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Para derrubar Temer, Globo vai além do jornalismo

Alto executivo do Grupo oferece almoço a parlamentares em semana definidora para futuro de Temer, mas cobertura segue favorável à agenda das reformas

Por Daniel Fonsêca*

Desde o furo de O Globo sobre o envolvimento de Michel Temer em crimes como obstrução à Justiça e corrupção passiva, em maio passado, todo o jornalismo do Grupo Globo está focado em fortalecer e legitimar as denúncias contra o presidente. Nesta semana, a Globo decidiu, entretanto, incidir de forma mais direta na condução da crise que corrói a gestão do PMDB há quase dois meses.

Em pleno domingo 9 de Brasília, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), logo após conversar com Michel Temer, foi a uma casa no Lago Sul, em Brasília, para participar de um almoço. Era a residência de Paulo Tonet Camargo, vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo. A informação, veiculada pela Folha de S.Paulo, é a de que Maia estava acompanhado de outros cinco políticos, todos de partidos da base aliada de Temer, inclusive o ministro de Minas e Energia, Fernando Bezerra Coelho.

Os carros das autoridades, todos sem identificação oficial, só deixaram o local mais de cinco horas depois, já à noite. De acordo com o deputado Heráclito Fortes (PSB-PI), que passou de combatente a aliado dos governos petistas para depois apoiar a gestão de Michel Temer, tratou-se de um encontro agendado com mais de 30 dias de antecedência, sem nenhuma relação com a conjuntura atual. Acredite quem quiser.

Dias antes, cresciam as especulações de que Rodrigo Maia poderia ter apoio suficiente para assumir a Presidência da República no caso de afastamento de Temer. No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).

Não por acaso, o relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.

Mas o papel de Zveiter é pequeno perto do desempenhado pelo anfitrião do almoço de comensais políticos do último domingo. Entre os anos 1990 e o começo dos 2000, um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de “Senador Evandro”. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul.

Além de lobista oficial do grupo, Tonet acumula desde agosto a presidência da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Tornou-se figura recorrente na proa das principais negociações em torno de decisões políticas e econômicas envolvendo o Executivo, o Congresso e mesmo o STF – onde a Abert tem conseguido vitórias importantes para alterar leis e normas regulatórias às quais se opõe, como a Classificação Indicativa.

Colega de trabalho de Paulo Tonet, após onze anos em diferentes cargos do Executivo Federal, Marcelo Bechara foi contratado como “Diretor de Regulação” do Grupo Globo, para tratar exclusivamente de questões jurídicas e legislativas. Secretário-executivo do Ministério das Comunicações de 2005 a 2010, nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva, quando o órgão era comandado por Hélio Costa (PMDB-MG), e conselheiro da Anatel de 2011 a 2015, nas duas gestões de Dilma Rousseff, Bechara hoje transita no Congresso e na Esplanada com facilidade para defender os interesses da empresa.

Mas a reunião desta semana revela uma entrada ostensiva da família Marinho na operação política como há tempos não se via. Mesmo antes e durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, os irmãos só chegaram a se posicionar em agosto de 2015 e, ainda assim, limitaram-se a dialogar com empresários no sentido de ponderar a impertinência da insistência em derrubar a presidenta. Para eles, isso geraria mais instabilidade política e insegurança jurídica, o que não era bom para os negócios num momento de grave crise econômica.

Meses antes, em junho de 2015, em meio a diversas batalhas com uma Câmara controlada por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a ondas negativas da imprensa corporativa dirigidas contra o governo e a manifestações massivas das classes médias a favor do impedimento, Dilma Rousseff chegou a ir ao Rio de Janeiro prestigiar o encontro da não tão relevante Academia Internacional de Televisão e, ainda, homenagear os 50 anos da TV Globo, completados em abril daquele ano.

Agora, a “editorialização” excessiva do jornalismo de todo o Grupo Globo contra Michel Temer comprova, obviamente, que os irmãos Marinho querem a cabeça do presidente da República – e logo.

Fora Temer, mas não a sua agenda

No mercado de mídia, a Globo se antecipou ao dar as informações sobre as delações de Joesley e Wesley Batista, aparentemente sem poupar nomes do governo ou do próprio Aécio Neves (PSDB-MG), que costumava receber tratamento positivo dos Marinho.

À primeira vista, a intenção era não perder o controle da situação e manter a relevância do grupo numa possível nova transição de governo. Por fora do quadro político estrito, os mentores do Grupo Globo não costumam abrir mão de arbitrar e moderar os rumos da política e da economia nacionais, tarefa que sempre outorgaram a si mesmos, como se fosse uma missão do grupo desde a origem. Orbitam e tentam influenciar figuras do meio político, mas também do Judiciário, o poder mais impermeável e hermético, portanto bem menos “republicano”.

Os questionamentos, então, dizem respeito às razões que levaram o Grupo Globo a, ao embarcar no ataque contra Temer, pôr em risco a agenda programática das reformas, apoiada pelos donos do PIB nacional de forma quase unânime.

Afinal, o apoio editorial e as articulações políticas em torno da derrubada de Temer estão longe de significar uma discordância do Grupo Globo em relação às pautas encabeçadas por ele. Vale lembrar que frações ainda consideráveis do “mercado” seguem bem reticentes em abandonar totalmente a sustentação do governo.

Para ajudar a empurrar Temer e tentar salvar sua agenda, os telejornais globais têm feito uma ginástica retórica em separar a “necessária” aprovação das reformas da figura do presidente ilegítimo. Nessa operação, têm, como é de praxe, omitido informações relevantes, invisibilizado e condenado os argumentos e protestos contrários às reformas.

Na terça-feira 11, a matéria do Jornal Nacional sobre a aprovação da reforma trabalhista no Senado teve como foco a tentativa das senadoras de oposição de obstruir a votação: “O Senado registrou hoje uma cena que jamais tinha sido vista na história da Casa. Um grupo de senadoras da oposição decidiu simplesmente ocupar a mesa do Plenário para impedir a votação da reforma trabalhista. E lá ficaram interditando os trabalhos por mais de seis horas”, anunciou Renata Vasconcelos.

Segundo a matéria, “a atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos partidos”. “Protesto não se faz dessa forma”, ensinou o senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). Mais dois senadores foram ouvidos, todos contrários à ocupação da Mesa, sendo um deles José Medeiros (PSD-MT), que entrou com pedido contra elas, já aceito, no Conselho de Ética, por quebra de decoro parlamentar.

A informação veiculada sobre as mudanças aprovadas na CLT foi a seguinte: “A reforma trabalhista dá força de lei a acordos celebrados entre trabalhadores e patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º salário; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário do trabalhador; permite que o intervalo de almoço possa ser reduzido para 30 minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada intermitente: o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de trabalhadores de bares ou eventos”.

A construção retórica é clara. A atitude das senadoras teria sido antidemocrática e contra uma reforma que não representaria nenhuma perda de direitos. O que o Jornal Nacional se esqueceu de mencionar foi que a união das senadoras de oposição contra a votação da reforma teve um motivo especial: o texto da nova lei autoriza que grávidas e lactantes trabalhem em ambientes insalubres. O item misteriosamente sumiu da lista de alterações que o JN considerou relevante enumerar.

Nenhuma palavra foi dada às senadoras ou a qualquer outra fonte que as apoiasse. O fato de o presidente da Casa, Eunício Oliveira (PMDB-CE), ter mandado cortar a luz do Senado foi mencionado com naturalidade, ignorando seu caráter autoritário. As regras para a entrada no Senado naquele dia, que barraram a presença de centenas de trabalhadores e sindicalistas na Casa, sequer foram citadas.

Pouco ou nada se diz na Globo também sobre os protestos que, há meses, em diferentes cidades do país, rechaçam a reforma trabalhista. Como já havíamos mostrado neste blog, a cobertura dos atos e greves contrários às reformas deixa evidente o apoio da Grupo Globo às retiradas de direitos trabalhistas e previdenciários.

Hipóteses sobre as intenções do Grupo Globo

Diante do quadro de crise aguda e endêmica na política institucional, o Grupo Globo tenta agora catalisar a insatisfação geral da população com o governo e, em especial, a indignação das classes médias e altas com a corrupção. Quer capitalizar-se como a intérprete e a vocalizadora hegemônica desse pensamento diluído, apresentado como a síntese possivelmente unificadora do País. A um só tempo, portanto, a Globo opera em diversas instâncias.

No plano político, busca manter-se como âncora e bússola para gestores, parlamentares e outros agentes públicos, interferindo diretamente na orientação das decisões que vão definir o cenário a curto e médio prazos, inclusive no Judiciário, operando um dos braços da sua capacidade de direção cultural, complementada pela orientação em questões morais e identitárias.

No nível econômico, sustenta uma campanha proativa, que obviamente alcança e integra o jornalismo, em apoio às agendas liberalizantes, prescrevendo reformas regressivas, privatizações e ajuste fiscal como únicas soluções eficazes para a crise por que passa o Brasil desde 2012.

Por fim – como causa e consequência dos outros dos níveis –, procura se (re)posicionar como o único agente da indústria cultural com capacidade produtiva (técnica e estética), lastro socioeconômico, influência política e estabilidade financeira para, ao menos aparentemente, defender linhas de atuação próprias e autônomas (a governos e empresas corruptoras) que funcionem como balizadoras para a unificação nacional.

A chave de análise sobre a postura da Globo, nos últimos e provavelmente nos próximos anos, reside na visão/missão que o grupo tem consolidado: a partir da condição de qualificada produtora de conteúdo nacional, mostrar-se como o único agente de mercado que reúne as condições para interpretar, organizar e expressar a cultura brasileira, aqui entendida no sentido mais ampliado possível. E isso também é um perigo para a nossa democracia.

*Daniel Fonsêca é jornalista e integrante do Intervozes. Colaborou Mônica Mourão, jornalista, coordenadora executiva do Intervozes

Uma doença, duas notícias: a febre amarela nos governos Lula e Temer

Em 2008, um surto foi transformado em epidemia grave pela imprensa. Nesse ano, com 17 vezes mais casos, a abordagem da mídia foi sóbria e discreta

Por Claudia Malinverni*

Nos últimos nove anos, dois ciclos de intensificação da febre amarela silvestre (na gramática epidemiológica, epizootia), fenômeno recorrente no cenário brasileiro, chamaram a atenção do jornalismo de massa. O primeiro, no verão de 2008, foi alvo de uma intensa e controversa cobertura, que mobilizou a imprensa nacional e acabou por configurar a doença como uma epidemia midiática.

O segundo, no início deste ano, a despeito de ter provocado um surto entre seres humanos de dimensões inéditas e com potencial para a espetacularização, recebeu um tratamento jornalístico oposto, centrado na objetividade da informação.

Entender as diferenças entre as duas narrativas é o foco deste artigo, que toma como exemplo o jornal Folha de S.Paulo. Segundo o Ministério da Saúde, o número de casos confirmados em 2017 é nove vezes maior do que o registrado em 2000 – que, com 85 casos, era, até então, o maior da série histórica, iniciada em 1980 –, e quase 17 vezes o contabilizado em 2008, quando foram confirmados apenas 46 casos.

Essa comparação numérica dos dois momentos de disseminação da doença suscita um primeiro questionamento: por que o mais “brando”, de 2008, se transformou jornalisticamente em uma epidemia de febre amarela e o segundo, de 2017, mereceu da imprensa uma abordagem cautelosa, assentada no que poderíamos nomear como bom jornalismo?

A epidemia midiática teve como pano de fundo o início do segundo mandato presidencial do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que, em março de 2007, havia nomeado o sanitarista José Gomes Temporão ministro da Saúde. No campo da saúde pública, parlamentares governistas e da oposição travavam uma acirrada disputa pela renovação da CPMF.

Pouco antes de detectada a febre amarela silvestre pelo sistema nacional de monitoramento, em meados de dezembro de 2007, o Senado Federal havia rejeitado a prorrogação da contribuição. Importante complementação ao orçamento do SUS, a defesa da CPMF foi conduzida pessoalmente por Temporão, que rejeitava o viés tecnocrático das ações ministeriais.

Já em 2017, a cobertura se desenrolou sob o governo do peemedebista Michel Temer. Controverso desde o início, o processo parlamentar que desaguou no impedimento de Dilma Rousseff teve amplo e explícito apoio das principais corporações de mídia do País.

Por outro lado, o ministro da Saúde do Governo Temer é Ricardo Barros, eleito deputado federal no Paraná pelo Partido Progressista tendo como maior doador individual de sua campanha, em 2014, Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de planos de saúde. Engenheiro e empresário, o atual ministro defende o fim da universalidade do SUS e a criação de planos populares de saúde, que representam uma ameaça ao sistema público de saúde.

Em 2008, a febre amarela silvestre – então concentrada na região Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal – foi classificada pelo Ministério da Saúde e boa parte de técnicos e pesquisadores como dentro da normalidade epidemiológica, logo, evoluindo segundo as expectativas técnico-científicas. A imprensa de massa discordou.

A divulgação, com destaque, pelo jornal Correio Braziliense, do primeiro caso suspeito registrado em Brasília (um funcionário do alto escalão do Ministério da Cultura) foi a senha para o agendamento jornalístico da febre amarela em escala nacional por diferentes meios de comunicação. A partir daí, entre o final de dezembro de 2007 e o início de fevereiro de 2008, o aparato midiático generalista manteve uma cobertura intensa do evento, que foi marcada pelo excesso de exposição do tema e pela seleção de repertórios de risco que salientavam a tese de urbanização da doença.

No primeiro recorte temporal, de 21/12/2007 a 29/02/2008, que compreende a publicação da primeira e da última matéria circunscrita ao fenômeno da febre amarela midiática, foram localizadas 120 matérias, das quais 118 foram analisadas (veiculadas em 47 edições).

Utilizando exatamente o mesmo recorte (21/12/2016 a 28/02/2017), na cobertura deste ano foram localizados 75 textos, tendo sido analisados 71, publicados em 21 edições. Ou seja, embora do ponto de vista epidemiológico o evento de 2017 tenha sido consistentemente mais intenso, o volume de matérias publicadas pelo jornal foi cerca de 40% menor do que em 2008.

Febre amarela
Em 2008, o título destaca que morte pode ser decorrente de febre amarela. Cobertura alarmista fez o Brasil passar de exportador a importador de vacinas antiamarílicas. Neste ano, jornal pede cautelaCréditos: reprodução Folha de S. Paulo

Outro aspecto relevante desta análise é da ordem dos sentidos. Há nove anos, a construção da narrativa envolveu três grandes estratégias discursivas epidêmicas: “a doença fora de controle”, com foco no “crescimento progressivo” do número de casos suspeitos; “o inimigo letal”, centrada nas taxas de letalidade e na sintomatologia/tratamento da doença; e a tese da urbanização, dada pela “transmissão generalizada”, sentido produzido a partir da omissão da área de transmissão, que no caso da febre amarela silvestre é rural, dificultando a demarcação territorial do evento para o público leitor (na edição analisada em 2008, concentrado na capital paulista e na Grande São Paulo, portanto, áreas urbanas). Sobre essa última estratégia, é importante ressaltar que a omissão do termo “silvestre” tornou discursivamente as duas formas (silvestre e urbana) um mesmo e único evento.

Em 2017, ao contrário, a demarcação linguística do ciclo em curso foi constante. Desde a primeira matéria (“Suspeitas de febre amarela crescem em MG”, 12/01/2017), sobretudo quando a notícia remetia ao número de casos, o local de sua ocorrência foi constantemente demarcado.

Ainda no âmbito da estratégia “transmissão generalizada”, a palavra-chave da cobertura de 2008 foi “epidemia”, que se caracteriza pela ocorrência de surtos de uma doença de modo simultâneo em diferentes regiões, quando, na verdade, tratava-se de um surto, aumento repentino do número de casos de uma doença em uma região específica.

Na edição tomada como ápice do enquadramento epidêmico de 2008, a de 14 de janeiro, a febre amarela foi manchete de capa (“Ministro vai à TV e nega epidemia de febre amarela”) e destaque principal da editoria Cotidiano, com seis textos. No dia seguinte, 15 de janeiro, a Folha publicou seu primeiro editorial acerca do evento, indicando a relevância do tema para os donos do jornal. Nesse pequeno recorte do corpus de 2008 a palavra “epidemia” (e duas variáveis, “epidemias” e “não-epidemia”) aparecem dez vezes, enquanto “surto”, que era o que de fato estava em curso, apenas uma.

Em contrapartida, na totalidade do corpus de 2017 (71 matérias) a palavra “epidemia” aparece apenas quatro vezes, duas delas no editorial “Febre de vacinas” (27/01). Exatamente para afastar a tese de evolução epidêmica da doença, o texto é peremptório: “Não se pode falar de epidemia no caso da febre amarela”. Em todos os textos em que havia caracterização do evento, o jornal empregou o termo “surto”.

Em 2008, os eixos narrativos “crescimento progressivo” e “inimigo letal” eram frequentemente articulados, inclusive nas 15 chamadas de capa sobre a febre amarela, 12 das quais publicadas quase consecutivamente, em que se destacam repertórios que explicitavam sentidos de descontrole e letalidade da febre amarela (“primeira morte”; “2ª morte”; “5ª morte”; “7 mortes”; “8 o total de mortes”; “9ª morte”).

Em 2017, foram oito capas, mas em apenas duas o número de óbitos foi destacado: “Ministério admite, após 8 mortes, surto de febre amarela” (19/01) e “Cidades paulistas têm três mortes por febre amarela” (24/01).
“Vacine-se”: orientação da imprensa gera esgotamento de estoque antiamarílico no país

“Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem… Vacine-se logo! A febre amarela é uma doença infecciosa causada por vírus e pode ser fatal. Hoje mesmo (terça, 08/01/2008), morreu um homem de 38 anos em Brasília, plena capital da República, com febre alta, dores musculares, náuseas e vômitos. Possivelmente, foi vítima da doença. O alerta nem é mais amarelo, já é vermelho. E a vacina é altamente eficaz. Tomou, está livre da doença”.

O trecho acima, do artigo “Alerta amarelo!”, é um dos exemplos mais emblemáticos do discurso a favor da vacinação. Publicado por Eliane Cantanhêde, apresentada então como uma das jornalistas de política mais influentes do jornal, na coluna Pensata, exclusiva da Folha Online, ele resume bem a autoridade da qual a imprensa se imbuiu – e que gerou uma crise no estoque de vacinas no país.

Em 2008, uma narrativa em forma de fábula alçou a vacina à condição de “poção mágica”, apresentada como um dispositivo capaz de proteger a população do “inimigo letal” de modo “infalível”. Nessa perspectiva, a imprensa passou a atuar como porta-voz do uso irrestrito da vacina, de modo geral sem destacar seus potenciais efeitos adversos. Então, a demanda explodiu, inclusive naquelas regiões que estavam fora das áreas de ocorrência da doença, clássicas e/ou de transmissão viral.

Para se ter uma ideia do impacto desse sentido, entre o final de dezembro de 2007 (primeiras notícias) e 22 de fevereiro de 2008 (esgotamento da pauta) foram distribuídas em todo País mais de 13 milhões de doses da vacina. Desse total, 7,6 milhões de doses foram aplicadas em pouco menos de dois meses, 6,8 milhões só em janeiro.

Um dos três fabricantes mundiais pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no período, o Brasil não só suspendeu a exportação do antiamarílico, como também apresentou um pedido de empréstimo de quatro milhões de doses do estoque de emergência global.

São Paulo, que até 2008 tinha mais da metade do seu território livre da circulação do vírus, foi vice-campeão de doses aplicadas (mais de 2,4 milhões), atrás apenas de Goiás (quase 2,8 milhões), endêmico desde o início da década de 2000. Só na capital paulista, foram aplicadas 428.337 doses, mais de cinco vezes do que em 2007 (79.666). Os casos de efeitos adversos aumentaram exponencialmente, chegando a mais do que o dobro daqueles transmitidos pelo mosquito. Então, veio o desfecho mais grave: quatro mortes por febre amarela vacinal, todas no estado de São Paulo.

Em contraposição, na cobertura de 2017, o enquadramento da vacina pode ser classificado como cauteloso. Já na segunda matéria, “Vacina contra a febre amarela requer cautela”, destacada em chamada de capa (13/01), depois de demonstrar os riscos da vacinação indiscriminada, o texto alerta: “Por isso, é preciso seguir à risca as orientações das autoridades sanitárias sobre quais regiões e grupos populacionais devem ser vacinados”.

No editorial já citado (“Febre de vacinas”, 27/01), a preocupação é com o aumento da demanda vacinal em regiões sem recomendação: “Compete ao poder público distribuir doses de maneira eficiente aos locais que de fato necessitam delas. Precisa ainda esmerar-se mais na comunicação sobre quem deve vacinar-se e onde, para prevenir uma epidemia de pânico e a desorganização geral do sistema”.

Antes, em outro editorial (“Alerta amarelo”, 18/01), o jornal já apontara o risco da vacinação sem recomendação: “Em meio a uma corrida indiscriminada por vacinas em 2007 e 2008, houve oito casos de reação adversa grave à vacina, com seis mortes”. Além dos dois editoriais, diferentes matérias e edições trouxeram informações sobre a população-alvo da vacina e os riscos de efeitos adversos.

Este ano, embora tenha pairado um eventual desabastecimento – chegando mesmo a ser detectada a falta pontual da vacina em algumas regiões do País, sobretudo naquelas em que o surto já tinha sido confirmado (Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo) ou nas quais surgiram casos inesperados, como no Rio de Janeiro, em março –, não houve uma “corrida pela vacina”, como a registrada em 2008. Ao longo de 2017, o aumento da demanda vacinal esteve atrelado às recomendações do ministério e das secretarias estaduais e municipais de Saúde, a reboque das ações de contenção do vírus, e não do noticiário.

Não tivesse se desenrolado em contexto político-institucional tão diverso, talvez fosse possível deduzir que a não epidemia midiática de 2017 foi resultado de um aprendizado advindo das consequências da epidemia midiática de 2008, capaz de mudar as práticas do jornalismo de massa na abordagem sobre o tema.

Porém, não sendo esse o quadro geral, restará sempre uma dúvida: se fosse a petista Dilma Rousseff e não o peemedebista Michel Temer a presidir o país, teríamos em 2017 uma febre amarela midiática?
*Claudia Malinverni é jornalista e doutora pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). O artigo completo sobre o tema foi publicado no n° 2 da revista Reciis (Icict/Fiocruz) deste ano

Anatel ignora lei e atropela Conselho para aprovar plano de metas

Ao desprezar regra que prevê que Conselho Consultivo deve apreciar proposta de revisão de metas de universalização, agência exclui participação social

Por Flávia Lefèvre*

Visando as privatizações que ocorreram em julho de 1998, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997, estabeleceu que a primeira fase dos contratos de concessão do serviço de telefonia fixa comutada (STFC) teria como termo final dezembro de 2005 e que poderiam ser renovados por, no máximo, mais 20 anos, sem possibilidade de prorrogação.

A LGT também condicionou a possibilidade de prorrogação dos contratos de concessão ao cumprimento das obrigações que foram estabelecidas pelo primeiro Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU – Decreto 2.592 de 15 de maio de 1998), que tinha o foco na implantação de redes de suporte ao STFC e de telefones de uso público, bem como o cumprimento de obrigações de continuidade na prestação deste serviço.

Chegado dezembro de 2005, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) certificou o cumprimento das metas estabelecidas pela LGT e os novos contratos de concessão foram assinados pelo prazo de mais 20 anos, com início a partir de janeiro de 2006 e termo final em dezembro de 2025.

Desses contratos, considerando a intensa dinâmica do setor,  constou a previsão de revisão das concessões a cada 5 anos e, nesse contexto, as obrigações de universalização foram sendo redefinidas por meio de mais três decretos: em 2003, 2008 e o último em 2011.

Para a definição dos PGMUs, a LGT estabeleceu que a Anatel deve elaborar uma proposta que, antes de ser encaminhada ao Poder Executivo para edição do respectivo decreto, deve obrigatoriamente passar pela apreciação do Conselho Consultivo da agência. Isto porque o Conselho Consultivo é o órgão de participação institucionalizada da sociedade civil nas atividades e nas decisões da Agência, cujos 12 participantes representam o governo, os consumidores, organizações da sociedade civil e as empresas, sendo indicados pela sociedade civil ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e nomeados por decreto do Presidente da República.

Ocorre que, justificando as críticas das quais a Anatel vem sendo alvo, há anos, algumas inclusive feitas por diversos acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), apontando atuação que privilegia os interesses dos agentes econômicos regulados em detrimento dos interesses dos consumidores e falta de transparência, a agência e o Poder Executivo têm deixado há anos de agir no sentido de nomear todos os membros para o Conselho Consultivo, que muitas vezes fica sem quórum para tomar decisões.

É o que está acontecendo neste exato momento. O Conselho Consultivo não tem membros nomeados nem para garantir o quórum mínimo, em razão do que o processo de revisão quinquenal dos contratos de concessão, que já deveria ter sido finalizado em dezembro de 2015, está pendente, pois depende da apreciação do PGMU pelo Conselho Consultivo para que possa ser enviado ao MCTIC.

O histórico de não nomeações de integrantes para o Conselho Consultivo revela fato grave: todos os governos, sem distinção, desde a instalação da agência em 1997, foram relapsos e descomprometidos com a garantia de participação da sociedade nas decisões de grande importância ocorridas no âmbito da Anatel.

E é nesse contexto a mais recente ilegalidade perpetrada pela agência. No último dia 30 de maio, o atual presidente da Anatel anunciou que não iria mais esperar a aprovação do PLC 79/2016, que propõe alterações radicais na LGT, para assinar os contratos de concessão e que também iria ignorar a obrigatoriedade de o PGMU passar pelo Conselho Consultivo, como determina a lei, por impossibilidade de realização das reuniões e, sendo assim, já encaminhou a proposta ao MCTIC.

É lamentável que o presidente da Anatel tenha omitido no ofício, por meio do qual encaminhou a proposta de PGMU ao MCTIC, que a última reunião, marcada em janeiro de 2017 para a análise pelo Conselho Consultivo, foi cancelada por ordem dele, sob a alegação de que a agência não possuía recursos para arcar com as passagens aéreas dos conselheiros. Afirmo isso porque fui membro do conselho até fevereiro deste ano.

O descaso da Anatel e do MCTIC quanto a respeitar os instrumentos legais instituídos com vistas a revestir de algum grau de democracia a definição de instrumentos regulatórios voltados para o cumprimento de políticas públicas de telecomunicações é inadmissível. Primeiro porque houve um desgaste enorme de recursos financeiros e humanos da agência em processos de elaboração de propostas tanto de contrato de concessão quanto de plano geral de universalização e também de revisão do Plano Geral de Outorgas, ignorando a LGT e tomando por base um projeto de lei altamente  controverso. Tanto é assim que o PLC 79/2016 está judicializado no Supremo Tribunal Federal (STF) e, por força disto, com o trâmite suspenso no Senado Federal.

Ou seja, a Anatel gastou tempo e dinheiro público num processo realizado sem nenhum respaldo legal, atrasando a revisão dos contratos de concessão ou mesmo uma outra decisão no sentido de antecipar o vencimento desses contratos e estabelecer um novo caminho com base nas diretrizes fixadas na LGT que está em vigor. Algo que poderia contribuir para a definição de novas políticas públicas que induzissem a novos investimentos em redes de fibra ótica para dar suporte ao acesso a Internet em banda larga, atendendo às demandas da sociedade, abrindo a oportunidade de utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), estendendo-se o regime público para a infraestrutura que dá suporte à banda larga.

É o que as entidades envolvidas há anos na Campanha Banda Larga é um Direito Seu! vêm propondo com respaldo no art. 65, da LGT.

A edição de decreto do novo PGMU sem discussão  com a sociedade civil, especialmente neste momento, é extremamente preocupante, posto que a proposta elaborada pela Anatel reduz radicalmente obrigações de universalização e deixa de utilizar saldo bilionário em favor dos consumidores. Saldo este decorrente de processo de troca de metas ocorrido em 2008 e que deveriam ser utilizados em favor da implantação pelo menos de “backhaul – infraestrutura de rede de suporte ao STFC para conexão em banda larga, interligando as redes de acesso ao backbone da operadora”, conforme definição do Decreto 6.424/2008.

Está claro, então, que a Anatel e o MCTIC não têm interesse de discutir políticas públicas com a sociedade civil. Se tivessem, atuariam no sentido de manter o Conselho Consultivo completo e funcionando de modo a estimular os debates e abrir espaço para que outros agentes menos poderosos do que as grandes concessionárias do STFC – que hoje concentram o market share também da telefonia móvel e do serviço de acesso à Internet – pudessem contribuir de forma mais intensa para o processo regulatório.

E com sua resistência para os processos democráticos, estes órgãos atropelam os princípios da administração pública e contaminam os atos da agência, que vêm sendo reiteradamente questionados pelo TCU e Ministério Público, de quem esperamos providências urgentes, diante dessas novas e graves ilegalidades.

*Flávia Lefèvre é advogada, conselheira na PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e atualmente representa a sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR)

Movimentos sociais e manifestantes de novo na mira do Congresso

PL do deputado Delegado Edson Moreira reinsere “motivações político-ideológicas” e a possibilidade de enquadrar manifestantes na Lei Antiterrorismo

Por Camila Marques e João Ricardo Penteado*

Quando milhões de pessoas tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 para protestar contra a classe política, ninguém imaginava que uma agenda de retrocessos no campo dos direitos civis seria colocada em prática no país, ameaçando direitos como o da liberdade de expressão, de associação e de protesto.

Nos últimos anos, enquanto o Executivo tem patrocinado repressões policiais cada vez mais violentas contra manifestantes e o Judiciário tem se notabilizado por expedir decisões que endossam tais ações (como a que responsabilizou um fotógrafo por ter sido alvo de uma bala de borracha no olho), ao Legislativo tem cabido a tarefa de propor leis restritivas ao direito de protesto.

Segundo monitoramento da ARTIGO 19, há no mínimo 58 projetos de lei no Congresso Nacional que almejam, em menor ou maior grau, criar algum tipo de embaraço a manifestantes. Ao menos 22 deles foram propostos de 2015 para cá. Há projetos que pretendem impor a necessidade de autorização para a realização de protestos, penas mais graves para delitos ocorridos em manifestações e a proibição do uso de máscaras por manifestantes.

Movida sob o pretexto do combate aos black blocs, essa reação “conservadora” dos três Poderes busca suprimir direitos civis fundamentais, configurando um cenário bastante preocupante. No caso do Legislativo, esse ímpeto atingiu seu ápice em fevereiro de 2016, quando da aprovação da emblemática Lei Antiterrorismo.

A criminalização de mobilizações populares

Um fato bastante curioso que se sobressai na história da aprovação da Lei Antiterrorismo é que seu projeto de lei de origem, o PL 2016/2015, não foi concebido por nenhum deputado das alas mais reacionárias do Congresso, como se poderia esperar. Sua autoria foi compartilhada pelos Ministérios da Justiça e da Fazenda, sob a chancela da Presidência República, à época ocupada pela presidenta Dilma Rousseff.

Outro fato curioso diz respeito à participação da principal pasta de assuntos econômicos na iniciativa. A explicação, no entanto, consta na própria justificativa do projeto, que apontava a necessidade de se combater o financiamento ao terrorismo tal qual preconizam “acordos internacionais firmados pelo Brasil, sobretudo em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (Gafi)”.

O Gafi é um organismo internacional multilateral do qual o Brasil faz parte e que recomenda a criminalização do financiamento do terrorismo na legislação de seus países membros. O “castigo” para aqueles que não adotam a medida é receber uma avaliação negativa, um “selo” que sinaliza a investidores que o país não representa um ambiente seguro para negócios.

Sob grande insatisfação de movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, muitos dos quais de sua base de apoio, o Governo Federal conseguiu encaminhar a aprovação da Lei Antiterrorismo apenas meses antes da realização das Olimpíadas no Brasil, indo inclusive muito além das exigências do Gafi.

As críticas à lei se amparam, basicamente, em dois eixos. Do ponto de vista jurídico, a principal é a de que o texto dos artigos e incisos é genérico o suficiente para dar margem a interpretações distorcidas por parte de juízes, que poderiam aplicá-las de forma arbitrária. Outra crítica neste âmbito é a de que todas as ações proibidas pela Lei Antiterrorismo já encontram tipificação legal nos dispositivos da inchada legislação penal brasileira. Além disso, questiona-se também as altas penas que a lei estipula a pessoas que sejam enquadradas no novo crime.

Do ponto de vista político, o grande receio é o de que a lei seja usada para enquadrar movimentos sociais e manifestantes, sobretudo porque alguns precedentes dessa natureza já foram registrados.

Recentemente, quatro militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram condenados por formação de organização criminosa. A decisão, tomada pela Justiça de Goiás em agosto de 2016, configurou a primeira vez que a tipificação foi usada contra o movimento.

Ampliando o escopo para o resto do continente, um caso que se tornou célebre ocorreu no Chile em 2003, quando sete indígenas mapuches foram condenados por terrorismo a penas que variaram entre cinco e dez anos por ações ocorridas em regiões de grande conflito fundiário com ruralistas locais. Em 2014, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu sentença condenando o Estado chileno pelo uso da lei antiterrorismo no episódio, determinando ainda que os indígenas fossem soltos e recebessem reparações.

Diante de todos esses fatos, e da nova conjuntura das ruas surgida a partir de 2013, fica bastante nítida a intenção escusa sob a qual a Lei Antiterrorismo foi criada: a criminalização das mobilizações populares.

Nova ameaça

A intensa pressão de movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil sobre o projeto que criava a Lei Antiterrorismo acabou fazendo com que houvesse algumas modificações no texto sancionado pela Presidência da República.

Algumas delas foram a exclusão do trecho que colocava “motivações político-ideológicas” no rol de motivos que caracterizam uma ação terrorista e a inclusão de um parágrafo que determina que movimentos sociais e manifestantes não poderiam ser alvo da aplicação da lei. De certa maneira, as duas modificações aliviaram um pouco o potencial lesivo da Lei Antiterrorismo aos direitos à liberdade de expressão, de associação e de protesto, ainda que não totalmente.

No entanto, passado pouco mais de um ano da sanção presidencial, um novo projeto de lei ameaça anular esses dois pontos específicos. Proposto pelo deputado Delegado Edson Moreira (PR-MG), o PL 5.065/2016 pretende reinserir “motivações político-ideológicas” no texto da Lei Antiterrorismo e eliminar a ressalva que exclui movimentos sociais e manifestantes de serem enquadrados como terroristas.

O texto está, neste momento, sob apreciação da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, e deve ser submetido a votação em breve. No último dia 30 de maio, uma audiência pública sobre o projeto contou com a participação de representantes da Polícia Federal, da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do Exército, além de membros da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, da Rede Justiça Criminal e da ARTIGO 19. Os três últimos ressaltaram as ameaças aos direitos civis que o PL 5.065/2016 representa caso seja aprovado, o que tornaria o potencial de violação da Lei Antiterrorista ainda maior.

Em um período marcado por retrocessos em diversas áreas, e com uma crise política instalada no centro do poder do país, cujos desdobramentos ainda são motivos de especulação, é de fundamental importância que movimentos sociais, ONGs e demais entidades do campo progressista mantenham o PL 5.065/2016 no radar.

Trata-se de mais um enorme retrocesso em potencial sendo gestado e um recrudescimento ainda maior do ímpeto de criminalização de mobilizações populares, cujas consequências, caso o projeto ganhe vida, podem ser devastadoras para os direitos à liberdade de expressão, de associação e de protesto – e, por consequência, para toda a sociedade brasileira.

*Camila Marques é advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19; João Ricardo Penteado é coordenador de comunicação da mesma ONG.

Protejam a criptografia do WhatsApp, inclusive dele mesmo

Os debates em torno do bloqueio do aplicativo têm como pano de fundo a defesa de buracos na criptografia, o que só amplia a nossa vulnerabilidade

Por Marina Pita*

Por trás de todo o debate acerca de decisões judiciais de bloqueio do WhatsApp, que nesta primeira semana de junho mobilizou audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF), há uma tentativa de questionar o uso civil da criptografia. Poucas movimentações subterrâneas poderiam ser mais preocupantes do que questionar a legitimidade do uso amplo e irrestrito da criptografia.

Por mais que se estude um vulcão, nunca se pode prever com total exatidão quando ele entrará em erupção. Se for aberta alguma brecha legal que enfraqueça a criptografia do WhatsApp, nós voltaremos à era A.S. (Antes de Snowden) e nossos esforços para garantir a privacidade para todas e todos serão desmontados.

O WhatsApp, aplicativo de mensagem instantânea adquirido pelo Facebook em 2014 por US$ 22 bilhões, passou a ter criptografia ponta-a-ponta em novembro de 2014 – primeiro em dispositivos com sistema operacional Android.

A atualização do aplicativo, após contratar a Open Whisper Systems, uma empresa de sistemas de criptografia, foi um passo gigantesco para o uso de criptografia de forma rotineira e por usuários não técnicos. Apesar de outros aplicativos como o Telegram, TextSecure e Signal já contarem com a funcionalidade, o volume de usuários do app do Facebook faz toda a diferença. Em maio, a aplicação contava com cerca de 120 milhões de usuários no Brasil e 1,2 bilhão de usuários no mundo inteiro.

Todas as vezes que a Justiça pede ao WhatsApp as conversas de pessoas investigadas, esbarra no fato de que, com a criptografia ponta-a-ponta, nem mesmo a empresa controladora do aplicativo tem acesso às conversas dos usuários. Ou seja, não é que a empresa não está respondendo aos pedidos da Justiça brasileira por relutar em cumprir a legislação brasileira – e assim em último e extremo caso correr o risco de ser bloqueada, conforme estabelece o Marco Civil da Internet.

O caso é que as conversas não são acessíveis pelos usuários em questão. Ou seja, mais do que uma atitude arrogante de uma companhia estrangeira, este é um caso mais bem classificado como de falta de entendimento da Justiça brasileira sobre o funcionamento de determinadas tecnologias.

O entendimento de que as conversas no WhatsApp não podem, da forma como funcionam hoje, serem interceptadas de forma simples, faz com que os setores vigilantistas peçam a inclusão de uma porta, teoricamente para uso exclusivo para os casos de pedido judicial, de acesso a mensagens. As portas adicionadas para acesso por determinados órgãos de segurança e governo são chamadas de backdoor, termo em inglês que significa “porta dos fundos” e remete aos acordos escusos entre empresas e governos para a inclusão destes acessos discretos, muitas vezes desconhecidos pelos usuários.

É isto que está acontecendo neste momento quando alguns setores afirmam que a criptografia não pode ser absoluta e que deve ser submetida à legislação brasileira. O que estão pedindo, com este discurso, é a criação de uma porta dos fundos, backdoor, para atender aos pedidos judiciais. E este discurso é bastante convincente para parte dos brasileiros que mantém rancor, desconfiança e antipatia com relação a qualquer empresa/iniciativa que venha dos Estados Unidos.

Precisamos admitir, é um sentimento muito justo, afinal, o país do tio Sam sempre ignorou o direito à autodeterminação dos povos, inclusive interferindo para a queda de presidentes ao longo da sangrenta história latino-americana, para citar apenas uma forma de interferência nas sociedades abaixo do Trópico.

O problema é que, por mais que alguém tenha a maior antipatia do mundo por estadunidenses e pela forma como a elite do país explora os latino-americanos, ao criar portas dos fundos nos sistemas de troca de mensagem instantânea, o que se obtém não arranha, de alguma forma, o negócio do WhatsApp – por mais que milhares de usuários decidam migrar para outra solução mais segura, ainda assim seria residual. E, o mais importante, não há maior segurança para todos nós brasileiros porque os órgãos de investigação e a Justiça passam a ter acesso aos dados quando quiserem.

Ao aceitarmos a criação de portas dos fundos em qualquer serviço de comunicação criptografado, o que estamos escolhendo, como sociedade, é ampliar a nossa vulnerabilidade – a de todos nós – a ataques e roubos, isso sem falar em abrir espaço para a vigilância político-ideológica, econômica, religiosa, etc.

Vamos ao recente exemplo concreto: WannaCry, o ataque ransomware que teria atingido 150 países. Este é um tipo de ataque em que há invasão do dispositivo eletrônico e sequestro de parcela ou totalidade dos arquivos, tornando-os inacessíveis para o proprietário, sendo que é exigido um resgate, geralmente em bitcoin (moeda virtual).

Ninguém menos do que a Microsoft, cujo sistema operacional vulnerável por uma backdoor instalada para acesso remoto da Agência de Vigilância dos Estados Unidos (NSA) a todo e qualquer dispositivo eletrônico que rodasse Windows, vinha sendo explorada.

A empresa veio a público explicar, o que, em tempos de Operação Lava Jato, podemos resumir como “a NSA teve algumas de suas informações roubadas e vazadas e comprometeu o esquema todo”. Se a Agência Nacional de Vigilância dos Estados Unidos perdeu algumas ferramentas de ataque e acesso a sistemas, imagina uma chave de acesso sob controle de qualquer autoridade brasileira. Este é o país que vaza áudios de uma presidenta democraticamente eleita.

Não cabe à sociedade civil, tal como o Intervozes, mantenedor deste blog, apontar as múltiplas outras formas de se obter informações de dispositivos eletrônicos, de forma a responder a casos isolados de mal uso de aplicações digitais por criminosos, mas de forma a não fragilizar sistemas usados por toda a população.

São respostas proporcionais ao tamanho do problema dos órgãos de segurança e da Justiça. Precisamos lembrar que a maioria de nós é inocente e deve ter assegurado o direito à privacidade até que se prove o contrário.

Vamos brigar pela coisa certa

Agora, os nossos poréns com as plataformas estrangeiras, especialmente as dos Estados Unidos, não acabam simplesmente porque defendemos que a polícia precisa sim de apoio para a realização de seu trabalho, mas que isso não pode prejudicar a privacidade de todos nós.

Da mesma forma que não queremos ser potencialmente vigiados e explorados pela coleta de nossos dados pessoais e nossa comunicação em nosso próprio país e, por isso, defendemos a criptografia ponta-a-ponta, também não queremos que outros países o façam. Mas não é isso que acontece, inclusive considerando o WhatsApp.

Vamos voltar no tempo rapidamente e rever o vídeo do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em coletiva de imprensa para tratar do vazamento de arquivos da Agência Nacional de Vigilância (NSA).

A partir do segundo 58 do vídeo, Obama diz: “Com relação à internet e aos e-mails, isso [coleta de dados da NSA em acordo com as plataformas e empresas americanas de internet] não se aplica aos cidadãos americanos e pessoas morando nos Estados Unidos. Este programa é supervisionado pelo Congresso e pela Corte Fisa, criada pela Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Fisa)”.

Basicamente, ele diz sem meias palavras que sim, as empresas estrangeiras podem coletar o que quiserem de qualquer um de nós, os reles brasileiros. Isso acontece porque a seção 702 da Fisa permite que qualquer comunicação de não-americanos e pessoas localizadas fora dos Estados Unidos possa ocorrer. Agora pensa bem: toda essa estrutura de vigilância e coleta de dados está nas mãos de Donald Trump!

Já o WhasApp, em seus termos de uso, detalha que “pode reter data e horário de entrega de mensagens e os números dos celulares envolvidos na troca de mensagens, bem como qualquer outra informação a que seja legalmente compelido a coletar”.

Ou seja, sim, nós precisamos que as empresas estrangeiras que atuam no Brasil respeitem as leis brasileiras, incluindo aí o Marco Civil da Internet. E, não, esta batalha não está ganha. Mas fazer essas empresas quebrarem a criptografia ponta-a-ponta não é a forma útil de comprar esta briga. Vamos lutar pelo que nos trará maior segurança.

*Marina Pita é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes