A vinculação direta ou indireta de parlamentares a concessões de rádio e televisão é mais uma das mazelas que impedem o exercício do direito à comunicação no Brasil (e em outros países). Por isso, neste momento em que a sociedade brasileira tenta construir um marco regulatório atualizado para as comunicações, tal tema deve ser encarado, enfrentado e resolvido, instituindo-se uma proibição explícita nesse sentido. Afinal, atualizar a legislação de comunicações no país é mais do que levar em conta apenas a tecnologia. Deve constituir-se na oportunidade de sintonizar a mídia com os ditames gerais de uma sociedade democrática como a que o Brasil sustenta dispor, onde a tecnologia é parte do todo social.
Por isso, são condenáveis medidas como a recente aprovação, pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado Federal, da renovação das concessões de rádio outorgadas às famílias do senador Edison Lobão Filho (PMDB-MA) e do deputado federal José Rocha (PR-BA). A renovação em si das concessões não apresenta novidade alguma – aliás, muito pelo contrário: é a regra absoluta no Congresso Nacional. O emblemático é o momento em que estas renovações ocorreram: no final de maio, o Ministério das Comunicações (Minicom) havia publicizado, em seu portal na internet, a relação de sócios e diretores das quase 10 mil concessões de rádio e TV comerciais distribuídas no país, além da lista de emissoras por cidade e de dados gerais sobre as outorgas de radiodifusão.
Senadores e deputados na lista
Um levantamento da Organização Não-Governamental Transparência Brasil revela que 21% dos senadores e 10% dos deputados federais são concessionários de radiodifusão. Em seu projeto Excelências, a ONG identifica 69 parlamentares proprietários de emissoras, excluídos os que usam familiares ou laranjas para esconder a propriedade. Ou seja, o número de senadores e deputados que controlam empresas de radiodifusão é ainda maior. Os dados foram obtidos principalmente do cruzamento das declarações de bens encaminhadas pelos parlamentares à Justiça Eleitoral com informações do próprio Congresso Nacional.
Na lista da Transparência Brasil, por exemplo, não aparece o senador Aécio Neves (PSDB-MG), que ainda aguarda posição do Minicom sobre sua inclusão, junto à mãe e uma irmã, no quadro societário de uma rádio do município mineiro de Betim (mas com sede em Belo Horizonte). O senador Lobão Filho, por sua vez, aparece na lista divulgada pelo Ministério das Comunicações como um dos sócios de uma rádio de São Luís, no Maranhão, posição que divide com outros familiares. Lobão Filho é membro titular da CCT, que, ao lado da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, e é responsável pela análise e aprovação dos processos de outorga de concessões de rádio e televisão no Brasil. Ele é filho do ex-governador do Maranhão Edison Lobão, de quem herdou a cadeira no Senado Federal, em função do afastamento do pai para exercer o cargo de ministro de Minas e Energia. Já o deputado federal José Rocha é casado com a médica Noelma Rocha, sócia de rádio da cidade baiana de Bom Jesus da Lapa, que teve a concessão renovada pela CCT. Ela ainda aparece como sócia de outras duas emissoras de rádio da Bahia, enquanto Lobão Filho também consta na lista do Minicom como concessionário de TV.
Relatório de 2008 não foi apreciado
A propriedade de emissoras de televisão e rádio por pessoas que ocupam cargos políticos compromete o jogo democrático e desrespeita a Constituição Federal. Quando um parlamentar se torna concessionário de radiodifusão, ele acumula o exercício legislativo à atividade midiática, levando a distorções na forma como o veículo publiciza os fatos sociais, agravando uma prática presente nas indústrias culturais em geral. Quando o congressista é membro titular da comissão que analisa as outorgas de concessões, a concentração de poder nas suas mãos é ainda maior e fere de forma mais aguda a razão crítica e o equilíbrio das instituições sociais. Esta situação de subordinação dos interesses públicos aos privados de um grupo de parlamentares é absolutamente antagônica ao direito à comunicação e às demandas de pluralidade e diversidade que deveriam nortear a atividade midiática.
Não há justificativa para um parlamentar manter concessão de rádio ou TV, já que ele dispõe da estrutura estatal para se comunicar com eleitores e cidadãos. Isto favorece a barganha política e a transformação das autorizações e renovações em moeda de troca por votos, como historicamente tem ocorrido. O artigo 54 da Constituição Federal afirma que senadores e deputados federais não poderão, desde a expedição do diploma, “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes” e não poderão exercer cargo, função ou emprego remunerado nestas entidades; desde a posse, não poderão “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”. O artigo 55 estabelece que perderá o mandato o senador ou deputado “que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior”.
A Câmara dos Deputados anunciou para ainda este ano a divulgação pública dos processos de outorga de concessão de rádio e TV em tramitação na casa. Neste ano, em maio, com validade a partir de junho, a CCT alterou (ainda que de modo acanhado) algumas regras da aprovação de concessões, entre as quais o impedimento de que o relator do processo seja representante do mesmo estado da empresa de radiodifusão interessada, o que é importante pela forma como as outorgas servem de instrumento de negociação de apoios. Em abril de 2009, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado afirmou que não era lícito aos parlamentares figurarem como proprietários, controladores ou diretores de empresas que exploram serviços de radiodifusão, e que os respectivos atos de outorga ou renovação deveriam ser cancelados. Alguns meses antes, em dezembro de 2008, um relatório aprovado na Câmara também mencionava a má aplicação do artigo 54 quanto às concessões de rádio e TV. Infelizmente, a recomendação da CCJ não foi apreciada em plenário.
Bom momento para intensificar o debate
De qualquer forma, posições como essas, tomadas no interior do Congresso Nacional, reforçam a compreensão há anos levantada pelos movimentos sociais e ativistas da área da comunicação de que o artigo 54 da Constituição proíbe parlamentares de serem concessionários de emissoras de rádio e televisão. A Constituição não veta a propriedade ou o exercício de função de direção de concessionárias por familiares de parlamentares, mas, em um momento em que é articulada a construção de um marco regulatório das comunicações audiovisuais, é imprescindível que se consolide a proibição legal de que congressistas controlem empresas que funcionem sob concessão pública. Tal impedimento deve ser ampliado também para os familiares em linha reta, colaterais e por afinidade até o terceiro grau, do mesmo modo que o adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na súmula vinculante que define e proíbe o nepotismo na administração pública.
Demorou longas décadas, e houve até uma tentativa frustrada, no início de 2003, para que o cidadão tivesse a oportunidade de acompanhar e fiscalizar a relação de proprietários e diretores de concessões públicas de rádio e televisão, publicizadas agora pelo Minicom. Esta iniciativa tão singela, de divulgar os nomes dos proprietários de empresas que lucram a partir do uso do espectro radioelétrico, um bem público, já é prevista na regulação dos meios audiovisuais em países de tradição democrática da Europa e ganha agora ares na América Latina. É um bom momento para que os movimentos sociais intensifiquem o debate (e as exigências) em torno de medidas de democratização da comunicação, de forma a incentivar o Ministério da área a demonstrar maior vontade de ouvir a sociedade civil organizada na construção do marco regulatório. Impedir legalmente que parlamentares e familiares controlem emissoras de televisão e rádio parece constituir um bom início de caminhada.
Valério Cruz Brittos é professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos
Luciano Gallas é mestrando no mesmo programa