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Radiodifusão como arma: o episódio do ataque aos indígenas no Maranhão

O ataque a indígenas no município de Viana nos releva o lado mais brutal do patrimonialismo, clientelismo e mandonismo na mídia brasileira

Por Suzy Santos*

No dia seguinte ao ataque sofrido pelos indígenas Gamela, em Viana, no Maranhão, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) postou uma gravação da Rádio Maracu que demonstrava claramente a orquestração do ato de violência. O que mais chamou atenção nacionalmente foi a participação do deputado federal Aluísio Guimarães Mendes Filho (PTN-MA), que reproduziu um discurso preconceituoso incitando à violência. Na maioria dos textos publicados a partir do episódio, a fala foi “em entrevista a uma rádio local, o deputado…”.

Mas de qual rádio local estamos falando?

A Rádio Maracu AM pode ser considerada uma rádio qualquer dentro de um espectro de milhares. Ela faz parte de um grupo diminuto numa cidade de pequeno porte, com cerca de 50 mil habitantes. O raio-x desta emissora é, no entanto, exemplar da lógica estrutural da radiodifusão brasileira, um sistema regido pelo patrimonialismo, clientelismo e mandonismo.

O grupo Maracu é composto pelas emissoras: Maracu AM/FM, Comunitária Sacoã FM e TV Maracu/Meio Norte. Isto significa 60% da radiodifusão local, dado que o município conta apenas com mais uma rádio FM e uma retransmissora de TV licenciadas. Mas as empresas do grupo não são oficialmente do mesmo dono. São duas razões sociais distintas: a Rádio Maracu Ltda e a Fundação da Integração Cultural Vianense.

Oficialmente, segundo os dados do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (Siacco) da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Rádio Maracu Ltda tem os seguintes proprietários: Antônio Pinheiro Gaspar, ex-deputado federal e empresário do ramo farmacêutico; e Ângela das Graças Simões Gaspar, de quem os buscadores na internet nos falam apenas ser sócia de Antônio Pinheiro Gaspar em diversas empresas.

Patriarcado e compadrio político

Esta composição acionária é reproduzida em grande parte das razões sociais de empresas de comunicação no Brasil, das grandes emissoras nacionais como, por exemplo, a Rádio e Televisão Record SA, em nome de Edir Macedo Bezerra e Ester Eunice Rangel Bezerra, às pequenas, como a outra retransmissora de TV licenciada no município de Viana, a Viana Sistema de Televisão Ltda, de Antônio Bernardino Rabelo Filho e de Raimunda Socorro Mendonça dos Santos.

Se quisermos saber dos homens destas empresas, basta digitar o nome nos buscadores. Muita coisa aparecerá. Das mulheres, no entanto, apenas informações genéricas, superficiais. O imenso universo de mulheres proprietárias de meios de comunicação no País não se traduz em mulheres na condução das emissoras. São esposas, filhas, noras, cunhadas etc., que emprestam seus nomes aos verdadeiros donos. Muitas vezes, sem qualquer conhecimento de suas próprias posses. Trata-se, na verdade, da face patriarcal da elite nacional.

A fundação que dá nome à razão social por trás da Sacoã FM demonstra outra característica do sistema nacional: a invisibilidade e a instrumentalização privada da radiodifusão comunitária. Não se encontra nada nos dados do Siacco sobre os sócios e dirigentes da Fundação da Integração Cultural Vianense. Pra quê transparência, né? Buscando um pouco mais descobre-se que seu representante legal é José Ribamar Costa Filho, ex-prefeito do município de Dom Pedro. Embora tenha uma concessão de serviço comunitário, a rádio é parte de um grupo comercial.

Seguindo as fontes oficiais, estamos falando de emissoras distintas. Mas ao observar atentamente o site da Rádio Maracu descobrimos mais: é uma rede e está sob a direção de Benito Filho. Quem?

Fuçando um pouco mais no site da Maracu AM, descobre-se que o ex-prefeito de Viana, Benito Coelho Filho, arrendou a emissora e a dirige em parceria com Ezequiel Pinheiro Gomes, advogado, ex-vereador, ex-presidente da Câmara de Viana, também segundo o site da emissora.

Se buscarmos um pouco mais as informações, com os nomes de Benito Filho e Ezequiel Gomes no Diário Oficial do Maranhão, descobriremos uma rede de associações entre prefeituras, como as de Lago da Pedra, Matinhas, Pedreiras e Presidente Dutra, para as quais os sócios da Rádio Maracu prestaram serviços de consultoria nos últimos 10 anos.

A rede de compadrio é capilarizada e pode ser também observada se buscarmos nos portais de transparência federais pelo dono da Rádio e TV Maracu, Antônio Gaspar. Veremos que ele aluga imóveis com frequência ao governo federal e ao senador Roberto Rocha (PSB-MA), a quem ele ajudou a eleger. Suas empresas farmacêuticas também têm diversos contratos com a máquina pública, retroalimentando a estrutura patrimonial-política.

Interesse público?

Vamos agora voltar ao dia 28 de abril, aos índios Gamela e à gravação da Rádio Maracu. O programa se anuncia como um serviço de utilidade pública: representantes da comunidade e o advogado da associação de moradores vão à rádio convocar para um encontro que acontecerá no dia seguinte, na pracinha do Santeiro, localidade de Viana, onde os conflitos sobre a posse de terras estão ocorrendo.

O apresentador Gilvan Ferreira dá a voz à dona Maria do Socorro: “Viemos fazer uma reclamação ao grupo de pessoas que dizem serem índios que chegam num lugar e invadem a casa das pessoas. Eles invadem e não respeitam os idosos. Esses invasores não são índios. Eu moro lá e não conhecemos eles. Eles não são índios. Eles vão dando uma lavagem cerebral […]. Você trabalha pra ter a sua propriedade, seu gadozinho e eles invadem. Nós queremos dizer que não vamos permitir e vamos acabar com esta palhaçada. Eu agradeço a oportunidade.”

A seguir, fala o irmão Juca: “Nessa região não tem fazendeiro, tem criador. As pessoas não estão mais tendo prazer de botar um peixe no seu açude”.Aluísio Mendes Filho

Logo a seguir vem a já conhecida fala do deputado Aluísio Mendes. Nela, ele dá a entender que a proteção está garantida, tanto pela polícia – “Estarei amanhã nessa região […] com a Polícia Federal” – quanto pelo Ministério da Justiça – “Nós temos a grata surpresa de ter um ministro que entende dessa problemática e viveu isso no estado do Paraná”, diz, referindo-se ao ministro da Justiça, Osmar Serraglio.

Por diversas vezes se ouve “dizem que são índios”, “arruaceiros”, “pseudo-índios” e “precisamos acabar com isso”, “não vamos tolerar”. São 41 minutos. Dez deles deixados para a finalização feita por ninguém menos que um dos dirigentes da Rádio Maracu, o Dr. Ezequiel Gomes. Ele começa a sua fala elogiando a fala do deputado federal que o antecedeu:

Eu gostaria, Aluísio, eu gostaria de elogiar a sua participação eu reconheço o seu serviço. Eu não tinha dúvida que você encamparia esta causa. E você além de um grande político é um policial. E você sabe que este é o momento de tentar apaziguar pra não acontecerem coisas.

Logo a seguir, o advogado anuncia a quem ele representa:

O momento é oportuno […] eu tenho a oportunidade de presenciar algo louvável. Eu vejo que a maioria, aliás, todos aqui são cristãos […] aí eu lembrei das escrituras e é o tempo de eu prestar esclarecimento à população sobre a invasão e o saque que fizeram no sítio do meu amigo Benito, onde eu sou advogado, nós entramos com uma ação de reintegração de posse por perdas, porque o que houve lá foi saque, onde as pessoas que se intitulam – entre aspas – são índios de uma etnia gamela, invadiu a área, destruiu os açudes, deram prejuízo de mais de 100 mil reais ao proprietário, então este processo tem se arrastado e eu tenho cobrado insistentemente uma atitude da Justiça”.

O advogado refere-se ao seu amigo, sócio, companheiro da vida política, Benito Filho. Não coincidentemente, arrendatário da Rádio e da TV Maracu. E finaliza conclamando:

Então ninguém pode aceitar isso. Você está na sua casa […] Então nós estamos chegando a um ponto, se você tem um apartamento, se a sua família é composta de quatro pessoas e o teu apartamento tem três quartos, porque tem um quarto vazio a pessoa pode chegar e invadir o quarto que está vazio e dizer que é índio, que é quilombola, que não sei o quê e você fica inerte. A população tem que reagir, tá fazendo o correto e amanhã eu vou estar lá…”.

Dois dias depois de este programa ir ao ar ouvimos sobre o brutal ataque a dezenas de indígenas. A dúvida sobre a legitimidade das vítimas se reproduziu mesmo no discurso dos grandes veículos de comunicação. Discurso este que vai de encontro aos mitos que ecoam há muitas décadas, o mesmo discurso que diz “não são índios”, já disse e segue dizendo “não são sem-terras”, “não são trabalhadores”, “não são vítimas”.

Esta não é uma história isolada, pelo contrário, ela é um bom exemplo do papel da radiodifusão como instrumento da rede de clientelismo e interesses patrimoniais que liga municípios, estados e federação. É um pequeno retrato que se repete em milhares de emissoras de rádio e televisão que compõem este sistema midiático que temos chamado de coronelismo eletrônico, no qual pouco há de lei que se respeite, de interesse que seja social, de informação que seja plural e independente.

*Suzy dos Santos, professora da ECO/UFRJ, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Economia e Políticas da Informação e da Comunicação.

Facebook negocia dados de milhões de jovens emocionalmente vulneráveis

Uso de informações de crianças e jovens pela rede social comprova urgência da proteção dos dados pessoais

Por Marina Pita*

Há cerca de dois anos, eu e minha família recebemos a notícia de que minha mãe teria de enfrentar um tratamento para câncer. Dias depois de ter recebido a notícia, resolvi compartilhar pelo WhatsApp, com uma amiga querida que estava longe, o estado de ansiedade e apreensão pelo qual passava.

No dia seguinte, um e-mail na minha caixa de entrada informava sobre um remédio milagroso para a doença. Respirei fundo e apaguei. Coincidência ou não, o fato que é que a informação de que o assunto “câncer” estava no meu espectro de interesse poderia, sim, ser usada para fins de publicidade. A fragilidade, a vulnerabilidade, a insegurança, já descobriram os publicitários há alguns anos, são importantes impulsionadores de vendas.

Agora, se o caso ocorreu já há dois anos, por que compartilhá-lo agora?

Porque um documento interno do Facebook, que acaba de ser vazado pelo jornal Australian, revelou a capacidade da companhia de identificar quando um adolescente ou um jovem trabalhador se sente “inseguro”, “inútil” e precisa de um “impulso de autoestima” – tudo baseado num banco de dados de 1,9 milhão de estudantes de Ensino Fundamental, 1,5 milhão do Ensino Médio e 3 milhões de jovens trabalhadores.

Quem acompanhou, no Dia Mundial da Saúde, os diversos alertas sobre depressão e como a doença é hoje a principal causa de problemas de saúde e invalidez no mundo, pode pensar: que ótimo! Esta informação pode ser usada para gerar algum tipo de acompanhamento, indicação de profissional, sugerir que o adolescente busque ajuda.

Não. Veja bem.

O documento em que a maior rede social do mundo se gabava de poder monitorar posts e fotos em tempo real para determinar quando um jovem se sente “estressado”, “derrotado”, “ansioso”, “nervoso”, “estúpido”, “fracassado”, “idiota” ou “um fracasso” era, na realidade, uma apresentação feita para um dos maiores bancos da Austrália.

Isso mesmo, um banco.

Ou seja, a informação sobre a situação emocional de adolescentes e jovens está sendo usada para fins econômicos, para o lucro de corporações.

Neste sentido, o vazamento do documento do Facebook e a exposição dos dados nele contidos não é apenas mais um alerta sobre a capacidade de coleta e processamento de dados na era moderna. É um importante indicador de que todo mundo precisa de privacidade se não quiser que suas maiores vulnerabilidades sejam exploradas para o único fim de vender.

Em um momento em que muitos alardeiam a era do fim da privacidade, como se fosse algo trivial, em que se ouve a cada roda de conversa que alguém não teme a coleta massiva de dados e a vigilância “porque não tem nada a esconder”, talvez esta notícia faça com que todos passem a entender que a privacidade não é importante apenas para os corruptos, bandidos ou ditos subversivos, mas para que qualquer cidadão esteja protegido do modelo de consumo atual: a qualquer custo, sem limites e sem ética, ao qual todos estamos sujeitos.

É hora de pararmos para questionar as maravilhas que os sistemas de “Big Data” farão pela humanidade, usando os nossos dados para nos entregar o que há de mais perfeito para nossa personalidade ou para encontrar a origem de nossas doenças, e começarmos a entender que uma sociedade orientada para o lucro obviamente usará os recursos tecnológicos em vasta medida para este único e exclusivo fim.

E isso é verdade, apesar do que dizem os “evangelistas” de tecnologia, profissionais altamente qualificados, pagos por grande empresas do setor de “coleta de dados e softwares de inteligência” para apregoar, com apoio de potente máquina de influência de mídia, as benesses que serão um dia obtidas com o modelo em que nós entregamos nossas informações mais pessoais sem nem sequer entrar na lógica do lucro e cobrar por isso.

Exploração comercial de crianças e adolescentes

O mais incrível é que a exploração de dados para fins de lucro não encontra limites nem para com crianças e adolescentes, que devem ser tratados como prioridade absoluta – como estabelece a Constituição brasileira.

Pouco importa se pelo menos eles deveriam ser poupados de determinadas práticas mercadológicas até que tenham maturidade para compreender as implicações de terem seus dados disponíveis para as áreas de publicidade e marketing (no mínimo) das companhias.

Além da sanha do mercado, essa falta de limites está relacionada também com a fragilidade regulatória sobre a coleta, processamento, uso e, claro, proteção de dados pessoais. No Brasil, por exemplo, e apesar dos esforços de diversas entidades, especialistas, acadêmicos e juristas (muitos deles reunidos na Coalizão Direitos na Rede) de ver aprovada uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, a agenda política do país e alguns interesses escusos têm impedido que o tema se torne prioridade no Congresso Nacional.

Pelo contrário, o que mais se vê são projetos de lei baseados na violação da nossa privacidade para, supostamente, nos proteger dos males contemporâneos.

Uma legislação adequada à proteção de dados dos cidadãos e cidadãs – em especial, dos mais vulneráveis – é necessária e mais do que bem-vinda. Mas o debate ainda encontra os limites na cultura, nas tecnologias disponíveis e no conhecimento dos brasileiros sobre o assunto.

Para tentar sustentar este outro pilar para a tão necessária garantia do direito à privacidade e à autodeterminação em dados pessoais, organizações como o Intervozes, Saravá, Actantes, Encripta Tudo e Escola de Ativismo organizam anualmente um evento aberto para discutir, neste contexto de coleta massiva de dados e vigilância constante por Estados e empresas, temas como segurança, privacidade, criptografia, técnicas e soluções tecnológicas para a proteção de cidadãos e organizações. Trata-se da CryptoRave.

A edição deste ano começa nesta sexta-feira, 5 de maio, e segue até o sábado 6, às 19hs, na Casa do Povo, em São Paulo. Serão 24 horas diretas de palestras, debates, oficinas, jogos e apresentações artísticas para todos os perfis de pessoas – desde os mais geeks até o cidadão comum, que acaba de descobrir que tem muito a perder se não começar a se atentar para o tema.

Nosso lema deste ano é: “Dance como se ninguém estivesse olhando, porque ninguém precisa de mais depressão no mundo. Mas criptografe, porque todos estão”.

* Marina Pita é jornalista, membro do Intervozes e uma das organizadoras da CryptoRave.  

Comunicação pública de Pernambuco pode estar com os dias contados

Baixo orçamento e reduzidas ferramentas de participação social podem levar ao desmonte das iniciativas de radiodifusão pública no estado

Por Eduardo Amorim e Cátia Oliveira*

Uma audiência pública na Câmara Municipal do Recife, na última quarta-feira 26, abriu espaço para discussões sobre o abandono de diversos órgãos públicos de comunicação em Pernambuco.

Enquanto vemos na mídia privada questões importantes, como a da reforma trabalhista, sendo distorcidas ou silenciadas, veículos que poderiam contribuir para que o debate de fato exista são sucateados.

Convocada pelo vereador Ivan Moraes Filho (Psol) para discutir a Rádio Frei Caneca, a audiência abordou também o possível fechamento da TV Pernambuco (TVPE), no Recife, o desmonte das estratégias de controle social e participação da TV Universitária (TVU) e o pouco investimento nas tevês e rádios legislativas.

Apesar de algumas vitórias importantes, como a digitalização da TVU e a entrada no ar da Rádio Frei Caneca, a situação de Pernambuco reflete o que acontece em um estado onde a comunicação pública vive de promessas não cumpridas.

Também faz parte de um contexto nacional de desmonte acelerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo governo ilegítimo de Michel Temer.

Em Recife, a Empresa Pernambuco de Comunicação (EPC), empresa pública que gere a TVPE, veicula conteúdos da EBC e conta com retransmissoras em mais de 60 municípios, ao contrário das tevês comerciais, que têm menor alcance (principalmente em regiões mais afastadas).

Mas esse cenário pode mudar.

No calendário do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o desligamento do sinal analógico dos televisores e a substituição pelo digital estão previstos para meados de julho deste ano.

A TVPE, ainda operando com sinal analógico, deverá sair do ar na capital pernambucana, já que não foi cumprida a promessa do ex-governador Eduardo Campos de investimento de R$25 milhões para modernizar a emissora.

Vale lembrar que muitos municípios em diversas áreas do Estado não contam com transmissoras locais nem recebem sinal de cidades vizinhas. Sem acesso à informação, tais lugares tornaram-se conhecidos pelo uso das parabólicas. As antenas captam sinal de diversas regiões, não necessariamente da localidade onde estão.

O fenômeno leva as pessoas a desconhecer o que é produzido em seu Estado, incluindo aí parte de seu patrimônio cultural, assim como acontecimentos e problemas de sua região, em detrimento de outras.

Um exemplo é o que já acontece em Araripina. Segundo o representante do município na audiência pública, o blogueiro Portnalli Chuim, a emissora atualmente não chega à sua cidade.

Para resolver o problema, a sociedade civil demanda a implementação de uma estação retransmissora em Ouricuri, ponto ideal para atingir toda a região do sertão do Araripe.

Segundo o diretor-presidente da EPC, Guido Bianchi, a digitalização da TVPE precisaria começar por Caruaru, onde se localiza a geradora do sinal da emissora.

Em seu Plano de Gestão para 2016, a EPC estimou em R$ 4 milhões a implantação da transmissão digital na cidade de Caruaru e em Recife. Porém, essa não parece ser uma prioridade do governo estadual.

Enquanto as cifras para publicidade crescem, a TV pública permanece à míngua, correndo o risco de deixar de existir se não for digitalizada. No mesmo ano, conforme dados do site Ombudspe, o governador Paulo Câmara injetara 17,4 milhões de reais no orçamento previsto para publicidade oficial.

Isto sobre um montante já provado na Lei Orçamentária Anual (LOA) de R$ 54,5 milhões, somando então mais de R$ 70 milhões no total.

A farra dos gastos publicitários se repete na capital. O vereador Ivan Moraes denunciou durante a audiência pública que, em 2017, a Prefeitura do Recife já havia pedido uma suplementação de verba para publicidade, podendo chegar a gastos de R$ 15 milhões.

No entanto, parece difícil que sejam disponibilizados os R$ 1,7 ou R$ 2 milhões necessários, segundo o diretor da Rádio Frei Caneca, Patrick Torquato, para que a emissora pública municipal comece a funcionar com programação e equipe próprias.

Participação social? Só no papel

Inspirada nos moldes da EBC, a EPC foi criada atendendo a uma reivindicação antiga e persistente dos movimentos sociais de comunicação, entre outros segmentos.

A proposta de reestruturação da antiga tevê do Estado foi a mais votada da Conferência Estadual de Comunicação, em 2009. Após muitas pelejas, a lei de criação de empresa pública EPC foi aprovada e foi instituído um Conselho de Administração – com membros da sociedade civil com poder decisório.

Contudo, a nova estrutura da empresa permaneceu sem recursos compatíveis com o seu funcionamento.

Hoje, com um novo quadro eleito de conselheiros/as ainda não nomeados/as e sem previsão de orçamento para seu porte, a emissora vem deixando de atender às demandas de produção de conteúdo que poderiam ser veiculados em sua grade.

Em relação à TV Universitária – que não faz parte da EPC e é ligada à Universidade Federal de Pernambuco –, o cenário é melhor por já ter sido digitalizada, mas ainda está longe do ideal em termos de participação.

Em 2015, um comitê formado por funcionários, professores e integrantes de Organizações Não Governamentais do campo do direito à comunicação, além de representações de movimentos sociais, deram início a um processo de reestruturação do Núcleo de TV e Rádio Universitária (NTVRU), que tem alcance metropolitano.

Após vários encontros e debates, foram elaborados documentos que norteariam as práticas para uma efetiva comunicação pública: participação social; transparência e possibilidade de acesso dos diversos segmentos da cultura, entre outras áreas; construção participativa da grade de programação dos veículos, com pluralidade de conteúdos e elaboração de editais de ocupação.

No entanto, a nova direção do Núcleo, que acompanhou o processo de digitalização da emissora, ainda não tirou as propostas do papel.

Uma rara boa notícia na TV Universitária é o programa Fora da Curva, realizado em parceria com diversas organizações sociais.

A falta de resposta às demandas da sociedade também é a prática de gestão municipal da rádio pública Frei Caneca FM. Depois de mais de 50 anos de reivindicações, apenas em 2016 a rádio foi colocada no ar pela prefeitura, mas ainda em caráter experimental.

Desde então, a FM funciona de forma muito aquém de seu potencial e de sua proposta inicial, tendo produzido conteúdo próprio apenas durante o carnaval, quando abriu os microfones para um programa de entrevista sobre o frevo e a produção local. Durante o restante do tempo, a Frei Caneca tem ocupado sua grade de programação com música. Porém, um veículo público deveria ser bem mais que uma playlist de qualidade.

As iniciativas do legislativo para tentar resolver a falta de orçamento também têm sido ignoradas. Em 2016, o deputado estadual Edilson Silva destinou R$ 260 mil de emenda parlamentar para a emissora.

Até agora, o convênio entre a Secretaria de Planejamento e Gestão do Governo do Estado e a Secretaria de Planejamento do Recife não foi sequer firmado para recebimento da verba e os recursos correm, cada vez mais risco, de serem perdidos.

Permanecem distantes da rádio os 90 minutos diários de jornalismo (sendo 50% por cento de conteúdo local), as 3 horas semanais de programas voltados a propostas para o público infantil e infanto-juvenil (com ênfase de conteúdos locais conteúdos locais e regionais realizados, concebidos e desenvolvidos por produtores independentes do Estado), além da garantia de 20% de conteúdos radiofônicos criados e desenvolvidos por produtoras independentes do estado.

Tais diretrizes, além da constituição de um conselho com participação social, com caráter deliberativo  e fiscalizador, integram as 54 propostas apresentadas em audiência pública na Câmara Municipal do Recife, em 2014.

Passados três anos, mais uma audiência pública mostrou que as 54 propostas sequer foram homologadas pela atual administração, com a recondução ao cargo do prefeito Geraldo Julio.

“As propostas ainda não foram publicadas no Diário Oficial. Nem uma versão em papel timbrado chegou a ser apresentada. Assim, apesar toda legitimidade, elas permanecem sem valor de documento. Além disso, a rádio não tem existência jurídica e também não consta no organograma da Prefeitura. Essa falta de reconhecimento oficial lança sérias dúvidas a respeito do compromisso da gestão com o caráter público da emissora e deixa um campo aberto para arbitrariedades na Frei Caneca”, denuncia Renato Feitosa, integrante do Grupo de Trabalho (GT) que foi constituído pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR), ligada à Secretaria Municipal de Cultura, para a implementação dos 54 pontos.

As reuniões do GT foram suspensas pela gestão no final do ano passado.

Apesar de insistentes questionamentos de representantes do Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom) na audiência pública, o presidente da FCCR, Diego Rocha, não se comprometeu com um prazo para publicar no Diário Oficial as 54 propostas, nem para realização de concurso para contratação de profissionais, efetivação de um Conselho com participação social ou a própria estruturação do órgão dentro do organograma do governo municipal.

Efetivamente, a única evolução da audiência foi que o Grupo de Trabalho que vem discutindo a implementação da Frei Caneca finalmente será formalizado em reunião aberta e voltará a se reunir na semana que vem, 09 de maio, em um dos auditórios do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães.

A falta de recursos e as formas precárias de participação social colocam em risco a própria existência de uma radiodifusão pública em Pernambuco. A sociedade está de olho, mas é preciso que as diferentes esferas do governo encarem a questão com seriedade e evitem o fim desta fundamental ferramenta para a democracia.

*Eduardo Amorim e Cátia Oliveira são jornalistas e integrantes do Coletivo Intervozes. Cátia é mestra em Ciência Política pela UFPE e foi conselheira pela sociedade civil do Conselho de Administração da EPC, além de integrar o Grupo de Trabalho para implantação das propostas para a Rádio Frei Caneca. Eduardo é vice-presidente da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco.

Temer mandou, a imprensa obedeceu: cobertura não fala ou foca na greve

No dia em que milhões de trabalhadores pararam o país contra as reformas da previdência e trabalhista o jornalismo brasileiro não falou em greve geral

Por Bia Barbosa e Mônica Mourão*

Manda quem pode, obedece quem tem juízo, diz a sabedoria popular. Bastou a primeira greve no país desde que assumiu ilegitimamente o governo para se perceber que a relação entre a imprensa comercial e Michel Temer é de servidão ou sintonia.

O posicionamento oficial do governo, divulgado através de nota do Presidente e em entrevista do ministro da Justiça Osmar Serraglio, estava no mesmo tom da cobertura feita nesta sexta (28) pelos principais veículos do país. A ordem era não falar em “greve geral”, mas sim em “dia de protestos” e, no máximo, “paralisações”.

E isso foi o difundido para a população brasileira.

Segundo a BandNews, o que houve no Rio de Janeiro “não foi uma greve. […] Foi um dia de muitos problemas, de muito caos para as pessoas que seguiam para o trabalho, que queriam tocar a vida”. No Jornal Hoje, da Globo, foram ao ar 40 minutos de matérias sobre a greve sem que a palavra fosse usada. Falou-se em “paralisação de 24 horas chamada pelos sindicatos”. Na Record, nada da expressão “greve geral”. O tom da cobertura deu ênfase para as depredações e nenhuma explicação das motivações do movimento.

Nos bastidores do jornalismo, circulou a notícia de que essa foi uma orientação das chefias em diferentes veículos, de grupos de mídia diversos. Mas aí não houve coincidência, e sim uma orquestrada combinação entre governo e corporações midiáticas, que os jornalistas – também trabalhadores – tiveram que seguir.

Palavras são arma sem pólvora e, quando apontadas para o mesmo lado, têm um grande poder de destruição de certas ideias e construção de outras. Afinal, o que se espera de uma greve e qual a diferença entre ela e protestos de rua?

A greve é justamente um momento chave na consciência da classe trabalhadora, que se nega a vender o único bem que possui para a economia: sua força de trabalho. O que se espera de uma greve é, portanto, o esvaziamento do comércio, das escolas, repartições, escritórios. Justamente o contrário de um “dia de protestos”, cujo sucesso pode ser medido por ruas cheias, tomadas por manifestantes. Embora também houvesse atos de rua marcados para 28 de abril, reduzir a data a isso e “esquecer” de mencionar ou adotar o termo “greve geral” (ou mesmo “greve”) faz com que a população não tenha acesso ao básico para compreender o que aconteceu no dia de ontem – e o que está em curso no país.

Definir a sexta-feira como “dia de protestos”, como também fez a GloboNews durante todo o dia, não só distorceu o que de fato ocorria como legitimou as declarações da gestão Temer de que “tudo não passou de vias interditadas”. A parceria Planalto-grande mídia continua firme.

O foco nos transtornos e na violência, o silêncio dos manifestantes

“Protesto de centrais afeta transportes e tem violência” (O Globo), “Greve afeta transporte e comércio e termina com atos de vandalismo” (O Estado de S. Paulo), “Greve afeta transporte e termina em vandalismo” (Correio Braziliense), “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto” (Folha de S. Paulo).

As manchetes dos jornais deste sábado (29) não conseguiram mais omitir o termo vetado durante o dia de ontem. Mas mostram, uma vez mais, que a mídia pratica o velho “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”. Enquanto publica matérias sobre como a criatividade brasileira pode nos tirar da crise, segue com a mesma velha fórmula em coberturas de manifestações: foco nos transtornos gerados nos transportes para quem quis trabalhar (sem ouvir se essa escolha de fato existia) e na violência dos “vândalos”.

Ao longo da sexta-feira, o Intervozes acompanhou a cobertura jornalística dos principais noticiários do Brasil, na televisão (Globo, GloboNews, Record), na internet (Uol, R7, G1, Correio, Veja, Portão Estadão) e no rádio (BandNews, CBN e Agência Brasil). Com algumas sutilezas, em especial no Jornal Nacional, o tom foi o mesmo das manchetes de hoje. E a cobertura foi abundante, durante todo o dia, ao contrário do silêncio sobre as mobilizações registrado na véspera da greve. Mesmo sendo de conhecimento público que ela estava programada para aquele dia, a mídia preferiu não anunciá-la.

Na Globo, o Jornal Nacional foi o único a falar sobre o conteúdo das reformas trabalhista e da previdência. Em cerca de 4 minutos, ao final das reportagens sobre as manifestações, apresentou as principais propostas de cada uma. Dos 50 minutos totais de programa, toda a primeira parte do jornal, de 20 minutos, foi dedicada à greve geral. O termo acabou sendo usado pelos apresentadores, depois de ter sido evitado ao longo do dia. Foram entrevistadas 16 pessoas (entre elas Paulinho da Força Sindical, o presidente da CUT Wagner Freitas e o ministro da Justiça Osmar Serraglio) e lida a nota de Michel Temer. O JN tentou equilibrar as opiniões sobre a greve, ao contrário dos outros telejornais da emissora.

Pela manhã, no Bom Dia Brasil, a culpabilização dos sindicatos foi gritante. Segundo Alexandre Garcia, “o movimento sindical não quer deixar de receber o valor de um dia de trabalho do assalariado com a contribuição sindical, ainda tira mais um dia de trabalho do país que precisa produzir, voltar a crescer e gerar emprego”. A pauta reduziu-se a uma tentativa de se manter “privilégios” desse grupo.

No Jornal da Record, foi entrevistado um advogado que disse: “Nunca vi sindicato pagar multa, nunca vi sindicato fazer uma prestação de contas em relação aos seus sindicalizados do movimento e nunca vi o sindicato obedecer ordem judicial”. O mesmo tom seria depois repetido na fala do ministro da Justiça Osmar Serraglio, mostrando mais uma vez a orquestração da mídia com o governo.

No rádio, a Agência Brasil, agora com sua independência cerceada pelas mudanças na lei da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) feitas via Medida Provisória, veiculou notas do governo e defendeu amplamente as reformas trabalhista e da previdência. No CBN Brasil, só foram lidos os comentários de ouvintes contrários à greve. A propaganda da previdência privada do Bradesco, veiculada várias vezes durante o programa, explica bem os interesses em jogo.

Enquanto se ouviu muito sobre transtornos e vandalismo, o silenciamento dos principais atores da mobilização foi brutal. O Jornal da Record conseguiu não dar voz sequer a um manifestante ou sindicalista, enquanto deu espaço para Temer e seu ministro da Justiça. No Jornal Hoje, da Globo, sindicatos só foram citados ao mencionar os números de adesão à greve. Em 40 minutos de cobertura, foram reservados menos de 10 segundos para ouvir um manifestante e um sindicato. A primeira fala de uma central sindical na programação da GloboNews foi veiculada, pasmem, às 22h18 – e não durou um minuto.

A velha tática de mostrar cenas de violência para colocar a população contra as manifestações também se repetiu. Na GloboNews, quatro horas praticamente ininterruptas (das 16h30 às 20h30) mostrando a ação de black blocs. Como não se indignar com o movimento? Na internet, durante todo o dia, as fotografias que representavam a greve mostravam pneus queimados, policiais enfileirados e armados, confronto entre manifestantes e polícia. Houve muito destaque para as falas de João Doria, prefeito de São Paulo (que chamou os grevistas de “vagabundos”), do ministro da Justiça e, no final da noite, de Temer. O foco das coberturas em tempo real era a divulgação dos serviços em funcionamento e notícias sobre o trânsito. De novo, nada sobre as cerca de 100 categorias que pararam neste dia 28. E quase nada sobre as propostas de reforma em tramitação no Congresso.

Repórteres no chão: as sutilezas da manipulação midiática

Não se pode dizer que a mídia não aprendeu com as manifestações dos últimos anos, especialmente do emblemático 2013. Depois de a grande imprensa ter sido confrontada principalmente pela cobertura em tempo real da Mídia Ninja, a GloboNews resolveu incorporar seu modus operandi. Nesta sexta, jornalistas da emissora estiveram no chão, em meio às manifestações, e não cobrindo apenas a partir do helicóptero da empresa. Fizeram transmissões ao vivo com imagens de baixa qualidade técnica, ficaram sufocados com gás lacrimogêneo, correram ofegantes.

Assim, as denúncias de parcialidade (já que estariam “mostrando tudo” em “tempo real”) poderiam ser rebatidas. No Estudio I, uma das comentaristas falou claramente que não se podia criminalizar os movimentos. Mas até que ponto, vale perguntar, com o espaço para as divergências sendo tão residual, essa suposta “reaproximação” com os fatos não seria mais uma estratégia de marketing para ampliar o público (como já fez com a criação do aplicativo Na Rua) e para se sintonizar com uma audiência privilegiada (apenas 32% têm TV por assinatura no Brasil) que têm acesso a outras fontes de informação?

Novamente, a diferença na cobertura internacional

Se o discurso arquitetado politicamente na imprensa nacional garantiu que a maior parte da população brasileira passasse o dia desinformada sobre a greve que de fato ocorria no país, uma vez mais os leitores de outros países tiveram mais chances de compreender o que aconteceu neste 28 de abril.

O The New York Times não teve dúvidas: afirmou “Brasil imobilizado por greve geral contra medidas de austeridade”. Pode-se até divergir do discurso sobre a austeridade, mas o primeiro parágrafo do texto fazia, de cara, a relação das paralisações também com os escândalos de corrupção do governo Temer e dava voz a um cidadão que declarou: “Temer odeia os trabalhadores. Este é o pior governo que o Brasil já teve”. Mais adiante, a reportagem explicava as medidas propostas pelas reformas previdenciária e trabalhista, apresentava os baixíssimos índices de popularidade de Temer (apenas 4%) – que não foram mencionados por nenhuma emissora de TV em sua cobertura da greve – e falava das denúncias de propina contra o próprio presidente.

“Seus principais assessores denunciaram a greve, com o ministro da Justiça, Osmar Serraglio, fazendo pouco caso dela e taxando a mobilização de “nonsense” e de “baderna generalizada” em uma entrevista. Mas com os membros do Congresso tentando preservar os benefícios de sua generosa aposentadoria, a elite política parece mesmo ignorar o humor das ruas”, criticou o NYT.

O francês Le Monde chamou a greve de “histórica”, relatando os diversos setores e categorias que cruzaram os braços. O foco, ao contrário do dado pela imprensa brasileira, ficou longe dos transtornos da greve nos transportes. Falaram de bancos, correios, escolas públicas e privadas, comércio e do setor de saúde, divulgando a estimativa, dos sindicatos, de 40 milhões de trabalhadores parados. E como direito trabalhista é algo que a França costuma valorizar, o Le Monde também explicou as propostas inclusas nas reformas em debate no Congresso – algo que os veículos nacionais não acharam importante fazer nesta sexta. Tampouco as definiram como “modernização na legislação”, como orienta a cartilha do Planalto.

A BBC destacou que esta foi a “primeira greve geral em duas décadas” no Brasil. E achou jornalisticamente relevante – porque de fato é – informar que diversas denominações religiosas tenham apoiado a paralisação. Ouviu o porta-voz da igreja anglicana, que explicou a posição de encorajar seus seguidores a participarem do movimento “porque entende a situação política” atual e as condições de vida do povo.

Os exemplos mostram que, se quisesse fazer bom jornalismo nesta cobertura, seria muito fácil. A imprensa alternativa fez, com destaque para a intensa cobertura da equipe do jornal popular Brasil de Fato. Mas os tradicionais veículos brasileiros mais uma vez passaram bem longe disso. Um dia, a fatura chegará.

*Bia Barbosa e Mônica Mourão são jornalistas e integram o Conselho Diretor do Intervozes. Colaboraram: Alex Pegna Herzog, Eduardo Amorim, Olívia Bandeira, Ramênia Vieria e Raquel Dantas, todos integrantes do Intervozes. 

Na era das privatizações, um satélite para as operadoras

Como um satélite de 2,7 bilhões de reais para banda larga se tornou fornecimento de infraestrutura para as mesmas grandes empresas de telecomunicações lucrarem

Por Marina Pita*

O entreguismo que tomou conta da política nacional de telecomunicações após o impeachment de Dilma Rousseff não tem limites. Chega até o espaço.

A nova ação de Michel Temer nesta linha é privatizar o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação Estratégicas (SGDC).

O projeto, que recebeu investimento de 2,7 bilhões bilhões de reais e cujo objetivo era levar banda larga às escolas, postos de saúde, hospitais, postos de fronteira etc, agora será leiloado para grandes operadoras, que não têm interesse em levar conexão a locais de baixa densidade demográfica ou baixa renda.

Mas a sociedade civil, organizada por meio da Coalizão Direitos na Rede e em diálogo com parlamentares, está decidida a paralisar o processo. Começa uma nova batalha.

A perspectiva de mudar o cenário de desigualdade – atualmente 50% dos domicílios do país estão desconectados – foi desmantelada.

No projeto original do SGDC, 70% da capacidade satelital estaria destinada à implementação de políticas públicas.

Em entrevista ao Portal TeleSíntese, o ex-presidente da empresa de capital misto e responsável pela estruturação do projeto do SGDC, Jorge Bittar, estimou em mais de 100 mil o número de escolas, das quais 50 mil rurais, que não têm acesso à internet.

“As escolas de periferia também precisam de conectividade. Onde não há links de boa qualidade, o satélite cobriria essa necessidade. Não dá para colocar link compartilhado em escola de 500 alunos. Tem que ser colocado 50MB, 100MB 150MB full. Nós tínhamos um projeto de levar conteúdos educacionais às escolas brasileiras. Eu posso afirmar, se eu fosse conectar todas as escolas rurais e as escolas das periferias brasileiras, a capacidade total do SGDC não seria suficiente”, frisou Bittar.

Mas, após as mudanças implementadas pelo novo presidente da empresa de capital misto, Jarbas Valente, 80% da capacidade satelital destinada para uso civil será privatizada em três lotes.

Para piorar, o caráter público do projeto foi totalmente descaracterizado, uma vez que o edital de venda não exige das empresas nenhuma meta de cobertura, universalização ou preço mínimo do serviço.

Não foi sequer adotada a tradicional mescla entre áreas nobres com áreas pouco rentáveis, de forma a obrigar os compradores de áreas rentáveis a levar conexão a outras, pouco atraentes economicamente, em uma tentativa de equilíbrio financeiro da proposta.

O edital exige apenas o vago “cumprir as metas do PNBL”. O Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), vale lembrar, já foi considerado um fracasso justamente porque as operadoras não cumpriram com sua parte no acordo de oferecer velocidade mínima por um preço mínimo – esconderam os pacotes, fizeram venda casada e mais todo tipo de prática condenável pelo direito do consumidor.

Repetir a dose, dessa vez sem nenhum detalhamento, é a opção de quem não faz política a sério. É um filme já visto quando o assunto é política pública de acesso à internet.

A total liberdade de atuação das empresas vencedoras do leilão é algo extremamente preocupante.

“Isso significa que eles poderão vender no atacado, no varejo, ou mesmo se concentrar apenas no setor corporativo, o mais rentável do setor. Assim, mais uma vez o caráter público e a missão social do investimento saem prejudicadas”, avalia a deputada Margarida Salomão (PT), uma das parlamentares que buscam frear os planos do novo governo.

Pelo modelo de negócio do satélite da gestão anterior, a capacidade dele seria pulverizada pelos pequenos provedores de internet que já atendem as áreas ignoradas pelas grandes corporações.

Em março, o número de conexões de banda larga fixa voltou a crescer justamente pela atuação deste grupo.

“Com avanço de 5,55% e 126,8 mil adições líquidas, os Internet Service Providers (ISPs) totalizaram 2,413 milhões de acessos fixos em março, mantendo-se como o quarto maior grupo do mercado. Nos 12 meses, o avanço foi de 18,29%”, aponta análise publicada no portal Teletime.

Concorrência e preço

O fato de a Telebras ter optado por dividir a capacidade satelital (da parcela civil) em apenas três lotes comerciais é algo importante de se analisar. Com a Oi quebrada, sobram justamente três grupos – América Movil, Vivo e TIM – com capital para adquirir um deles. Isso pode significar baixa concorrência e ofertas de baixo valor na licitação.

Também chama a atenção o fato de a Telebras fixar preço mínimo para os três lotes comerciais, que o edital chama “preço de reserva”, mas mantê-lo sob sigilo.

A sociedade não poderá apurar quanto houve de ágio no processo. Além disso, pelo modelo de edital proposto pela Telebras, é possível uma empresa comprar até dois lotes, o que permite uma concentração maior do mercado.

Reação da sociedade civil

No dia 19 de abril, a deputada federal Margarida Salomão (PT) entrou com representação no Ministério Público Federal (MPF) e no Tribunal de Contas da União (TCU) contra a privatização do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC).

Assinam a representação entidades representativas organizadas na Coalizão Direitos na Rede, entre elas, Proteste, Barão de Itararé, Internet sem Fronteiras – Brasil, Intervozes, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Instituto Beta para Internet e Democracia (Ibidem), Coletivo Digital, Actantes e Instituto Nupef.

O líder do PT na Câmara dos Deputados, Carlos Zarattini, os parlamentares Lindbergh Farias (PT), Fátima Bezerra (PT), Roberto Requião (PMDB), Luiza Erundina (Psol), Luciana Barbosa (PCdoB), André Figueiredo (PDT) e Alessandro Molon (Rede) também assinam o texto.

É mais uma batalha que se inicia entre o governo, que atende apenas aos interesses das companhias, e a sociedade civil, que segue na disputa das políticas públicas de telecomunicações para universalizar o acesso à web e garantir demais direitos vinculados, como a liberdade de expressão e o acesso à informação. Para que todos os brasileiros e brasileiras possam, por exemplo, ler este artigo.

*Marina Pita é jornalista e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes