão, apesar da Constituição Federal deixar claro a necessidade da proteção da criança e adolescentes a conteúdos veiculados na mídia. Quatro ministros do STF já se posicionaram contra a política de classificação indicativa em atendimento aos argumentos apresentados pelo setor comercial que tem interesse em veicular a sua programação sem nenhuma restrição de horário. Recentemente o processo entrou para a pauta de julgamento e caso não haja forte mobilização e pressão por parte da sociedade civil corremos sérios riscos de ver deslegitimada a política pública de classificação indicativa, o que representaria uma enorme perda para aqueles que lutam por uma regulamentação dos meios de comunicação em favor de maior pluralismo e diversidade na mídia de acordo com padrões internacionais que equilibrem o direito à liberdade de expressão frente a outros direitos como é o caso das crianças.

Essa mesma discussão dos interesses comerciais também está presente na questão da publicidade, não é mesmo? Recentemente, o Conanda aprovou a resolução 163 que recomenda o fim da publicidade abusiva direcionada às crianças e o setor vinculou, novamente, à censura.

C.M. e K.Q. – A publicidade é uma prática comercial, destinada a promover a venda. Para isso, ultrapassa o discurso informativo e entra no campo da persuasão. Ao estimular o consumo por meio do convencimento, o discurso publicitário tem o poder de interferir na saúde, na segurança, na definição de valores culturais e educacionais de uma sociedade e de cada indivíduo, incluindo a formação de crenças e valores das crianças. Se uma sociedade está preocupada com o tipo de influência que a publicidade pode exercer na formação de valores e no exercício de outros direitos, regulamentá-la é perfeitamente legítimo. Ao proteger a opinião e a livre expressão do pensamento, a Constituição Federal teve a intenção de garantir a manifestação de ideias e convicções individuais ou da coletividade, mesmo que estas possam causar incômodo. Publicidade não se trata disso: seu fim não é expressar uma convicção ou uma informação, mas vender. O titular da liberdade de expressão como direito fundamental é sempre o indivíduo ou a coletividade, não as empresas. Publicidade abusiva é toda aquela que se aproveite da vulnerabilidade do consumidor ou que viole valores sociais e morais do mesmo. Nesse sentido, para analisar se a regulamentação da publicidade é legítima, é preciso ver se há interesse público em proteger outros direitos que podem ser colocados em risco pelo discurso publicitário. Mesmo que se admita a existência de uma “liberdade de expressão publicitária”, é necessário primeiro avaliar os interesses da sociedade e verificar o que é mais importante: veicular a publicidade, garantindo a liberdade de expressão, ou proteger outros direitos e valores que podem ser prejudicados por ela. O que se busca ao regular a publicidade não é impedir seu exercício legítimo, mas definir parâmetros que estejam de acordo com os valores da sociedade. Quem deve definir os limites da regulamentação é, portanto, a própria sociedade, de maneira participativa e democrática, e não os publicitários e anunciantes isoladamente. O discurso da liberdade de imprensa pode ser superado através de argumentos que mostram que o possível “dano” causado por programação veiculada em faixa inadequada ou publicidade comercial direcionada a crianças é potencialmente reforçado por quatro problemas: ele é provável (possivelmente com frequência diária), de grande impacto (trata-se de meios de comunicação de penetração nacional), de difícil mensuração imediata de efeitos e de difícil reparação posterior. Ainda, o direito nacional e internacional protege a integridade física e psíquica de crianças e adolescentes o que inclui a garantia do bem-estar social desses indivíduos que estão em plena formação e devem ser tratados pelo Estado e sociedade com especial cuidado e atenção para a defesa de sua saúde, segurança, valores culturais e educacionais, e não como um mercado consumidor em potencial. Por fim, vale reforçar que os titulares do direito à liberdade de expressão são sempre os próprios indivíduos ou a coletividade e não as empresas.

No mundo de hoje, os ‘direitos de expressão’ são direitos de poucos?

C.M. e K.Q. – O direito à liberdade de expressão legalmente constituído é de todos e todas, porém o que vemos na prática é que poucas pessoas têm acesso aos meios que permitem a apropriação desse direito e, principalmente, grupos minoritários e vulneráveis acabam sofrendo censura e até mesmo violência quando buscam fazer uso da liberdade de expressão para manifestar as suas demandas ou reivindicar outros direitos.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada na revistapontocom e reproduzida do Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br

Adultização da infância

Talvez você não se dê conta, mas, com certeza, já viu várias propagandas, dos mais variados produtos, que utilizam crianças nos papéis de adultos. Publicidades bem feitas, às vezes, engraçadas e que acabam mexendo com o emocional. Pois bem, esse é o objetivo. Porém, você já parou para pensar no efeito que isso tem na infância? O que essas imagens acabam impactando no universo, na formação das crianças? Essas práticas acabam contribuindo, de certa forma, para a adultização de meninos e meninas, para o que diversas pesquisas destacam como o encurtamento da infância.

Intrigada com o tema, a professora assistente da Universidade do Estado da Bahia, Cristhiane Ferreguett, resolveu pesquisar mais sobre o assunto. Descobriu que as crianças desenvolveram certo grau de ceticismo com relação à publicidade, boa parte sabe que tudo é imaginário, não real. Mas por outro lado identificou que “o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis”.

Relações dialógicas em revista infantil:o processo de adultização de meninas foi o título da tese de doutorado da professora, defendida em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em entrevista à revistapontocom, Cristhiane traz mais dados do estudo e avalia o contexto da adultização nos dias de hoje.

Acompanhe:

A sua tese tem o objetivo de discutir a questão da adultização das crianças, correto?

Cristhiane Ferreguett – Sim. O título da minha tese é Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas; um trabalho de doutorado em letras defendido, em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Trata-se de um estudo sobre o discurso midiático dirigido às crianças, em especial às meninas, na faixa etária dos 6 aos 11 anos de idade. Tomei conhecimento de pesquisas que constataram que a criança desenvolveu certo grau de ceticismo em relação à publicidade. A criança sabe que o intuito da propaganda é vender e que para isso ela apresenta um discurso persuasivo que, na maioria das vezes, não corresponde à realidade. Para vencer esta resistência, o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis. Inserido em reportagens, o discurso publicitário passa a ser mais aceito pela criança. Portanto, na minha tese, analisei como o discurso publicitário se engendra na tessitura discursiva de reportagens de uma revista infantil da Editora Abril, a Revista Recreio Girls, e que efeitos de sentidos produz no que se refere à adultização precoce da menina.

E o que você observou?

C.F. – Após analisar detalhadamente três reportagens de diferentes exemplares, constatei que as reportagens apresentam diversas características do discurso publicitário, como apresentação de marcas e preços de produtos. A adultização precoce da menina é construída discursivamente e pode ser observada pelos modelos adultos apresentados como referência de como a menina deve se vestir, maquiar, pentear e do modo como ela deve agir e ser, a fim de promover e incentivar o consumo de produtos normalmente desnecessários para uma criança.

E a adultização da infância se constitui num problema, certo?

C.F. – Sim. A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta sua infância. Existem estudos que comprovam um encurtamento da infância no plano fisiológico, as meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o número de gravidez na adolescência.

O fato é que essa adultização, muitas vezes, é compreendida como ‘algo normal’.

C.F. – Adultizar uma criança significa inseri-la precocemente no mundo adulto. Isso pode acontecer de diversas formas. Por exemplo, no inicio do processo de industrialização do nosso país a criança era inserida no trabalho das fábricas e era exigido delas a produtividade e a responsabilidade de um adulto. Hoje o trabalho infantil não é mais aceito. A adultização está acontecendo de outras formas, através do incentivo de comportamento e aquisição de produtos desnecessários a criança. Já é possível encontrar e comprar sutiãs com bojo para meninas a partir de 2 anos de idade. Meninas pequenas usam maquiagem e sandálias de salto alto, comprometendo a saúde da sua pele e da sua coluna. Para a indústria e o comércio isso é muito bom, no sentido em que uma criança que vive sua infância com comportamento de criança consome muito menos do que uma criança adultizada. E, sim, existe uma banalização deste comportamento no sentido que a sociedade passa a aceitar isso como normal e adequado.

Sempre que uma voz ecoa contra abusos da adultização vem à tona o discurso do direito de informação/comunicação, da liberdade da imprensa e a questão da censura.

C.F. – Compreendo que é dever do Estado e da sociedade civil organizada proteger a criança e sua infância. A liberdade da imprensa não deve comprometer o bem estar e a formação das nossas crianças, nossos futuros cidadãos. Recentemente uma resolução (Resolução n.º 163/2014 – aprovada por unanimidade pela plenária realizada no dia 13/03/2014) do Conanda proibiu “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”. Essa resolução precisa ser respeitada, precisamos da adesão dos pais, da escola e da sociedade como um todo para isso é preciso debater o assunto em diversas instâncias.

Como as crianças interpretam/analisam a adultização?

C.F. – A mídia apresenta a criança adultizada com uma conotação positiva, de uma criança que tem/faz sucesso e é feliz graças a um comportamento pautado no consumismo. Se a mídia só mostra a criança adultizada como o modelo ideal, esse modelo passa a ser um modelo idealizado e copiado pelas crianças. Daí a necessidade de um debate com os adultos que cuidam da educação das crianças. As crianças precisam ter um olhar crítico sobre o modelo que a mídia lhe apresenta.

Você acredita que é possível reverter este quadro de banalização da adultização da infância?

C.F. – Sou professora de cursos de licenciatura na Universidade do Estado da Bahia e sempre percebi a ausência da leitura e discussão de textos midiáticos por parte do professor do Ensino Fundamental e Médio. Gostaria que meu estudo servisse de apoio para o trabalho do professor do Ensino Fundamental junto às crianças no processo de discussão de textos midiáticos – em especial o texto publicitário – e para o embasamento de uma leitura crítica de revistas que circulam em nosso meio social. O diálogo e o debate permanente dentro dos diversos espaços sociais da criança é o caminho mais adequado para que ela tenha um olhar crítico sobre os diversos discursos que circulam no meio midiático.

Entrevista concedida a Marcus Tavares, publicada na revistapontocom e reproduzida do Observatório da Imprensa – www.observatoriodaimprensa.com.br