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TV Cultura e TV Folha: a destruição do caráter público de uma emissora

Uma audiência pública realizada nesta quarta-feira, 30 de maio, na Assembléia Legislativa de São Paulo, revelou o tamanho do distanciamento entre a direção da TV Cultura e as expectativas do povo paulista com sua emissora pública de televisão. Convidado pela Comissão de Educação e Cultura da Assembléia de São Paulo, João Sayad, diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora das TV e rádios Cultura, deixou explícita a diferença de visões entre o projeto de reestruturação que vem sendo implementado por sua gestão e aquilo que a sociedade civil e funcionários da Cultura entendem como prioritário neste momento. De um lado, a busca por audiência e o enxugamento da máquina. De outro, a defesa da diversidade e da pluralidade.

João Sayad falou bastante. Defendeu a renovação da grade de programação infantil, a compra de documentários estrangeiros e elogiou o que chamou de "debate franco e aberto, entre um comentarista de esquerda e um de direita" no Jornal da Cultura. Mas não conseguiu justificar com qualquer elemento, além da busca de audiência, a entrega de um programa jornalístico, no horário nobre do domingo à noite, à empresa Folha de S.Paulo. E este foi, não sem razão, o ponto mais polêmico da audiência pública.
 
Em todo mundo, um dos fatores primordiais para a criação de sistemas públicos de comunicação é a necessidade – para o bem da democracia dos países – de um jornalismo independente de governos e do mercado, construído a partir de critérios rigorosos de objetividade. Mas parece que este objetivo não é perseguido pela Fundação Padre Anchieta, que optou por terceirizar uma de suas principais atividades-fim. Tal opção editorial, feita sem qualquer critério, afeta a dimensão e o caráter público do serviço de comunicação prestado pela TV Cultura. Sim, porque estamos falando de uma concessionária de radiodifusão, que pela Constituição brasileira tem uma série de obrigações a cumprir, sobretudo em se tratando de uma emissora pública.

O fato de terceirizar sua grade para uma empresa privada que produz jornais impressos distancia ainda mais a programação da TV Cultura daquela que se espera de uma televisão pública. No jornalismo impresso, os veículos gozam de ampla liberdade editorial. O jornal Folha de S.Paulo não é obrigado, por exemplo, a seguir princípios editoriais que uma TV pública precisa perseguir. Ao trazer o TV Folha para dentro da grade da TV Cultura, a Fundação Padre Anchieta abre espaço, de forma acrítica, para os valores privados desta empresa comercial, descaracterizando seu caráter público.

O problema se torna ainda mais sério quando se analisa os objetivos do Grupo Folha com a parceria. Em entrevista ao Portal Imprensa, concedida na época da assinatura do acordo, o diretor do jornal deixou claras as razões comerciais da empresa em expandir seu TV Folha – veiculado inicialmente, em formato diverso, na internet – para a TV aberta. Para Sérgio D´Ávila, a parceria “trará a possibilidade de a marca Folha alcançar seu público no maior número possível de mídias. (…) O jornal continua firme no propósito de levar seu conteúdo de qualidade a um número diversificado de plataformas, e chegar à TV parece um passo natural”. Ou seja, ao abrir seu espaço para a TV Folha, a TV Cultura serve a uma estratégia comercial, de reforço da marca e busca por aumento de lucros de um jornal de grande circulação nacional.

João Sayad não vê problemas nisso. Pelo contrário, tanto que já convidou o jornal O Estado de S.Paulo para ocupar espaço equivalente. Durante a audiência pública, afirmou que a parceria "faz todo sentido" e que é "uma oportunidade da emissora ter um jornalismo reconhecido como o da Folha". Afinal, como disse, a TV Cultura "não tem linha editorial", o TV Folha "é produção independente", "são só 30 minutos dentro de uma programação de 5 horas semanais de jornalismo" e "o programa traz audiência".

Dados do Ibope e da própria TV Cultura mostram, no entanto, que a audiência no horário do TV Folha caiu, se comparada com as semanas anteriores do Cultura Documentários, veiculado no mesmo horário da grade. Mesmo que a audiência tivesse crescido, o problema persistiria.

Em emissoras públicas – e esta também é uma questão consolidada em todos os países com fortes sistemas públicos de comunicação – os índices de audiência, especialmente os mais utilizados (absoluto e de participação no mercado), devem ser lidos como apenas um dos indicadores da qualidade da programação veiculada. O mundo todo sabe que, se a lógica da audiência prevalece, ao ter que escolher entre dois programas, uma emissora acabará deixando de lado valores como diversidade e pluralidade para atrair mais público. A atenção do espectador será colocada em primeiro plano diante da relevância para o interesse público do que está para ser veiculado.

João Sayad afirmou que não quer "audiência a todo custo", mas esta foi a tônica de sua fala. Se orgulhou ao dizer que, no mês de maio, a Cultura foi a 5a TV aberta em audiência no estado de São Paulo. E, ao ser criticado pela deputada Leci Brandão por ter colocado o programa Manos e Minas na fila dos cortes do projeto de reestruturação, com prejuízos enormes para a diversidade no conteúdo da emissora, respondeu: "como administrador, tenho que me preocupar com a audiência. E a audiência do Manos e Minas é muito baixa".

Num mar de contradições, o diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta afirmou que o jornalismo da TV Cultura "não persegue o hard news nem macaqueia o que já saiu em outros veículos". De fato, quem faz isso não são os jornalistas da TV Cultura. É o TV Folha, que ocupa sua grade. Sayad também disse que gostaria de ter conseguido incluir na agenda de cobertura da emissora a discussão sobre grandes temas, mas justificou dizendo que "nosso país, e o mundo em geral, vão mal, então não conseguimos até agora". Mas não era a TV Cultura que, segundo ele, não perseguia o hard news?

Faltou explicar também como a Fundação Padre Anchieta conseguiu "aumentar em 20% as horas de produção própria com redução de 30% dos funcionários". Em documento entregue ao Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, dezenas de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sindicatos, jornalistas e ex-funcionários da emissora denunciam mais de mil demissões na gestão Sayad, entre contratados e prestadores de serviço; a aniquilação das equipes da Rádio Cultura; e o estrangulamento da equipe de jornalismo e radialismo.

Segundo o Sindicato dos Radialistas de São Paulo, setores como a cenografia foram todos terceirizados, as rádios estão para fechar e o número de funcionários com depressão é grande. O fantasma das demissões também continua rondando a Cultura, que espera decisão do STF para saber se será obrigada a contratar todos os funcionários por concurso público. Se a decisão foi positiva, pode haver novas demissões sumárias na Fundação.

Sayad, que é contrário ao regime estatutário para os funcionários da Padre Anchieta, disse na audiência que a administração trabalhista da Fundação era negligente, mas que agora "quase tudo está resolvido". Um dos poucos problemas em aberto seria a intransigência da CLT em garantir uma hora de almoço para os jornalistas dentro da jornada de trabalho. "Parece que jornalista é bóia-fria ou peão de obra e precisa fazer uma hora de almoço", disse.

Ele afirmou que novas demissões não estão em debate. As últimas se deram porque a Cultura comprou um novo equipamento e pode dispensar 40 editores. "Política de emprego é coisa do Banco Central, não é missão nossa", sentenciou. "Mantivemos toda a linha de programação, renovando o conteúdo e aumentando o resultado. Isso é o mais importante", acredita. E mandou os deputados assistirem à TV Cultura antes de fazerem tamanhas críticas.

A extinção de programas como Zoom, Vitrine, Cultura Retrô, Grandes Momentos do Esporte e Login revelam, ao contrário do que a direção afirma, que houve perda na capacidade de produção própria em função das opções administrativas e da grande quantidade de demissões realizadas. Mas o que ficou claro para todos que participaram da audiência pública na Assembléia Legislativa foi a falta de clareza de um projeto de desenvolvimento e fortalecimento da única emissora pública paulista.

Enquanto a direção e também o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta continuarem pouco ou nada abertos ao diálogo, beirando a arrogância em muitos momentos, a diversidade e pluralidade que caracterizam o povo paulista seguirão do lado de fora dos muros da Rua Cenno Sbrighi, 378. Frente ao papel histórico de referência de produção de qualidade que tem as rádios e a TV Cultura, a opção é desastrosa. Como disse o deputado João Paulo Rillo, uma emissora pública que depende do TV Folha para conquistar audiência está no mau caminho.

Bia Barbosa é jornalista, mestranda em gestão e políticas públicas pela FGV e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Fomento X regulação no audiovisual: por uma nova agência reguladora

O governo Fernando Henrique criou um monstro chamado Agência Nacional do Cinema (Ancine), provavelmente a única agência reguladora do mundo que, ao invés de regular o conjunto do audiovisual, ainda mais em tempos de convergência de mídias, concentrava-se apenas nas salas de exibição. Para piorar, não tinha praticamente nenhum poder regulador, salvo as cotas de tela, o registro das obras audiovisuais e mais um ou outro penduricalho.

Mas, a coisa ficou realmente séria quando o órgão regulador se tornou o principal fomentador do audiovisual brasileiro. Mal comparando, seria como fundir o BNDES e o CADE numa mesma instância. Enquanto uma parte do novo órgão busca criar agentes econômicos grandes e sustentáveis, uma outra parte busca regular a concorrência e evitar práticas predatórias. Ora, o conflito entre as duas atribuições é óbvio e, no caso da Ancine, só não ocorreu ainda porque a agência é praticamente desprovida de capacidade regulatória.

Mas, dada a importância de seu fomento, era inevitável que boa parte de seu tempo, de seus recursos humanos e de sua atenção se voltasse para as diferentes formas de custear o produtor audiovisual e que ela fosse vista pelo mercado e a sociedade civil como um mero escritório de fomento.

A aprovação da Lei 12.485/2011 deu novas atribuições regulatórias para a agência e este cenário, ao contrário de beneficiar a Ancine, provavelmente irá acentuar ainda mais as contradições e debilidades de um órgão de fomento que eventualmente também regula.

Sendo assim, quando o governo se prepara para apresentar um proposta de marco regulatório para as comunicações, seria fundamental propor reformas na Ancine. A primeira delas, a mais óbvia, seria separar fomento de regulação.

A “porção regulatória” da Ancine poderia se tornar uma agência reguladora do audiovisual (como fazem, em geral, os países da Europa continental) ou ser reunida num mesmo organismo com a agência reguladora da infra-estrutura das comunicações, no caso brasileiro a Anatel (como fazem Estados Unidos e Reino Unido). Particularmente, prefiro a primeira opção, porque evita que o debate sobre as telecomunicações termine por subjugar o debate sobre o conteúdo e também estimula uma política mais específica para a regulação do audiovisual.

Já a “porção fomentadora” poderia vir a compor um novo organismo, cuja maior responsabilidade seria a administração do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Este novo organismo deveria ter uma figura jurídica que lhe permitisse atuar como agente financeiro do audiovisual, eliminando as atuais distorções de uma agência reguladora que precisa terceirizar praticamente toda a sua atividade de fomento direto.

Mas, principalmente, esse poderia ser o começo do fim da renúncia fiscal, já que o novo FSA, com os recursos advindos da lei 12.485, seria capaz de suportar sozinho o fomento ao audiovisual brasileiro. Assim, colocaríamos fim a um modelo de fomento totalmente distorcido, que entre outras mazelas permite que radiodifusores e estúdios norte-americanos tenham até 49% do patrimônio das obras brasileiras (ditas “independentes”) sem precisarem gastar um único tostão. Um modelo que não foi capaz de criar empresas sustentáveis, que aumentou a produção sem aumentar o market share das obras brasileiras e que inflacionou custos.

O debate sobre o novo marco regulatório para as comunicações pode ser o momento de constatarmos que o atual modelo é prejudicial tanto para a regulação quanto para o fomento ao audiovisual brasileiro e que precisamos dar um passo além. Do governo, espera-se a coragem necessária…


Gustavo é mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ) e integrante do Coletivo Intervozes. É servidor público concursado, especialista em regulação da atividade cinematográfica e audiovisual. É autor do Blog do Gindre: www.gindre.com.br

Quando a violência na mídia vira problema da Justiça

Dia após dia ganha força as críticas a um vídeo estarrecedor do programa policialesco Brasil Urgente, edição da Band Bahia. Na matéria uma repórter, loira, faz chacota com um suspeito, negro, dentro de uma delegacia. Cenas como essa são recorrentes no conteúdo emitido por emissoras de tv aberta no País, especialmente na Bahia.

É natural que se procure pesar a responsabilidade aos concessionários, ou mesmo uma ação em defesa dos princípios éticos do jornalismo. Um Decreto ( nº 52.795) presidencial de 1963 institui no no Art 28 (incluído em outro decreto de 1983) que as concessionárias na programação ficam sob a responsabilidade de: “não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico”.

Porém travar esse embate no campo da regulação de conteúdo propriamente é um hábito pouco afeito à sociedade brasileira. Caímos, infelizmente, no senso comum de que o único controle sob o conteúdo é o contole remoto, e o contrário é tentativa de esquerda retrógada de censurar a imprensa.

Ainda assim, as possibilidade de barrar essas aberrações não se esgostam. Resta outro caminho na Justiça que pode ser mais até mais frutífero do que imaginamos. Isso mesmo, Justiça, está aí a chave do problema. Imagens como esta têm fatia grande de responsabilidade das instituições policiais do estado da Bahia, ou mais precisamente, a Secretaria de Segurança Pública. Sim, o cidadão está sob tutela do Estado, e não precisa ser advogado para se resignar com o fato de estar algemado, dentro de uma delegacia, e ser acusado sumariamente, sem direito a julgamento.

Há mais de dois anos situações como essas têm sido acompanhadas por uma equipe do Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania da Facom/UFBA, com apoio do Intervozes e Cipó Comunicação. Pesquisadores, coordenados pelo diretor da faculdade, Giovandro Ferreira, têm sistematizado os elementos discursivos e éticos que compõe esses programas. Já as entidades têm buscado via Ministério Público, Defensoria, Conselhos de Direitos e sob parceria de outras organizações sociais desatar o nó para impedir a continuidade.

Já se passaram audiências, reuniões, seminários, denúncias, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para adequar questões da infância e adolescência… Há anos o delegado chefe da Polícia Civil na Bahia já determinou que não se permitisse filmagens internas em delegacia. Mais uma “letra morta”.

Durante um seminário no auditória da Facom UFBA, em setembro de 2010, a então promotora da 1ª Vara Cível do Juri, Isabel Adelaide, citou algo ainda mais assustador: a maioria dos casos que se transformam em matérias dos programas não são coletadas provas suficientes para condenação dos acusados, tornando os casos como infundados e falaciosos. Isabel Adelaíde também confessou na ocasião que a ficha do corrida dos policiais-fontes é mais extensa do que se possa imaginar.

Mas os policiais e comunicadores que dão prosseguimento à esses atos continuam impunes. Não falta poder político, econômico ou mesmo religioso para barrar as investidas. Na arena do governo do estado, basta ligar a rádio ou tv e ouvir quantas vezes secretários de estado são citados como “amigos” por apresentadores ícones desses programas, fora os investimentos publicitários. Na Assembléia Legislativa o delegado-deputado Deraldo Damasceno (PSL) integra a extensa da base do governo, e era grande fonte de reportagens quando comandava a 5º Delegacia de Periperi.

Durante a greve dos policiais em fevereiro de 2012 o governo parece ter experimentado do veneno da aliança entre policiais e programas de tv para promover o pânico. Mas parece que o executivo estado não aprendeu, e assina seu próprio atestado de incompetência no Pacto pela Vida, no quesito relacionamento com a sociedade.

A partir de janeiro de 2012, as entidades e universidade têm no Conselho de Comunicação da Bahia um espaço institucional para dar prosseguimento à indignação. O papel do Conselho é encaminhar as denúncias de violações aos órgãos competentes. Não pode punir, por não ser um órgão regulador federal, nem aparato da Justiça.Contudo,  a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos está presente no órgão de caráter deliberativo e consultivo, e o titular da pasta, Almiro Sena, é um promotor licenciado, conhecido por ter enfrentado esses programas na sua casa originária e envolvimento tênue com o debate racial.

O Conselho pode virar mais uma tentativa em vão. Utilizar apenas o caráter consultivo para não resolver nada. Há muitos que acreditam nisso. Poucos botam fé no contrário. Eis o meu caso. Não, apenas, por ser membro do Conselho. Mas por compreender que determinados contextos históricos estão chegando na Bahia…

Ah, tem um livro sobre um assunto, no qual sou um dos autores: A construção da violência na televisão da Bahia: um estudo dos programas Se Liga Bocão e Na Mira, Ed. Edufba, 2011.

Pedro Caribé é jornalistas e integrante do Intervozes. Em 2011 foi eleito como um dos representantes da sociedade civil no Conselho Estadual de Comunicação da Bahia. É autor do blog Vozes Baianas: www.vozesbaianas.wordpress.com 

Lei de acesso à informação: Contra a opacidade

O Brasil passa a contar a partir da próxima quarta-feira com uma lei que garante a qualquer cidadão o amplo acesso a informações dos poderes públicos. A Lei nº 12.527/2011, de Acesso à Informação, busca disciplinar e efetivar o exercício do direito fundamental de acesso à informação – previsto no artigo 5º da Constituição Federal – e, entre vários reflexos, certamente tornará o poder público mais transparente e aberto.

Com um instrumento legal claro e regulatório em mãos, a sociedade passa a ter ferramentas efetivas para saber melhor o que se passa atrás de algumas portas e dentro de gavetas dos palácios, ministérios e secretarias do Executivo, não apenas em Brasília, mas também nos Estados, municípios e embaixadas brasileiras ao redor do mundo. Os Poderes Judiciário, Legislativo, os Tribunais de Contas e o Ministério Público também serão obrigados a, finalmente, acender suas luzes. Tudo, absolutamente, é objeto da nova lei. E todos os que de algum modo recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos, se subordinarão a ela.

Em verdade, esse processo de abertura não será fácil. Baixar novas normas é sempre menos complicado do que mudar culturas e vencer burocracias arraigadas desde tempos coloniais. Todavia, se é inegável que a lei em questão fixou exíguos seis meses para que os órgãos se adaptem, não é menos verdade que o projeto de lei que originou a Lei de Acesso à Informação foi enviado ao Congresso nos idos de 2009, e aprovado no fim de 2011. Logo, é evidente que o tema já vem sendo debatido há anos e nada impedia que as instituições se antecipassem, na medida do possível, em relação ao objeto das propostas. Infelizmente, a cultura da opacidade é quase onipresente no País e muitas de nossas instituições ainda querem lutar em sentido contrário ao ideal republicano da transparência que fundamenta e orienta a formação do nosso Estado.

De qualquer forma, o que importa é que os tempos de escuridão e indiferença dos entes públicos estão com os dias contados. Ressalvadas algumas hipóteses excepcionais previstas na lei quanto à necessidade do sigilo, a regra – como já previa o texto constitucional, desde 1988 – é a publicidade, e o sigilo só pode ser exceção.

A ausência ou incompletude de informações em temas de grande relevância tem dificultado que ocorram debates francos dentro de uma sociedade. O sistema prisional paulista, por exemplo, onde está cerca de um terço dos presos do País, tem gargalos de informação, principalmente relacionados às mulheres presas. Esse déficit de dados inviabiliza uma profunda e firme discussão sobre o tema, já que o quadro que se pinta daquele cenário é borrado, quando não incompleto. Assim, a busca pela transparência e divulgação de informações deve ser objeto de incansável persecução, na medida em que a sistematização de informações pelos entes públicos ajudará no desenvolvimento de políticas públicas que tratem daquela questão.

Óticas diversas

Outro exemplo que podemos citar é que hoje se aguarda que o relatório do Subcomitê para a Prevenção da Tortura da ONU, produzido após visita realizada ao Brasil no ano passado no intuito de monitorar a situação da tortura e de maus-tratos em unidades de privação de liberdade, seja trazido a público pelo governo federal. A divulgação do documento certamente contribuirá para um debate mais rico entre poder público e sociedade civil acerca do tema, consubstanciando-se em grande oportunidade para que o País finalmente enfrente o assunto de forma firme e aberta.

Além de criar a responsabilidade de atender a requerimentos de informação, a lei impõe aos órgãos públicos a obrigação de praticar a chamada transparência ativa. Independentemente de demandas, mesmo os órgãos conhecidos pela pouca afeição à publicidade e transparência, como o Ministério das Relações Exteriores, terão que disponibilizar em seus sites informações de forma constante. Em uma época de ascensão do papel do Brasil no mundo, é inadmissível que ainda não exista nesses órgãos a cultura de divulgar informações sistematizadas.

Como resultado, se espera não só um crescente desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública – e do seu controle social -, mas também que tenhamos ao longo do tempo uma sociedade mais fiscalizadora, participativa e propositiva, capaz de contribuir para a adoção de políticas públicas pertinentes. Em um ambiente no qual o debate dialético entre representantes e representados terá mais qualidade, já que não mais somente um dos lados terá o monopólio da informação, os resultados tenderão a aparecer, e espera-se, aprimorados, uma vez que serão objeto de análise e debate prévios, sob diversas óticas.

Por fim, cabe ressaltar, a nova lei dispõe expressamente que “as informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso”. Bem-vinda, pois.

Rafael Custódio é advogado, coordenador do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos; João Paulo Charleaux é jornalista, coordenador de comunicação da Conectas

Conselho Consultivo tem que discutir regime público para banda larga

Bandeira defendida desde sempre pelo Instituto Telecom, e encampada pela sociedade civil, o regime público, ferramenta estratégica para democratizar o acesso aos serviços de banda larga e telefonia fixa, corre o risco de ser completamente eliminado das esferas governamentais e das regulações praticadas no setor de telecomunicações do Brasil.

Na semana passada, durante o seminário "Banda larga no Brasil e o direito dos Consumidores", organizado pelo Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), em Brasília, o fantasma do fim do regime público na prestação do Serviço de Telefone Fixo Comutado (STFC) voltou ao centro do debate.

Desta vez foi a advogada do Idec, Veridiana Alimonti, que questionou a Anatel sobre as recentes declarações do conselheiro Jarbas Valente a respeito de estudos da Agência para adoção de uma licença única na prestação de serviços de interesse coletivo, ou, nos termos usados por Valente, na utilização de uma "inexistência de regimes".

Alimonti tocou, acertadamente, em pontos primordiais da questão. Dentre elas as chances da adoção dessa licença única representar um risco de institucionalização da venda casada (prática considerada ilegal, mas bastante comum entre as operadoras) e acirrar ainda mais a velha problemática do retorno para o Estado dos chamados bens reversíveis, principalmente, a infraestrutura de fibra ótica.

O discurso de Rodrigo Zerbone, membro do Conselho Diretor da Agência e presente ao evento, de que a tendência é que a regulação da Anatel deixe de ser "por regime" e passe a ser por distorções causadas por empresas com Poder de Mercado Significativo (PMS) também merece atenção.

O posicionamento de Zerbone aprofunda, no caminho liberal, a proposta defendida pelo conselheiro Jarbas há algumas semanas, de transformar o único serviço de telecomunicações brasileiras prestado em regime público, a telefonia fixa (STFC), em regime privado. Fez parecer que, aos poucos, a tese apresentada por Jarbas Valente vai tomando conta de todo o Conselho Diretor da Anatel.

Mais uma vez o Instituto alerta a sociedade para o fato de que nunca na história do Brasil, e mesmo da maior parte dos estados neoliberais europeus, serviços essenciais como telefonia móvel, fixa e banda larga se tornaram acessíveis para a população sem a intervenção estratégica do Estado com o estabelecimento de metas e obrigações de alcance, tarifa, qualidade, garantia de continuidade e reversibilidade de bens. Pelo contrário. No Brasil, por exemplo, foi somente através da prestação da telefonia fixa em regime público que a voz se constituiu no serviço mais próximo do nível de universalização.

O cenário é preocupante. Por isso a extrema urgência do Conselho Diretor dar satisfações à sociedade civil sobre quais são as propostas e mudanças na regulação que estão sendo pensadas e discutidas internamente pela Agência nesse momento.

A reivindicação da sociedade civil está clara: a banda larga tem que ser prestada em regime público. Isto está presente, inclusive, entre os vinte pontos colocados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) na proposta elaborada e entregue ao governo para um novo Marco Regulatório pelas Comunicações.

O Instituto Telecom destaca a necessidade urgente da sociedade se mobilizar para assegurar a banda larga em regime público. Entre as funções do Conselho Consultivo da Anatel está a de aconselhar o Poder Executivo quanto ao serviço prestado em regime público. E é com base nisso que reivindicamos, por telefone e por e-mail, ao presidente do Conselho, Marcelo Siena, que seja colocado na pauta da próxima reunião, dia 25 de maio, o debate sobre quais são as mudanças propostas para a regulação de serviços essenciais como o STFC e a banda larga. Propusemos, ainda, a convocação de Jarbas Valente, do Sinditelebrasil, do Idec e do FNDC para discutirmos democraticamente esse processo.