Arquivo da categoria: Análises

O grileiro vencerá?

Ao leitor:

Como já é do conhecimento público, em 1999 escrevi uma matéria no meu Jornal Pessoal denunciando a grilagem de terras praticada pelo empresário Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, com sede em Curitiba, no Paraná. Embora nascido em Óbidos, no Pará, Cecílio se estabeleceu 40 anos antes no Paraná. Fez fortuna com o uso de métodos truculentos. Nada era obstáculo para a sua vontade.

Sem qualquer inibição, ele recorreu a vários ardis para se apropriar de quase cinco milhões de hectares de terras no rico vale do rio Xingu, no Pará, onde ainda subsiste a maior floresta nativa do Estado, na margem direita do rio Amazonas, além de minérios e outros recursos naturais. Onde também está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, para ser a maior do país e a terceira do mundo.

Os 5 milhões de hectares já constituem território bastante para abrigar um país, mas a ambição podia levar o empresário a se apossar de área ainda maior, de 7 milhões de hectares, o equivalente a 8% de todo o Pará, o segundo maior Estado da federação brasileira. Se fosse um Estado, a “Ceciliolândia” seria o 21º maior do Brasil.

Em 1996, na condição de cidadão, atendi a um chamado do advogado Carlos Lamarão Corrêa, diretor do Departamento Jurídico do Iterpa (Instituto de Terras do Pará), e o ajudei a preparar uma ação de anulação e cancelamento dos registros das terras usurpadas por C. R. Almeida, com a cumplicidade da titular do cartório de registro de imóveis de Altamira e a ajuda de advogados inescrupulosos. A ação foi recebida pelo juiz da comarca, Torquato de Alencar, e feita a averbação da advertência de que aquelas terras não podiam ser comercializadas, por estarem sub-judice, passíveis de nulidade.

Os herdeiros do grileiro podem continuar na posse e no usufruto da pilhagem, apesar da decisão, porque a grilagem recebeu decisão favorável dos desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte, do Tribunal de Justiça do Estado. Deve-se salientar que essas foram as únicas decisões favoráveis ao grileiro nas instâncias oficiais, que reformaram a deliberação do juiz de Altamira.

Com o acúmulo de informações sobre o estelionato fundiário, os órgãos públicos ligados à questão foram se manifestando e tomando iniciativas para evitar que o golpe se consumasse. A Polícia Federal comprovou a fraude e só não prendeu o empresário porque ele já tinha mais de 70 anos. O próprio poder judiciário estadual, que perdeu a jurisdição sobre o caso, deslocado para a competência da justiça federal, a partir daí, impulsionado pelo Ministério Público Federal, tomando rumo contrário ao pretendido pelo grileiro, interveio no cartório Moreira, de Altamira, e demitiu todos os serventuários que ali trabalhavam, inclusive a escrivã titular, Eugênia de Freitas, por justa causa.

Carlos Lamarão, um repórter da revista Veja (que chegou a ser mantido em cárcere privado pelo empresário e ameaçado fisicamente) e o vereador Eduardo Modesto, de Altamira, processados na comarca de São Paulo por Cecílio Almeida, foram absolvidos pela justiça paulistana. O juiz observou que essas pessoas, ao invés de serem punidas, mereciam era homenagens por estarem defendendo o patrimônio público, ameaçado de passar ilicitamente para as mãos de um particular.

De toda história, eu acabei sendo o único punido. A ação do empreiteiro contra mim, como as demais, foi proposta no foro de São Paulo. Seus advogados sabiam muito bem que a sede da ação era Belém, onde o Jornal Pessoal circula. Eles queriam deslocar a causa por saberem das minhas dificuldades para manter um representante na capital paulista. A juíza que recebeu o processo, a meu pedido, desaforou a ação para Belém, como tinha que ser. Hoje, revendo o que passei nestes 11 anos de jurisdição da justiça do Pará, tenho que lamentar a mala suerte de não ter ficado mesmo em São Paulo, com todas as dificuldades que tivesse para acompanhar a tramitação do feito.

A justiça de São Paulo foi muito mais atenta à defesa da verdade e da integridade de um bem público ameaçada por um autêntico “pirata fundiário”, do que a justiça do Pará, formada por homens públicos, que deviam zelar pela integridade do patrimônio do Estado contra os aventureiros inescrupulosos e vorazes. Esta expressão, “pirata fundiário”, C. R. Almeida considerou ofensiva à sua dignidade moral e as duas instâncias da justiça paraense sacramentaram como crime, passível de indenização, conforme pediu o controverso empreiteiro.

Mesmo tendo provado tudo que afirmei na primeira matéria e nas que a seguiram, diante da gravidade do tema, fui condenado, graças a outro ardil, montado para que um juiz substituto, em interinidade de fim de semana, pela ausência circunstancial da titular da 1ª vara cível de Belém, sem as condições processuais para sentenciar uma ação de 400 páginas, me condenasse a pagar ao grileiro indenização de 8 mil reais (em valores de então, a serem dramaticamente majorados até a execução da sentença), por ofensa moral.

A sentença foi confirmada pelo tribunal, embora a ação tenha sido abandonada desde que Cecílio do Rego Almeida morreu, em agosto de 2008; mesmo que seus sucessores ou herdeiros não se tenham habilitado; mesmo que o advogado, que continuou a atuar nos autos, não dispusesse de um novo contrato para legalizar sua função; mesmo que o tribunal, várias vezes alertado por mim sobre a deserção, tenha ignorado minhas petições; mesmo que, obrigado a extinguir a minha punibilidade, arquivando o processo, haja finalmente aberto prazo para a habilitação da parte ativa, que ganhou novo prazo depois de perder o primeiro; mesmo que a relatora, confrontada com a argüição da sua suspeição, que suscitei, diante de sua gravosa parcialidade, tenha simplesmente dado um “embargo de gaveta” ao pedido, que lhe incumbia responder de imediato, aceitando-o ou o rejeitando, suspendendo o processo e afastando-se da causa; mesmo que tudo que aleguei ou requeri tenha sido negado, para, ao final, a condenação ser confirmada, num escabroso crime político perpetrado pela maioria dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Pará que atuaram no meu caso, certamente inconformados com críticas e denúncias que tenho feito sobre o TJE nos últimos anos, nenhuma delas desmentida, a maioria delas também completamente ignorada pelos magistrados citados nos artigos. Ao invés de cumprir as obrigações de sua função pública, eles preferem apostar na omissão e na desmemoria da população. E no acerto de contas com o jornalista incômodo.

Depois de enfrentar todas as dificuldades possíveis, meus recursos finalmente subiram a Brasília em dezembro do ano passado. O recurso especial seguiu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, graças ao agravo de instrumento que impetrei (o Tribunal do Pará rejeitou o primeiro agravo; sobre o segundo já nada mais podia fazer).

Mas o presidente do STJ, em despacho deste dia 7, disponibilizado no dia 10 e a ser publicado no Diário da Justiça do dia 13, negou seguimento ao recurso especial. Alegou erros formais na formação do agravo: “falta cópia do inteiro teor do acórdão recorrido, do inteiro teor do acórdão proferido nos embargos de declaração e do comprovante do pagamento das custas do recurso especial e do porte de retorno e remessa dos autos”.

Recentemente, a justiça brasileira impôs novas regras para o recebimento de agravos, exigindo dos recorrentes muita atenção na formação do instrumento, tantos são os documentos cobrados e as suas características. Podem funcionar como uma armadilha fatal, quando não são atendidas as normas formais do preparo.

A falta de todos os documentos apontada pelo presidente do STJ me causou enorme surpresa. Participei pessoalmente da reunião dos documentos e do pagamento das despesas necessárias, junto com minha advogada, que é também minha prima e atua na questão gratuitamente (ou pró-bono, como preferem os profissionais). Não tenho dinheiro para sustentar uma representação desse porte. Muito menos para arcar com a indenização que me foi imputada, mais uma, na sucessão de processos abertos contra mim pelos que, sendo poderosos, pretendem me calar, por incomodá-los ou prejudicar seus interesses, frequentemente alimentados pelo saque ao patrimônio público.

Desde 1992 já fui processado 33 vezes. Nenhum dos autores dessas ações teve interesse em me mandar uma carta, no exercício de seu legítimo direito de defesa. O Jornal Pessoal publica todas as cartas que lhe são enviadas, mesmo as ofensivas, na íntegra. Também não publicaram matérias contestando as minhas ou, por qualquer via, estabelecendo um debate público, por serem públicos todos os temas por mim abordados. Foram diretamente à justiça, certos de contarem com a cumplicidade daquele tipo de toga que a valente ministra Eliana Calmon, Corregedora Nacional de Justiça, disse esconderem bandidos, para me atar a essa rocha de suplícios, que, às vezes, me faz sentir no papel de um Prometeu amazônico.

Não por coincidência, fui processado pelos desembargadores João Alberto Paiva e Maria do Céu Duarte, o primeiro tendo como seu advogado um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, à frente de uma das mais conceituadas bancas jurídicas do Distrito Federal. O ex-ministro José Eduardo Alckmin, que também advogava para a C. R. Almeida, veio a Belém para participar de uma audiência que durou cinco minutos. Mas impressionou pela sua presença.

O madeireiro Wandeir dos Reis Costa também me processou. Ele funcionou como fiel depositário de milhares de árvores extraídas ilegalmente da Terra do Meio, que o Ibama apreendeu em Altamira. Embora se declarasse pobre, ele se ofereceu para serrar, embalar e estocar a madeira enquanto não fosse decidido o seu destino. Destino, aliás, antecipado pelo extravio de toras mantidas em confinamento no próprio rio Xingu. Uma sórdida história de mais um ato de pirataria aos recursos naturais da Amazônia, bem disfarçado.

Apesar de todas essas ações e do martírio que elas criaram na minha vida nestes últimos 20 anos, mantenho meu compromisso com a verdade, com o interesse público e com uma melhor sorte para a querida Amazônia, onde nasci. Não gostaria que meus filhos e netos (e todos os filhos e netos do Brasil) se deparassem com espetáculos tão degradantes, como ver milhares de toras de madeira de lei, incluindo o mogno, ameaçado de ser extinto nas florestas nativas amazônicas, nas quais era abundante, sendo arrastadas em jangadas pelos rios por piratas fundiários, como o extinto Cecílio do Rego Almeida. Depois de ter sofrido todo tipo de violência, inclusive a agressão física, sei o que me espera. Mas não desistirei de fazer aquilo que me compete: jornalismo. Algo que os poderes, sobretudo o judiciário do Pará, querem ver extinto, se não puder ser domesticado conforme os interesses dos donos da voz pública.

Vamos tentar examinar o processo e recorrer, sabendo das nossas dificuldades para funcionar na justiça superior de Brasília, onde, como regra, minhas causas sempre foram vencedoras até aqui, mesmo sem representação legal junto aos tribunais do Distrito Federal.

Decidi escrever esta nota não para pressionar alguém nem para extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo, o que me surpreendeu e chocou, paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo. Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apoiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um país decente.

Belém (PA), 11 de fevereiro de 2012

 

Lúcio Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal.

Pipa, Sopa, Acta, Projeto Azeredo e Marco Civil da Internet: o que está em jogo?

Para manter o domínio sobre a circulação na internet de bens culturais ainda sob o controle dos intermediários, os projetos propostos e as leis já existentes afetam diretamente a regulação de direitos fundamentais, como o acesso à educação e à cultura e, em particular, a liberdade de expressão na web.

Os recentes debates em torno de dois projetos de lei que tramitam no Congresso dos Estados Unidos sobre a regulação da internet têm tudo a ver com as esperanças democratizadoras centradas nas novas tecnologias de comunicação.

As siglas Pipa (Project IP Action, ou Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act) e Sopa (Stop Online Piracy Act) identificam iniciativas legislativas que, apesar de se apresentarem apenas como propostas contra “ciber-crimes” e contra a pirataria, na verdade têm implicações importantíssimas no controle de tudo o que possa circular no espaço virtual.

Já existem leis desse tipo na França (Lei Hadopi) e na Espanha (Lei Sinde), e no Brasil, na mesma linha, tramita no Congresso Nacional o chamado Projeto Azeredo (hoje Projeto de Lei nº 84/1999).

O que está em jogo?

Um exemplo simples: antes da internet, na cadeia produtiva de bens culturais como filmes, músicas (CDs), textos (livros), havia a necessidade de um intermediário entre o criador e o consumidor final: surgiram então a indústria do cinema, a indústria fonográfica, as editoras. E, além do processo de produção material, fabril, havia a distribuição física dos produtos. Com a internet, tudo isso se torna, potencialmente, desnecessário. O próprio autor do bem cultural, seja qual for – uma música, uma poesia, um filme, um livro –, pode agora disponibilizar diretamente sua criação para o consumidor final na rede. Em princípio, portanto, o autor passa a controlar, ele mesmo, sua criação, sem precisar de intermediários.

Em outras palavras, a internet acaba com a necessidade da valiosíssima indústria do copyright, isto é, dos direitos autorais. E a indústria, por óbvio, não está gostando do que vê.

Mais abrangente do que o Pipa e o Sopa é o Acta (Anti-Counterfeiting Trade Agreement – Acordo Comercial Anticontrafação), que vem sendo negociado entre os EUA, a União Europeia e outra dezena de países, entre eles Japão e Canadá. Trata-se de criar uma entidade independente das Nações Unidas, da Organização Mundial do Comércio e da Organização Mundial da Propriedade Intelectual para a proteção de marcas, patentes e copyrights.

Enquanto vivemos a transição do antes para o depois da internet, os problemas surgem, entre outras razões, porque criadores que têm contratos com os atuais “intermediários” buscam formas de se libertar do controle que até agora era exercido sobre suas obras e sua carreira. Aí o problema vira conflito de interesses.

Ademais, para manter o domínio sobre a circulação na internet de bens culturais ainda sob o controle dos intermediários, os projetos propostos e as leis já existentes – tanto lá como cá – afetam diretamente a regulação de direitos fundamentais, como o acesso à educação e à cultura e, em particular, a liberdade de expressão na web.

E o Brasil?

No Brasil, o Projeto de Lei nº 2.126/2011, conhecido como Marco Civil da Internet – e não penal –, tenta caminhar no sentido oposto. Resultado de um longo processo de consulta pública iniciado pelo Ministério da Justiça ainda ao tempo do ministro Tarso Genro no governo Lula, constitui uma tentativa de garantir a liberdade de circulação na rede, afirmar direitos, e não transformá-la em “caso de polícia”.

De qualquer maneira, o assunto é muito mais complexo do que a descrição resumida apresentada aqui e não é fácil saber a real natureza desses projetos apenas fazendo um corte vertical e identificando quem os apoia ou não. Tem de tudo.

O importante é que prevaleçam o interesse público e os direitos fundamentais. E isso não é simples nem fácil.

A ver.

Artigo publicado originalmente na revista Teoria e Debate, nº 97.

Venício Lima é professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011

Ao invés da democracia, a mão de gato na TV por assinatura

Depois de uma história de muita luta em defesa da criação de uma autoridade para o audiovisual, através da Lei 12.485/11, capaz de estabelecer uma mídia representativa de todas as classes e acessível à população, o que parecia ser uma conquista e início de mudança no paradigma político, econômico e social da comunicação do país sofreu uma mão de gato no interesse público e direito de escolha da sociedade brasileira.
 
Capaz de romper o bloqueio do mercado de TV paga, com a instituição de cotas de programação de conteúdo nacional e independente e a de canais de programadoras independentes nacionais (que chegaria a cerca de 2%, percentual pequeno, mas significativo diante do bloqueio mercadológico).
 
A nova lei da TV por assinatura está sendo claramente boicotada com a proposta de modificação da Instrução Normativa, IN 91 – responsável pelo registro dos agentes econômicos que atuam neste Mercado. Proposta esta que consiste basicamente em tolher os poderes da Ancine, na fiscalização, das programadoras e empacotadoras que, segundo a lei, passarão a ser reguladas por ela.
 
Diante disso, a pergunta que não quer calar é por que a Ancine não faz uma regulação de fato da Lei, como é a Resolução 101/99 da Anatel sobre a mesma matéria e assim cumpre o seu papel, aquele que cabe ao regulador? Em vez de propor uma modificação da IN 91 que, na prática, a deixará sem capacidade de fiscalizar de fato porque optou ficar sem acesso aos documentos chaves. Da forma ora proposta, por exemplo, a Ancine não teria acesso ao ‘Acordo de Acionistas’ onde está firmado o direito de veto dado à Globo às questões de conteúdo nacional.
 
Uma lei que estabelece as relações de controle e coligação entre empresas através do critério de que uma empresa só é considerada controlada por outra quando a maioria dos seus membros do conselho de administração são eleitos e passa a ter preponderância nas deliberações sociais. Critério este equivocado, que, coincidentemente, permite que a Globosat, das Organizações Globo, não seja considerada coligada da Net Serviços. Isto não seria possível com o conceito de coligada que trabalha a Anatel e que trabalhava a IN 91 antes da mão de gato.
 
A lógica está invertida. A proposta da Ancine não pode se alinhar à manutenção do monopólio estabelecido e sim ser coerente com a lógica da Lei 12.485 de combatê-lo. O Instituto Telecom e o Clube de Engenharia defendem que a nova proposta seja feita como a resolução 101/99 da Anatel ou como já estabelecia a IN 91 da Ancine, que estabelece como controle o "poder de dirigir, de forma direta ou indireta, interna ou externa, de fato ou de direito, individualmente ou por acordo, as atividades sociais ou o funcionamento da empresa".
 
Não faz sentido logo agora que a Ancine tem a oportunidade de exercer o dever de fiscalização nos poderosos agentes econômicos do audiovisual surgir a proposta de que esta agência fique com seus poderes de fiscalização diminuídos e limitados.
A Consulta Pública da Lei 12.485 chegou a ser adiada em mais de um mês e surpreendentemente só abriu depois que importantes artigos foram subtraídos e o poder de fiscalização atenuado. No entanto, trata-se da primeira regulamentação, ainda que exclusivamente no âmbito da TV paga, dos incisos II e III do Art. 221 da Constituição Federal desde que foi promulgada há 23 anos.
 
É necessário lembrar que desde o início da TV paga há no Brasil bloqueio de acesso para o conteúdo nacional da maior empresa de mídia do país exercido por meio do ‘Acordo de Acionistas’ com os seus sócios nas operadoras NET Serviços e SKY. Conteúdo nacional de produção independente só o produzido pelos próprios canais de forma terceirizada. Canais nacionais só os da Globosat, os outros nem mesmo conseguem distribuição para chegar aos assinantes. Este bloqueio no acesso ao Mercado foi responsável pelo fechamento e ausência de criação de muitos canais. Até hoje, canais na TV paga brasileira, somente os estrangeiros e os da Globosat.
O fato é que todas as possíveis conquistas tão arduamente conseguidas com a aprovação da nova lei da TV paga poderão facilmente serem perdidas se a IN 91 não se mantiver alinhada à Resolução 101/99 da Anatel.
 
Vejamos como está a proposta modificadora da IN 91:
 
* O inciso XLV do Art. 1º, que define empresa controlada, segundo a Exposição de Motivos a pretexto de ‘maior aderência à Lei das S/A’, sofreu grandes atenuações. Com isso, caso a participação da Globo na NET Serviços continue lhe dando poderes de veto contratual através do ‘Acordo de Acionistas’ ao empacotamento de canais concorrentes à Globosat, essa relação deixará de caracterizar controle para a Ancine. Isso atualmente é caracterizado como controle pela Ancine, mas com a nova redação proposta deixará de ser. E a anomalia existente até hoje de bloqueio de acesso ao mercado para os canais nacionais seguirá perpetuada. Poderá, inclusive, dar condições à Globosat de pleitear a categoria de programadora independente! Este Inciso tem que voltar à sua redação original de forma completa para proteger o espírito da lei e a intenção do legislador.

* Pelo mesmo motivo não pode ser suprimido o parágrafo 1º do Art. 4º, que dá poderes à Ancine para aplicar sanções em agente econômico que não tiver informado controle ou coligação, conforme proposto.
 
* Na supressão proposta do Inciso IV do Art. 5º, que obriga o envio permanente de informações contábeis detalhadas, bem como planos de investimento, foi usada na "exposição de motivos” a alegação de ser ‘desproporcional à realidade do mercado’. Ou seja, quando a Ancine somente regulava os pequenos podia. Este Artigo tem que permanecer.
 
* Na "exposição de motivos" justificando sua exclusão diz: ‘No Art. 20º foi excluído o parágrafo 4º que tratava da suspensão do registro’ para que? Para poder tirar da Ancine a possibilidade de suspender registros de quem cometer irregularidades. Este parágrafo tem que voltar ao texto da IN.
 
Para que a Ancine não se torne refém dos coronéis das comunicações e agora também telecomunicações do país, é preciso em primeiro lugar manter todas as prerrogativas de fiscalização já em vigor e investir em ferramentas que garantam a transparência das ações deste mercado.
 
Por isso, é necessário que a agência divulgue os votos dos seus diretores e as Atas circunstanciadas das reuniões da Diretoria Colegiada, enquanto se prepara para que essas reuniões possam ser acompanhadas por ‘streaming’ a quem interessar. Aliás, estas INs tratam de assuntos tão relevantes para o país, que deveriam ser muito mais divulgadas essas Consultas Públicas. Mas é até difícil exercer a cidadania e conseguir participar das Consultas Públicas com um site tão pouco aberto a contribuições.
Na Minuta da Instrução Normativa Geral do SeAC, também em Consulta Pública, o Art. 33 deve ser sumariamente excluído, pois pode inclusive tornar nula toda a aplicação de cotas previstas na Lei 12.485/11.


Mão do Gato

Audiência Pública
 
Nesta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, das 14h às 18h, haverá no Rio de Janeiro (Ministério da Fazenda – Av. Pres. Antônio Carlos, 375 – 13º andar – Auditório), uma audiência pública para discutir este tema. Para participar da audiência é necessária a solicitação de credenciamento antecipado por meio do endereço eletrônico audiencia.publica@ancine.gov.br . O prazo é até hoje, dia 7 de fevereiro. A mensagem deve conter as seguintes informações: nome completo, empresa ou entidade que representa.
 
O Instituto Telecom e o Clube de Engenharia estarão presentes e farão todas as propostas acima mencionadas.
 

Dilma ano 2: um sinal vermelho na pauta da comunicação

[Título original: Dilma ano 2, uma mensagem ao Congresso e um sinal vermelho na pauta da comunicação]

O estabelecimento de uma relação institucional entre a Presidência e o Congresso Nacional, poderes constitucionalmente independentes mas politicamente interdependentes, faz parte dos rituais palacianos. Na sessão de abertura de mais um ano legislativo, Dilma Rousseff encaminhou ao Congresso uma mensagem, na verdade uma prestação de contas do que foi realizado em seu primeiro ano de governo e um programa com metas para o segundo ano de mandato. Um livro de 397 páginas que abrange todas as áreas da administração federal.

Em sua introdução, a mensagem palaciana reafirma o que considera o principal capital político do atual governo, a manutenção de taxas de crescimento econômico em meio à um cenário internacional de crise.

Comunicação recebe tratamento técnico

No capítulo Infraestrutura para Todos, desenvolvimento e qualidade de vida, entre Energia, Saneamento, Transporte, e Aviação há um espaço para a Comunicação. O enfoque, como não poderia deixar de ser – se considerado o tratamento dispensado ao tema no primeiro ano do mandato –, foi eminentemente técnico.

No que tange às telecomunicações, a mensagem demonstra que a prioridade da pasta ministerial da comunicação é o Plano Nacional de Banda Larga, bastante modificado da sua versão inicial apresentada no governo Lula. O viés mercadológico explicitado nas poucas linhas do documento enviado ao Congresso, demonstra que a opção do governo foi mesmo colocar a massificação da oferta do serviço de internet banda larga sob comando das empresas privadas.

Quanto ao balanço do trabalho realizado em 2011 no campo da radiodifusão o texto apresentado diz que:

"…o Governo buscou aumentar a eficiência, a transparência e a objetividade de critérios para procedimentos de radiodifusão. Foi divulgada a lista com informações sobre os detentores de outorgas, revistas normas e editadas programações para novas outorgas por meio de planos nacionais. E o Plano Nacional de Outorgas de Radiodifusão Comunitária permitiu a abertura de avisos de habilitação a 431 Municípios que ainda não possuíam emissoras comunitárias.

A revisão do Regulamento de Serviços de Radiodifusão, que data de 1963, teve início em 2011, com previsão de conclusão em 2012, com o objetivo de integrar em um único regulamento os procedimentos relativos a todos os serviços de radiodifusão, seus ancilares e auxiliares, bem como outras evoluções visando à simplificação dos processos de outorga e pós-outorga. No mesmo sentido, pretende-se revisar o regulamento do serviço de radiodifusão comunitária e prosseguir com as ações voltadas à atualização do marco legal das comunicações eletrônicas".

Os mais otimistas poderão dizer que o parágrafo acima refere-se ao debate do novo marco regulatório para as comunicações. Os mais pessimistas – eu me incluo neste grupo – talvez prefiram usar uma expressão popular para se referir às intenções do governo de abrir o debate sobre o marco regulatório – o gato subiu no telhado.

O texto deixa explicito que já está um curso uma revisão do regulamento que tem o objetivo de simplificar os processos de outorga e pós-outorga. De fato, no final do ano, no lugar de colocar em consulta pública os tais pontos que derivam de um tal projeto elaborado pelo ex-ministro Franklin Martins, o ministério publicou decreto mudando as regras para concessões de rádio e televisões comerciais. Somado a isto, o documento enumera as várias mudanças já iniciadas para a concessão de outorgas de radiodifusão comunitárias.

Mais a frente, a mensagem presidencial faz referência a lei 12.485 “que estabeleceu um novo marco para a comunicação audiovisual de acesso condicionado”, destacando o importante avanço que ela traz para o incentivo à produção audiovisual nacional e de conteúdo independente.

Para bom leitor meia palavra basta, diz outro ditado. O que o governo pretendeu dizer neste documento é que o ministério das comunicações já está renovando o marco regulatório, portanto, o debate público em torno de uma proposta sobre o assunto seria desnecessária e até mesmo extemporânea. Pode ser que algumas medidas sejam coladas para debate com a sociedade, mas serão pontuais e nem de longe se aproximarão do que foi debatido na 1ª Confecom e que está sintetizado nos 20 pontos consignados na plataforma do FNDC. Espero, sinceramente, estar errada.

TV Pública é comunicação de governo?

O balanço da EBC e das emissoras públicas está, na melhor das hipóteses, colocado no lugar errado. O tema foi abordado no capítulo Diálogo social e Cidadania, espaço dedicado para falar das diversas iniciativas da Presidência e do governo no relacionamento com a mídia, na publicidade dos programas sociais e na transparência de suas ações para a sociedade.

Ao tratar os temas relativos à TV Brasil neste espaço, o governo confirma a confusão que existe entre comunicação pública e estatal, e a pertinência da discussão demandada pelas organizações do movimento social no sentido de definir estes conceitos e mais que isso, dotar a TV Brasil de uma gestão de fato independente e com participação social.

2012, o ano que não começou

A mensagem presidencial enviada por ocasião do início de um novo ano legislativo reforça a sensação de que, para o tema das comunicações, 2011 não terminou. Isso porque o compromisso manifestado pelo ministro Paulo Bernardo de colocar em consulta pública pontos relativos ao debate de um novo marco regulatório das comunicações até dezembro de 2011 não foi cumprido. Continuamos aguardando dezembro de 2011, que como já dito em várias situações, por atores sociais diversos, só vai sair do calendário com muita pressão política e mobilização social.


Renata Mielli é da Coordenação Executiva do FNDC e da diretoria do Centro de Estudos em Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Transparência na Comunicação: O longo (e árduo) caminho

O Grupo RBS, afiliado à Rede Globo e considerado o maior conglomerado de comunicação da Região Sul do país, lançou em dezembro último seu Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística, em evento revestido de pompa e circunstância. De pompa porque a solenidade privada contou com a presença de chefes e demais autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. De circunstância porque reuniu o presidente do Grupo RBS, Nelson Sirotsky, que proferiu discurso “intransigente” (nas palavras dele) em defesa da liberdade de expressão, e o vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto. Registre-se que o contraditório passou ao largo de tal evento, no melhor estilo midiático brasileiro.

Convidado especial da atividade, Ayres Britto concedeu entrevista aos jornalistas da empresa e às autoridades presentes sobre o tema “Liberdade de Expressão e Transparência Pública”(disponível aqui). É de conhecimento público a dedicação profissional e o posicionamento político do ministro quanto às questões da comunicação, tendo sido dele a relatoria da ação que resultou na derrubada pelo STF, em 2009, da Lei 5.250/1967 (a Lei de Imprensa). Para o ministro, tal decisão foi um choque cultural necessário, pois a citada norma “consagrava a censura prévia, inclusive judicial, nos artigos de número 61 a 64”. Ayres costuma colocar-se como ferrenho opositor da censura prévia, no que não há controvérsia.

“Rastrear os atos”

O problema é a confusão que as altas cúpulas diretivas das companhias de comunicação fazem questão de produzir e que muitas vezes encontram ressonância no Judiciário e na Academia (porque ninguém está livre do discurso social intermediado pela mídia e há quem comungue dos mesmos interesses) de que qualquer tipo de ação fiscalizatória configura censura prévia. Isto não corresponde à verdade. Afinal, defender a existência de uma base regulamentar clara e algum controle social sobre os atos de midiatização (não sobre o negócio, que é exclusivamente privado) está muito distante de qualquer imposição às emissoras de televisão ou rádio sobre os assuntos a serem abordados.

Ayres mantém a confusão entre censura de conteúdo e controle da mídia (este último, concretamente identificado como o estabelecimento de parâmetros a serem observados pelas companhias midiáticas e a fiscalização de seu cumprimento). Estabelecer parâmetros significa, por exemplo, levar em conta a diversidade sociocultural brasileira na definição da programação, ao contrário da perspectiva atual, centralizada em São Paulo e no Rio de Janeiro e imposta ao restante do país, como se fosse o único modelo possível de representação de uma identidade nacional. Com a programação montada para atender às prerrogativas legais, quem continuará definindo quais serão os temas abordados na novela ou no telejornal para dar conta da descentralização da produção audiovisual é a empresa de comunicação.

Na entrevista concedida à RBS, Ayres reconheceu que a liberdade de expressão não se limita à ação dos jornalistas ou das companhias de comunicação, mas que consiste no “direito dos cidadãos de acessar e receber informações livres de qualquer tutela”. Para ele, entretanto, “qualquer relativização da plena liberdade de informação jornalística corre o risco de se transformar em censura prévia”. O ministro coloca a imprensa na mesma condição do Ministério Público e dos tribunais de Contas, ambos órgãos responsáveis pelo controle do poder público. “Eles (mídia e órgãos oficiais) foram especificamente aparelhados pela Constituição para rastrear os atos dos administradores”, afirma o vice-presidente do STF.

Mídia não quer mais do que “credibilidade”

É interessante a abordagem jurídica de Ayres. Ele reconhece que os cidadãos têm direito a receber informação sem tutela, mas ignora o controle realizado pelas empresas de comunicação sobre a informação transmitida por elas. Dá tamanha ênfase à liberdade plena de atuação da organização jornalística que esquece que ela é prioritariamente empresa, e que os seus interesses enquanto agente privado não coincidem necessariamente com o interesse coletivo. Aliás, se já é difícil reunir os vários interesses, dos diversos grupos socioculturais, sob o guarda-chuva de um mesmo interesse público, o problema cresce quando envolve reconhecer no interesse privado a vontade de toda uma coletividade.

O Brasil vive hoje um regime democrático representativo pleno, do qual a liberdade jornalística faz parte. Mas não é possível manter a empresa jornalística acima da lei, carecendo o Brasil de um marco legal das comunicações capaz de reunir os vários textos legais vigentes, fracos e dispersos no emaranhado jurídico. A imprensa não tem papel semelhante ao do Ministério Público ou do Tribunal de Contas, pois, ao contrário destes, ela se guia pela acumulação de capital. Pode-se até discutir se o papel desenhado pelo ministro poderia corresponder à comunicação pública (autônoma do poder público e independente dos interesses de governantes e partidos políticos), mas certamente não cabe a uma emissora comercial.

O ministro entende que liberdade total da empresa de comunicação é indicativo de uma civilização avançada e de uma democracia consolidada. Mas pode-se vê-la como indicativo de uma avançada política neoliberal no setor das comunicações. Diz Ayres na entrevista: “A nossa autoestima estará no ponto mais e mais alto com a plenitude da liberdade de imprensa. Nos orgulharemos do nosso país e a imprensa também mais e mais se compenetrará do seu dever de se depurar internamente, democraticamente, fazendo jus a essa enorme confiança que lhe depositou a Constituição federal”. Mais adiante, reafirma que a mídia não quereria mais do que “credibilidade” (entretanto, sabe-se que a missão de toda empresa é o lucro, o retorno comercial a seus controladores, sendo o prestígio apenas o caminho para tal).

A tirania do capital

Para Ayres, o tempo será suficiente para limpar as empresas comerciais de comunicação de qualquer impureza que as desvie de sua missão constitucional (que chega a ganhar ares de sagrada) de controlar as ações do poder público – como se a companhia de comunicação deixasse em segundo plano as relações comerciais que mantém com os anunciantes privados; como se os recursos públicos investidos em editais e campanhas não tivessem consequência alguma sobre a cobertura jornalística; como se a adesão a determinado projeto político por parte dos acionistas da companhia tivesse repercussão nula no cotidiano da redação. O jornalista não é livre para produzir a matéria que bem entender. Há uma rígida cadeia de comando na organização jornalística, como em qualquer empresa.

O ministro chega a citar Montesquieu (“quem detém o poder tende a abusar dele”) e Lorde Hector (“se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”) na entrevista. Ora, se a comunicação já foi apontada como o quarto poder, quem detém esse poder se não a própria empresa de comunicação? Quem, portanto, tende a abusar dele? “Se nós cumpríssemos a Constituição, este país estaria muito bem. E é essa Constituição que assegura a plenitude de liberdade de imprensa”, afirma Ayres, sem citar a proibição constitucional à formação de oligopólios nos meios de comunicação. Todavia, a imprensa livre aí está, organizada na forma de oligopólios, contrariando frontalmente a Constituição.

Em um aparente esforço de concessão, o ministro reconhece a legitimidade da ação de conselhos sociais no campo da comunicação, desde que formados a partir da sociedade civil, “rigorosamente privados, fora da estrutura do poder administrativo, do poder judicial, do poder legislativo”. Para Ayres, o grande mal está em um conselho criado pelo poder público. O que não é percebido pelo ministro é que não há nada mais nefasto, em uma democracia, do que o controle exercido pela tirania do capital, a partir do interesse privado, à margem da lei e sem a fiscalização de qualquer órgão representativo da sociedade.

Valério Cruz Brittos e Luciano Gallas são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e mestrando no mesmo programa