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Vai chegando a hora de corrigir um grande erro

Nas últimas semanas, cresceu o debate sobre a refusão da Telemar com a Brasil Telecom. O acima-assinado está a cavaleiro para tratar do assunto. Em livro publicado no já longínquo ano de 1996, em artigos acadêmicos ou textos menores, demonstrou-se que a divisão da antiga Telebrás em quatro operadoras fixas e uma dezena de operadoras celulares, resultaria numa colcha de retalho de empresas incapazes de competir num mercado mundializado. Era de se esperar, ao menos se desejar, que o governo Lula, desde o seu primeiro dia, se pusesse a trabalhar para corrigir aquele equívoco. Parece que, agora, premido pelos fatos, acabará empurrado a fazê-lo. 

Repetindo o que podem parecer antigas ladainhas, nenhum país sério, a exceção dos Estados Unidos, ao realizar a privatização de suas antigas operadoras monopolistas, fatiou-as em vários pedaços, embora muitas delas fossem bem maiores do que o era a Telebrás. Mas mesmo nos Estados Unidos, não demorou muito e já os filhotes da ex-monopolista AT&T começaram a se refundir, por força das leis do próprio mercado, a respeito do qual tanto se fala mas pouco realmente se obedece. Um desses filhotes, a SBC, engoliu a Pactel, a Ameritech e, por fim, em 2005, a própria AT&T, cuja marca, histórica, voltou a utilizar. Outro, a Bell Atlantic, engoliu a Nynex, a GTE, a MCI (que se dizia destinada a ser uma das maiores concorrentes da AT&T), dando origem à Verizon, hoje a quarta maior operadora de telefonia celular do mundo.  

Fusões e incorporações não faltam na história recente das telecomunicações. Fora do Brasil, neste momento, a AT&T (SBC) e a America Móvil tentam adquirir da Pirelli, o controle da Telecom Italia. O governo italiano não parece estar gostando da idéia e tem, em seu histórico, um veto à venda da operadora, já então privatizada, para a Deutsche Telekom. Nenhum governo que zele por seu país lava as mãos para a desnacionalização de empresas social e economicamente estratégicas, mesmo se privadas. E quando necessário, diz isso claramente.  

Não que esteja em curso a reconstrução de velhos monopólios. As reformas pelas quais passaram as telecomunicações ao longo dos anos 1980 e 1990, atendiam a pressões econômicas, sociais e tecnológicas por uma ampla reestruturação empresarial e normativa do setor. Era necessário, sim, abrir espaço para a emergência de novas idéias e empreendimentos. Mas, ao mesmo tempo, a economia capitalista não pode se livrar de sua inexorável tendência à centralização e concentração de capitais. E nem pode funcionar, numa escala global, que não seja através de grandes e poderosos conglomerados empresariais. De fato, em todo o mundo se assistiu, nesses últimos anos, ao nascimento e, não raro, consolidação de novas empresas de comunicações. Ao mesmo tempo, as antigas tratavam de se readaptar a uma realidade mutante, algumas se desfazendo de negócios já não muito interessantes (a própria AT&T abriu mão, lá pelas tantas, de seu antigo braço industrial), outras se fusionando e reconstruindo, sob novas roupagens, as antigas corporações de onde, um dia, emergiram.     

A privatização
 

Operadoras: Brasil e México

Receitas líquidas – 2006

USD 109

Telemar

7,8

Telefónica (Telesp)

6,7

BrT

4,7

Embratel

3,8

Total

23,0

América Móvil

22,2

Telmex

11,9

Total

34,1

Fonte: Teleco (www.teleco.com.br)

Obs: receitas em pesos e reais convertidas pela paridade média de 2006:

$1,00 = Mex$ 10,56

$1,00 = R$ 2,17


Quando foi privatizada, a Telebrás era a 15ª operadora de telecomunicações do mundo. Em 1996, faturava USD 12,7 bilhões, operava 14,8 milhões de linhas telefônicas fixas e exibia um lucro de USD 2,7 bilhões. Maiores do que ela, eram justamente os filhotes da AT&T e as grandes operadoras ex-estatais e ex-monopolistas do Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Espanha e Japão. Se a abertura dos mercados à concorrência podia ser considerado, então, como componente inevitável de um grande reajuste econômico, social e tecnológico vivenciado pelo capitalismo mundializado, a privatização aos pedaços da Telebrás, como feita no governo Fernando Henrique, esta não se encaixava no paradigma. Na verdade, excluída a gigantesca AT&T, a abertura dos mercados à concorrência impunha às operadoras que, mesmo privatizadas, permaneciam responsáveis pelo serviço universal e pelo atendimento a outras demandas do Estado ou da sociedade, ostentarem ainda músculos suficientes para buscarem, no novo ambiente competitivo, os recursos necessários à sustentação de suas obrigações de interesse público.
 

Fortemente reguladas pelos seus respectivos governos e não deixando, ao mesmo tempo, de serem, vez por outra, instrumentos de política desses mesmos governos, essas operadoras (essas que, na Europa, ainda são denominadas pelo nome de seus respectivos países mais a expressão “telecom”), por um lado, precisavam se defender em mercados a elas estratégicos, enquanto cediam inevitavelmente posições em vários outros nichos emergentes, sobretudo nas comunicações corporativas, na telefonia celular e na TV por assinatura (cabo ou satélite). Por outro lado, até por isto mesmo, foram buscar receitas extras, para subsidiar as suas obrigações sociais, em países há 500 anos habituados a sustentar a riqueza dos outros às custas da própria pobreza. Entre estes, não precisa dizer, o Brasil. 

Estratégia correta 

Nenhuma operadora logrou mais êxito na realização dessa estratégia do que a Telefónica de España. Com a ousadia de um Cortez ou um Pizarro, ela adquiriu, em golpes sucessivos e a baixo custo, operadoras de telefonia de diversos países latino-americanos, tomando, por fim, do Brasil, a Telesp. Em relatório à Security and Exchange Comission dos Estados Unidos, relativo a 2005, a Telefónica nos informa que “em relação à repatriação de fundos, recebeu da América Latina o montante líquido de  €1.490 milhões”, sendo €884 milhões na forma de dividendos e o restante na forma de juros e principal de empréstimos feitos às suas próprias subsidiárias latino-americanas. Não entra em detalhes quanto à participação da Telesp nesses valores. Não será surpresa se for superior a 50%.  

Leste Europeu, Ásia, África assistiram a desembarques similares das operadoras européias ou estadunidenses. A elas se juntou uma empresa oriunda de um país que, até então, não se sabia dotado de igual vocação: a ex-estatal monopolista Telmex do México. Por volta de 1995, recém-privatizada, ela faturava USD 6,9 bilhões, operava 8,8 milhões de linhas telefônicas fixas e exibia um lucro de USD 1,5 bilhão. Perto da Telebrás, a Telmex era uma anã. Dez anos depois, a Telmex emerge como a segunda maior operadora do continente, disputando a liderança com a Telefónica. Em 2006, operava cerca de 18,3 milhões de telefones fixos no México, auferindo receitas líquidas de USD 11,9 bilhões (ver tabela). Na telefonia celular, através do seu braço América Telecom, operava 87,2 milhões de linha em quase toda a América Latina, sendo 35,9 milhões somente no México, daí tendo auferido receitas líquidas de USD 22,2 bilhões em 2006. 

Em termos individuais, nenhuma das operadoras do Brasil, nacionais ou estrangeiras, em telefonia fixa ou celular, sequer se aproxima do conglomerado mexicano que desde dezembro passado foi reestruturado sob a marca América Móvil. Mas reunidas, as quatro concessionárias de telefonia fixas brasileiras teriam faturado juntas, em 2006, USD 23 bilhões, quantia que certamente poderia vir a ser ainda maior se considerássemos os ganhos sinérgicos que deixaram de obter por força do esquartejamento da Telebrás (nesta conta, por exemplo, não estão incluídas as receitas possíveis em telefonia celular).   

Herança azteca? 

O México teve a sabedoria (talvez herança azteca) de não retalhar a Telmex, ao privatizá-la. É verdade que não adotou outras medidas, adotadas no Brasil, que permitiriam ao cidadão mexicano melhor se beneficiar da nova posição internacional alcançada por sua operadora de telecomunicações. De qualquer modo, vendida ao empresário mexicano Carlos Slim e posta sob concorrência em seu próprio mercado interno, a Telmex viu-se na obrigação de conquistar seu espaço no mundo global das comunicações, caso não quisesse no futuro vir a ser mais um exemplo de revenda a terceiros, como tem sido comum nesse setor. Daí que adquiriu ou criou empresas nos Estados Unidos, em Honduras, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Porto Rico, Venezuela, Peru, Paraguai, Uruguai, Argentina, Colômbia, Equador, Chile e, sobretudo, no Brasil. Aqui, a América Móvil/Telmex controla a Claro e a Embratel. Perdeu alguma coisa em casa, mas compensou com sobras no mundo. 

Aliás, a compra da Embratel pela América Móvil não deixa de ser intrigante. Na privatização da Telebrás, a Embratel foi abocanhada pela empresa MCI/WordCom que, em 2002, iria à bancarrota na esteira de um momentoso escândalo contábil. Em 2003, a Embratel foi posta a venda. Era a grande oportunidade que se oferecia ao governo Lula para começar a desfazer o equívoco do desmonte da Telebrás e iniciar a recuperação, para o Brasil (não necessariamente para o Estado), do controle da empresa e de seus satélites.  

É difícil entender — e ainda há que se explicar — porque o mesmo governo que, através de ousada manobra do então presidente do BNDES, Carlos Lessa, evitou a desnacionalização da Vale do Rio Doce, não agiu, com ainda maior firmeza, no caso da Embratel. Um consórcio formado pela Telemar e Brasil Telecom queria comprá-la. Na Telemar, o governo detém, direta e indiretamente, cerca de 75% do capital social, sendo 25% através do BNDES e quase 50% através dos fundos de pensão do Banco do Brasil, Petrobrás e de outras estatais. Na Brasil Telecom, o governo detém, indiretamente, o próprio controle através da mesma Previ e outros fundos de pensão. Se não faltassem razões políticas, existiriam muitos motivos patrimoniais para realizar tal investimento. No entanto, o governo não apoiou a proposta. Em que pese a oferta do consórcio brasileiro ter sido melhor do que a da América Móvil/Telmex, quem decidiu o futuro da Embratel foi um juiz de Nova York: mandou a MCI entregá-la a Slim. Foi como que um definitivo acórdão da total perda de controle do Brasil sobre os rumos das suas telecomunicações. 

Refusão necessária 

A refusão da Telemar com a Brasil Telecom não se faz necessária apenas para recolocar o Brasil no tabuleiro mundial das comunicações. Até por isto mesmo, ela se impõe como condição de sustentação do nosso sistema nacional de comunicações em todo o imenso Brasil pobre. Nos tempos da Telebrás, na maior parte do país, os custos de implantação e operação da infra-estrutura eram bancados pelos superávits e lucros da Embratel, Telesp e algumas outras poucas “teles” estaduais. O esquartejamento da Telebrás separou, de modo algum inocentemente, o filé (São Paulo e longa distância, isto é, Telesp e Embratel) do imenso osso representado pelo Norte, Nordeste e demais interiores. Não por acaso, a Telesp e a Embratel acabaram em mãos estrangeiras, ficando as sobras com investidores nacionais escorados pelo Estado. O mercado se concentra em cerca de 350 municípios – nestes, encontramos investidores e, daí, competidores. No restante do Brasil sobrevive, em cada grande área de outorga, um monopólio de fato, sem muitas chances de vir a deixar de sê-lo em futuro próximo ou remoto. Mas são monopólios que, cada vez mais, pressionados pela concorrência nos mercados ricos e competitivos, vêem-se em dificuldades para seguir sustentando até mesmo o básico, nas regiões pobres. A fusão lhes dará novas forças e, quem sabe?, condições para também buscar lá fora lucros a serem “repatriados”… 

Desde quando foram criadas, era previsível que a Telemar e a Brasil Telecom teriam dificuldades para sobreviver num modelo que ignorou as desigualdades sócio-econômicas do país. Assim como a Espanha, Alemanha, França, Itália, sem falar dos Estados Unidos, têm uma ou mais de uma grande operadora de telecomunicações de porte global, é legítimo que o Brasil sedie a sua. Por outro lado, em nenhum desses países, operadoras desse porte recebem cheque em branco do governo. Uma “Brasil Telecom” teria apoio em sua disputa internacional num mercado aberto, mas teria que manter e reforçar seus compromissos com a universalização e inclusão, com a real prestação de um excelente atendimento ao cidadão e usuário, e com o desenvolvimento tecnológico do país, dentre outros que, até agora, se é que assumiram, ao menos ainda não lhes foi realmente cobrado. Até porque, para isto, seria necessário também que o governo não brincasse, nem com a educação, nem com a Anatel. Mas este é um outro assunto… 

 

 * Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre TV Digital. Foi membro do Conselho Consultivo da Anatel, Secretário de Planejamento do Ministério das Comunicações e Secretário de Educação a Distância do MEC. É autor de A lógica do capital-informação (Ed. Contraponto, 1996, 2ª ed. 2002).

A TV digital e a oportunidade perdida

Hoje mais do que nunca a transformação necessária ao desenvolvimento e consolidação da democracia brasileira passa por uma ampla reforma no setor das Comunicações. Isso se dá pelo fato da produção e difusão de informação e cultura envolverem direitos e liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, o direito à informação, a liberdade de imprensa, o direito à privacidade e, e englobando todos eles, o direito humano à comunicação. 

O reconhecimento desses direitos (e o Brasil o faz, pelo menos em seus princípios constitucionais e tratados internacionais do qual é signatário) deveria imputar ao Estado brasileiro e aos poderes da República responsabilidades diversas materializadas na forma de normas infra-constitucionais e políticas públicas capazes de equilibrar, naquilo que chamamos de mídia, a circulação de informações de maneira que este processo reflita tanto o conjunto da sociedade brasileira quanto suas especificidades de classe, etnias, raças, regiões, gêneros, ideologias e valores morais e éticos. 

Harmonizar estas responsabilidades não é tarefa fácil, correndo-se sempre o risco de abusos por parte do Estado, que pode exercer um poder arbitrário, como ainda o fazem de forma sistemática alguns países totalitários. No Brasil, apesar de existirem ainda focos inaceitáveis de violações (especialmente onde impera o coronelismo), a liberdade de opinião e imprensa, nos últimos anos, dá demonstração de solidez. E, a despeito da tentativa dos setores que detêm a hegemonia na circulação de informações de imputar ao governo Lula tentações autoritárias, os fatos provam que os últimos quatro anos foram de ampliação das liberdades civis. Hoje, o maior impeditivo ao exercício destas liberdades é de outra ordem: a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos e sua finalidade majoritariamente comercial, ambas a maior forma de censura dos nossos tempos. 

Violação permanente

Este quadro se materializa em diversas formas e atinge em cheio o meio de comunicação mais importante do Brasil, a televisão. A fragilidade da legislação, datada da década de 60, e a sua má implementação geram diversas distorções. Exemplo claro é a aprovação e renovação das concessões, feitas muitas vezes por parlamentares donos de emissoras de Rádio e TV em um processo automático, sem critérios de avaliação, sem a participação da sociedade e ferindo a regra constitucional. Sem este controle, os atuais concessionários seguem abusando da publicidade ou da prática de estelionato (muitas vezes pouco sutil, diga-se), cometendo ilegalidades flagrantes como a sublocação de espaço nas grades de programação. 

Não bastasse, como uma cereja no bolo do quadro caótico, o capítulo de Comunicação Social da Constituição de 1988 ainda não foi regulamentado (após 19 anos), deixando sem efetivação princípios como a proibição ao monopólio, a prioridade aos conteúdos informativos, educacionais e culturais, a promoção da cultura regional e independente e a complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal. 

Num quadro onde a violação ao direito humano à comunicação é regra e não exceção, a migração para a plataforma digital da transmissão e recepção dos sinais de televisão aberta, por suas diversas características, inaugurou uma janela de oportunidades para que o Estado brasileiro reorientasse as políticas de comunicação, agora sob a perspectiva do interesse público. Em primeiro lugar, porque a TV digital necessariamente demanda a reorganização do espectro de freqüências (por onde trafegam os sinais de rádio e televisão), permitindo que mais programações sejam transmitidas (até seis vezes mais do que as existentes hoje). Em segundo, porque possibilita o oferecimento de serviços interativos de relevância social hoje só disponíveis pela Internet. Em terceiro, porque induzirá um processo econômico de grande escala que pode ser usado como um indutor do desenvolvimento tecnológico e científico do país. 

A televisão digital, entretanto, apesar de suas potencialidades, não é uma dádiva que, necessariamente, trará benefícios à sociedade. Seus resultados dependem de decisões políticas. Algumas delas já foram tomadas. Outras, tão essenciais quanto, ainda não estão consolidadas, especialmente em função da incapacidade do marco regulatório vigente de absorver a migração para a televisão digital. 

A história recente da TV digital no Brasil

O Decreto Presidencial (4.901/2003) que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) possuía méritos inegáveis. Mencionava princípios como o desenvolvimento científico-tecnológico, a inclusão social, educação à distância e a democratização da informação. A partir dele, foram criados consórcios de universidades e centros de pesquisa que receberam recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico para as Telecomunicações (Funttel) a fim de  produzirem tecnologias nacionais que pudessem ser utilizadas na TV digital. Ao mesmo tempo, a sociedade civil foi chamada a participar do processo, através da criação de um Conselho Consultivo. 

O desenrolar das atividades previstas no Decreto 4.901, porém, se mostrou bem aquém das expectativas dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação. Houve pouco dinheiro para as pesquisas e seus repasses sofreram vários atrasos. O Conselho Consultivo não contou com infra-estrutura para seu funcionamento, até que finalmente deixou de ser convocado sem que a sociedade civil pudesse se pronunciar sobre os diversos assuntos envolvidos com a TV digital. Por fim, a posse do ministro Hélio Costa, em um momento onde o governo Lula sofria forte perseguição da grande mídia privada, significou a consolidação dos interesses dos radiodifusores privados (em especial as Organizações Globo), que conseguiram emplacar toda as suas reivindicações. 

O ápice desta “virada” no processo foi o Decreto Presidencial 5.820/2006, promulgado em 29 de junho de 2006 durante a realização da Copa do Mundo da Alemanha, quando todas as atenções estavam voltadas para o futebol. Ele sacramentou a adoção da tecnologia japonesa na constituição da TV digital terrestre brasileira (aquela que irá substituir o serviço de TV prestado atualmente em sinal aberto).

Para a implantação do novo sistema, o Decreto estabeleceu as diretrizes do processo de transição. Nele, a norma concedeu a cada emissora que já possuía outorga para um canal analógico um novo canal digital, em caráter de consignação. A figura da consignação é inédita em se tratando de concessões públicas e permitiu que o governo entregasse novos canais para os atuais radiodifusores sem levar o assunto para deliberação do Congresso Nacional, como determina nossa Constituição. A previsão é que o processo ocorra das maiores para as menores cidades mas nenhuma consignação foi feita ainda pelo fato da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estar procedendo estudos sobre a melhor ocupação do espectro.

Aqui começam os primeiros problemas. Na TV digital, um único canal de televisão passa a comportar a transmissão de várias programações simultâneas, variando a quantidade de acordo com a definição da imagem. Se optarmos pela qualidade de um DVD, no espaço hoje ocupado por uma única programação, é possível colocar pelo menos quatro. Frente a esta possibilidade, por que entregar este espaço todo para os atuais radiodifusores e não fragmentar as faixas, permitindo a entrada de novas emissoras (privadas, estatais e públicas)? A perdurar a escolha atual, esta segunda opção estará comprometida, pois haverá pouquíssimo espaço disponível para novas emissoras no período de transição, especialmente nos grandes centros urbanos. Ao invés de democratização teremos uma concentração ainda maior do espectro reservado à TV aberta. 

Contraditoriamente, o Decreto não otimiza o uso do espectro para incluir mais fontes de informação mas prevê que as atuais emissoras transmitam várias programações simultaneamente, entrando em conflito com o Decreto-Lei 236, de 1967. Esta norma impede um mesmo concessionário de possuir mais de um único canal por estado, numa clara restrição à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Também está prevista na norma a possibilidade de haver interatividade, contrariando o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que define a radiodifusão como um serviço unidirecional. Porém, mais preocupante é o fato do governo permitir que a interatividade seja usada exclusivamente de acordo com os planos comerciais das emissoras. Ou seja, a TV interativa estará disponível apenas para quem puder pagar por um “canal de retorno” (banda larga) e comprar um terminal de acesso com modem, memória, HD, etc. Estaremos criando a categoria dos excluídos da TV interativa. Ao mesmo tempo em que deixaremos de usar os recursos interativos para prover diversos serviços de utilidade pública. 

Outro conflito presente no Decreto é de caráter político e ético. O Ministério das Comunicações é o responsável por definir quais emissoras estarão com a sua documentação atualizada, para que possam receber a consignação do novo canal. Ocorre que o titular da pasta, Hélio Costa, foi durante anos empregado das Organizações Globo, é dono de uma emissora de rádio em Barbacena e seu suplente (que financiou parte de sua campanha ao Senado) é dono das retransmissoras da Bandeirantes em Goiânia e do SBT em regiões do interior de Minas Gerais.

Por fim, o Decreto cria problemas também na definição do prazo de 10 anos para que as a finalização da transição do analógico para o digital, embora tudo indicar que o tempo necessário para que todos os usuários comprem os conversores ou troquem seus aparelhos televisores será maior.

As pesquisas brasileiras

Em paralelo à adoção da tecnologia japonesa para a TV digital (nome fantasia: ISDB) foi firmado um acordo com o governo japonês que visa definir como será a parceria entre as empresas brasileiras e nipônicas. Tal acordo, que deveria ter passado pelo Congresso Nacional, como define nossa Constituição, é vago, não imputando qualquer responsabilidade aos japoneses, não ficando claro em momento algum o nível da parceria ou se haverá ou não transferência de tecnologias. Ao não definir tais critérios e a obrigatoriedade da formação de mão-de-obra qualificada, a implantação da TV digital abre a possibilidade da instalação de meras montadoras, mantendo nossa histórica dependência de tecnologias importadas. Também há o risco do isolamento. Até agora, o Brasil é o único país do mundo, além do próprio Japão, a adotar o ISDB.

Mais recentemente, o governo criou um fórum para confecção das regras técnicas de implantação do ISDB no Brasil. Para participar deste fórum é preciso pagar (sic) e dele fazem parte apenas as empresas de equipamentos e radiodifusores, além de duas vagas para universidades. O primeiro problema é que o próprio governo tem presença consultiva em um órgão que definirá uma parte importante de uma política pública. O segundo é o veto à participação da sociedade civil. E, pela pouca informação disponível (quase tudo obtido em conversas informais), o que se sabe é que teremos a utilização de apenas duas tecnologias nacionais: o middleware Ginga e a implantação, no ISDB, do codec H264.

Canais da União

No Decreto 5.820/2006 consta que “poderá haver” a criação de quatro canais da União, um para o Poder Executivo, outro para educação, um para cultura e um último para a cidadania. É importante destacar que estes canais serão geridos pela União, sendo estatais e não públicos. Inversamente, não há nenhuma menção sobre levar para a TV aberta os canais de acesso público já existentes na TV a cabo (TV Câmara, TV Senado, TVs de assembléias legislativas e câmaras de vereadores, TV Justiça, canais comunitários e canais universitários).

Para ir ao ar, os canais da União deverão ocupar o espaço final do UHF (60-69). Mas, antes será preciso retirar de lá o serviço de link entre as geradoras analógicas e as suas estações repetidoras e retransmissoras (Serviço de Repetição de TV – RpTV), o que implicará em custos para os radiodifusores. Isso sem contar que tais canais são os que geram mais custos para a sua ocupação, o que implica na necessidade de utilizar uma maior potência (requerida pelos canais mais altos), aumentando os custos de transmissão. Assim, o Decreto preservou os canais mais baixos (e de transmissão mais barata) para as emissoras privadas, deixando os maiores desembolsos com a União.

Mudança necessária

Se a ampliação de fontes de informação e cultura não foi até agora uma opção política dos governantes brasileiros, com a tecnologia digital há poucos motivos cabíveis para não realizá-la. A tecnologia permite que isso aconteça, mas, sendo esta apenas um instrumento, é preciso que as autoridades responsáveis, especialmente o presidente da República, inovem frente aos seus antecessores. Se a história do Brasil é marcada pela atuação do Estado em prol dos grupos privados de mídia, um governo que se anuncia popular deve necessariamente adotar outro rumo. 

A democratização das comunicações é compromisso assumido pelo próprio presidente de forma explícita em seu programa de governo: “O governo deve assumir o compromisso com um plano vigoroso e específico de democratização da comunicação social no Brasil como uma de suas principais propostas para um segundo mandato e de fortalecimento da democracia” (Programa setorial de Comunicação e Democracia, disponível no sítio do PT). 

O mesmo programa cita explicitamente a necessidade de encarar a chegada da convergência tecnológica como oportunidade para “dar novas soluções a velhos e novos problemas” apontando que o novo modelo setorial “deverá corrigir as atuais distorções existentes na organização e no funcionamento destes serviços e orientar as profundas transformações que estão sendo introduzidas pela tecnologia digital”. 

A correção destas distorções passa, como afirmamos anteriormente, por um conjunto de políticas que coloque a comunicação a serviço das maiorias e que respeite o espectro eletromagnético como bem público. Nesse sentido, o próprio programa de governo para o segundo mandato aponta duas prioridades para levar a cabo este objetivo. A primeira é a reformulação do marco regulatório das comunicações em coerência  com o  direito humano à comunicação. A segunda é o fortalecimento dos sistemas democráticos de mídia, especialmente de um sistema público forte, com autonomia editorial, financiamento público e estável, e gestão participativa. 

Mais do que uma obrigação do governo frente aos compromissos assumidos durante a campanha, o projeto de democratizar a mídia no país é de responsabilidade de todos aqueles que defendem uma sociedade justa e democrática, especialmente dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais. Frente à dura disputa de projetos que já está em curso para os próximos anos, estas forças políticas não podem prescindir de buscar transformações radicais neste que é um dos campos mais importantes da luta ideológica da atualidade.  

Diogo Moyses, Gustavo Gindre e Jonas Valente são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

2007: Meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social

No início deste ano, decidi que 2007 será meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social.

Gesto isolado, individual, meio pretensioso, mas que talvez me sirva de alento diante de um novo começo político-administrativo para o Brasil, que, espero, contemplará na pauta desenvolvimentista do governo – de aceleração, crescimento e inclusão -, como a quer o  presidente Luiz Inácio Lula da Silva, novas e diferentes políticas para a comunicação social. 

Mas, por que Roquette-Pinto?

Está é fácil, responderá o graduando em Comunicação, atento ao que lhe ensinamos em nossas faculdades: foi Roquette-Pinto quem inventou o rádio no Brasil.

Errado, responderá o professor mais atento, ainda que sejam poucos os realmente atentos aos detalhes biográficos de Edgard Roquette-Pinto, até porque esse extraordinário brasileiro está entre aquelas grandes expressões da vida nacional que até agora não receberam a atenção de uma biografia. Errado não apenas porque, no arroubo retórico, o graduando, ou graduanda, atribuiu a Roquette-Pinto a façanha de inventar o rádio brasileiro. Talvez porque em uma aula de história da Comunicação, ele ou ela tenha ouvido alguma coisa que ligava aqui o início das transmissões radiofônicas com a Academia Brasileira de Ciências. Errado, acima de tudo, porque Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) foi muito, muito mais do que o fundador, em abril de 1923 da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, hoje Rádio MEC AM. Edgard Roquette-Pinto, nas duas décadas anteriores à criação da Rádio Sociedade protagonizou uma das mais brilhantes carreiras de cientista e educador que este país já conheceu.

Daí sua ligação com a Academia Brasileira de Ciências; daí ele ter convencido Henrique Morize, então presidente da Academia, a acompanhá-lo no desafio de iniciar o rádio no Brasil; daí a sua férrea convicção de que aquela nova tecnologia tinha que ser um instrumento de promoção, mais do que tudo, da educação, da ciência e da cultura.

Roquette-Pinto formou-se médico em 1905, mas trocou logo a prática médica por um interesse científico abrangente. Já na formatura, o trabalho final, intitulado O Exercício da Medicina Entre os Indígenas da América, indicava suas amplas ambições intelectuais; no caso, a Antropologia. Um ano depois, já estava no Rio Grande do Sul, estudando sítios de sambaquis, as jazidas de ossos e outros remanescentes dos primitivos habitantes do nosso litoral. Pouco tempo depois, assumia por concurso a cátedra de etnografia e antropologia do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

No Museu Nacional, conheceu, em 1911, o então tenente-coronel Cândido Rondon, a quem acompanhou, um ano depois, na expedição ao Mato Grosso, da qual resultou um clássico da literatura científica brasileira: Edgard Roquette-Pinto. Rondônia. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1975, 6ª edição, originalmente publicado em 1916: um minucioso tratado geográfico, etnográfico, antropológico, biológico e cultural que, para Gilberto Freyre, ombreava-se com Os Sertões, de Euclides da Cunha, no desvendamento de aspectos cruciais da cultura, nacionalidade e geografia nacionais.

Mas, insolitamente, como observei acima, esse extraordinário brasileiro permanece até hoje sem uma biografia. Talvez porque, como escreveu Ruy Castro no breve, mas agudo perfil biográfico que fez de Roquette-Pinto, um só volume não seria capaz de apreender toda a complexidade e multiplicidade de tão desafiador personagem. Daí ter intitulado seu ensaio Roquette-Pinto: O Homem Multidão; no subtítulo, a metáfora que julgou apropriada para descrever o personagem  (http://www.soarmec.com.br/ouvinte/roquette.html).

Foi durante a expedição com Rondon que Roquette-Pinto manifestou pela primeira vez seu fascínio com as coisas da comunicação. Em película, ele registrou as primeiras imagens dos Nhambiquaras, documentário pioneiro que doou, em 1912, à recém-inaugurada cinemateca do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Roquette-Pinto foi sempre um brasileiro comprometido com a educação, e ele vira naquela nova tecnologia de comunicação, o cinema, um instrumento decisivo para levar informação e conhecimento às crianças e jovens de todo o país.

Por isso, em uma outra importante etapa de sua vida cívica e profissional, participou, ao lado de brasileiros igualmente extraordinários, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, das primeiras tentativas de reformas estruturais da educação brasileira, processo durante o qual Roquette criou, em 1936, o INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), instituição por meio da qual disseminou projetores e fitas educativas por dezenas de escolas públicas do então Distrito Federal, no que pretendia fosse uma campanha nacional.

Em outras palavras, ninguém mais do que Edgard Roquette-Pinto pensou, nos primórdios do século XX, como fazer convergir educação e as novas tecnologias da comunicação e da informação. Por isso, na década de 20, foi capaz de abandonar quase todo seu múltiplo e extraordinário passado de etnógrafo, antropólogo, geógrafo, pela tecnologia do rádio, dado o impacto que, muito mais do que o cinema, ela poderia ter sobre a educação. Abandonou-o a tal ponto de hoje ter se tornado quase apenas uma curiosidade histórica: ele teria sido o ‘inventor’ do rádio no Brasil. O que é muito pouco reconhecimento para o brasileiro que ele foi, embora o suficiente para nos ensinar a lição preciosa: toda transição tecnológica na comunicação traz com ela a esperança de uma revolução civilizatória; na educação, na informação, na cultura. Mas toda ela, até hoje, resultou no infortúnio da comunicação largamente mercantilizada, alienadora, ainda que aqui e acolá lampejos de suas potencialidades emancipatórias não nos deixem esquecer que outros caminhos, funções e usos seriam possíveis para ela.

Por isso, Edgard Roquette-Pinto, morto há mais de cinqüenta anos, tem tudo a ver com a idéia de democratização da comunicação social; ele é um importante recorte de nossa memória histórica que pode não nos deixar esquecer que as tecnologias da informação e comunicação, cada vez mais sofisticadas e poderosas, são apenas meios, embora tendam, pela força de seu poder técnico e apropriação pelo mercado, e pelo fascínio das suas abundantes possibilidades, a se tornarem fins em si mesmas.

Ontem o cinema e o rádio. E, depois, a televisão. E mais, adiante, o computador. E, mais adiante do computador, a internet. Antes de ontem, o telefone. Hoje a convergência do telefone com o cinema, o rádio e a televisão, tendo como vetor a tecnologia digital originária do computador, agregada na internet.

O que não faria Edgard Roquette-Pinto diante das potencialidades civilizatórias da convergência? O que não diria Roquette-Pinto diante dos quase R$ 5 bilhões de reais que o governo entesoura hoje, oriundos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações? Que novidade seria para ele a idéia aparentemente tão ousada de levar computadores e acesso à internet para todas as escolas públicas, se ele viu fracassar tão rotundamente seus generosos planos de um projetor de cinema em cada escola, para a projeção de filmes educativos e culturais, como viu fracassar seu generoso plano de um rádio não comercial, de serviço público, voltado para a educação e a cultura? Quantos sabemos que o prefixo da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, PRA-2, era disputado por muito dinheiro nos anos 1930, e que Roquette recusou-se a vendê-lo, preferindo doar sua ‘invenção’, a preciosa Rádio Sociedade, ao Ministério da Educação?

Lembremos o que sobre isto escreveu Ruy Castro, e que me seja perdoada a longa transcrição:

“Nadando contra a corrente, Roquette continuava a não admitir propaganda comercial ou política em sua emissora – o que a condenava a um gueto no dial. Mantida, como sempre, apenas pelos “sócios”, a Rádio Sociedade não tinha dinheiro para modernizar o equipamento e ampliar a potência a fim de enfrentar a concorrência. As óperas completas que transmitia (e que atraíram milhares de jovens brasileiros para o canto lírico) estavam sendo sufocadas em volume por “O Teu Cabelo Não Nega”. Roquette desejava apenas que houvesse espaço para todo mundo. Mas, agora, o ideal do rádio educativo no Brasil estava em perigo. Em 1933, convenceu seu amigo, o educador Anísio Teixeira, secretário da Educação, a fundar uma rádio-escola a ser mantida pela prefeitura do Rio, para servir de exemplo a outras no futuro. Anísio topou, Roquette emprestou-lhe equipamento e funcionários da Rádio Sociedade e, com isso, a Rádio Escola Municipal, PRD-5, foi para o ar no ano seguinte. Em troca, Anísio pediu que ele fosse o seu primeiro diretor. Roquette aceitou. Talvez a nova estação do Largo da Carioca (rebatizada em 1945 como Rádio Roquette-Pinto) pudesse escapar ao comercialismo que parecia engolir todas as outras, inclusive a sua.

Para evitar a morte ou a desfiguração da Rádio Sociedade, Roquette só enxergava uma solução: reverter seus canais a um órgão oficial – o Ministério da Educação e Saúde. Em julho de 1936, quando resolveu se desfazer de sua rádio, Roquette-Pinto chamou seus filhos Paulo, de 27 anos, e Beatriz, de 25, à Rua da Carioca. Informou-lhes que, aos 52 anos, era um homem pobre e que a única herança que poderia deixar-lhes era a rádio, para que a dirigissem como uma rádio comercial. Só o prefixo, já então PRA-2, valia uma fortuna. “Mas não quero que ela se transforme numa rádio comercial”, acrescentou. A seu ver, ninguém – nem ele, nem seus filhos – poderia salvá-la desse destino. Somente um órgão oficial teria meios para isso.  

Beatriz entendeu o que seu pai queria dizer. E nem esperou pela opinião do irmão. Antecipou-se e perguntou: ”É esse o seu ideal, papai?” ”É”, respondeu Roquette. ”É tão raro um homem realizar seu ideal, meu Deus. Dá a rádio, papai. Nem se discute”.

Roquette então perguntou por carta a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, se o ministério se interessaria pela rádio com tudo o que havia dentro: instalações, equipamento, biblioteca, laboratório de ensaios científicos, discoteca, instrumentos musicais, partituras, arquivo, móveis e utensílios, além, é óbvio, da estação transmissora em perfeito estado de funcionamento, com seus canais de ondas médias e curtas, e um quadro completo de locutores e técnicos com 13 anos de experiência. Tudo isto sem dívidas ou ônus de espécie alguma para a União e até com dinheiro em caixa. Única e irrevogável condição: a de que a rádio permanecesse fiel ao seu lema cultural e educativo, sem qualquer vinculação comercial, política ou religiosa. Capanema respondeu que o presidente Getúlio Vargas aceitava e agradecia, mas sugeria que a reversão fosse feita através do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Ao ler isso, um alarme tocou na cabeça de Roquette. Ele pareceu adivinhar que, em menos de um ano, o tal departamento se tornaria o infame Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Ora, ninguém o estava obrigando a desfazer-se de sua rádio. Sem hesitar, mandou outra carta a Capanema enfatizando que a reversão seria feita “ao Ministério de Educação do povo, não ao governo”. E só então Capanema entendeu e encerrou a correspondência, garantindo que o ministério a aceitava sem discussões, nos termos em que fora proposta.  

Essas cartas foram os anticorpos que, no futuro, garantiriam a integridade da rádio contra os vários órgãos que tentariam apossar-se dela. A reversão foi sacramentada no dia 7 de setembro de 1936. Na cerimônia oficial, realizada no terceiro andar do prédio da Rua da Carioca, Capanema fez-se acompanhar por seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade. Vinte e cinco anos depois, Drummond recordaria numa crônica que a cerimônia “tinha qualquer coisa de casamento no seio de uma família muita unida, que via a filha sair nos braços do rapaz escolhido livremente; sim, um excelente rapaz, tudo estava ótimo, os dois seriam muito felizes – mas… quem sabe?” A imagem lhe ocorrera porque Roquette passara os canais a Capanema com a frase:”Entrego esta rádio com a mesma emoção com que se casa uma filha”.

Roquette saiu dali com Beatriz para um pequeno corredor nos fundos do andar e chorou de antecipada saudade. Com os olhos também molhados, Beatriz voltou para ajudar Drummond a colar os selos do ministério nos móveis e objetos da rádio. Naquele dia, (…), a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro deixava de existir, para que nascesse a Rádio Ministério da Educação.”

Eis aí porque, inspirado por essa maravilhosa história brasileira, justifico 2007 como o meu Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social.

Afinal, lágrima de herói nunca é derramada em vão. Heróis dão exemplos; heróis abrem caminhos.

Heróis são alicerces do futuro; suas histórias de vida são construções de esperanças.

Edgard Roquette-Pinto é o maior, ainda que talvez o mais desconhecido, herói da comunicação brasileira.

Que a sua exemplar história de vida ilumine aqueles que, neste ano, assumirão a responsabilidade pela formulação e debate das políticas de comunicação no Brasil. 

*Artigo originalmente escrito para Terra Magazine
(www.terra.com.br/terramagazine/colunistas/muriloramos

 

 

TV Universitária: televisão sem complexo

Doze anos depois de instituída, com o acesso gratuito a canais de TV a cabo que foi facultado às universidades pela Lei 8977, de janeiro de 1995, a televisão universitária brasileira está chegando a uma encruzilhada. O início de transmissões comerciais da TV Digital, anunciado para dezembro deste ano, e a reestruturação da televisão pública, que decorrerá do I Fórum Brasileiro de TV Pública, agendado pelo governo federal para março próximo, são circunstâncias que prometem impactar profundamente o ambiente audiovisual, abrindo um amplo leque de novas possibilidades, mas também ameaçando a posição dos atores menos eficientes nesse mercado. A TV universitária terá de escolher se avança para o profissionalismo e a consolidação, ou se permanece na indefinição de rumos, assistindo ao progressivo estreitamento de seus espaços e definhando aos poucos. 

Não será uma opção fácil. A maioria das produtoras e canais universitários existentes ainda padece daquela "Síndrome do Vira-Lata" diagnosticada há décadas por Nélson Rodrigues, quando identificou o complexo de inferioridade dos brasileiros, que os incapacitava para as grandes conquistas, como a Copa do Mundo. Os futebolistas já superaram a tal síndrome e nos sagraram pentacampeões, mas a TV universitária segue cultivando uma auto-imagem de irrelevância diante das "grandes" emissoras e nutrindo-se dela para justificar a falta de projeto, de ousadia e de ambição de crescer. É como se, por ser apêndice de uma instituição cuja finalidade principal não é a comunicação social, fosse natural que a TV universitária viva sempre na precariedade, trabalhe com orçamento insuficiente para as necessidades, e realize apenas uma ínfima parte do que poderia fazer pela universidade e pela sociedade. Acostumou-se a ser modesta essa televisão, e é difícil fazê-la compreender que o céu é o limite, como percebeu a TV comercial há mais de 50 anos. 

Chega ser cômica a contradição que se estabelece, quando o forte criticismo da universidade para qualquer tema da televisão defronta-se com a sua insegurança de apropriar-se, ela mesma, dessa tecnologia que adora demonizar. Os estudos apontando o poder tentacular de uma Rede Globo, por exemplo, com seu suposto papel nocivo à democracia e à cultura do país, poderiam formar uma pilha de altura equivalente à antena da emissora, na Avenida Paulista. No entanto, sempre que a TV universitária demonstra alguma insuficiência, é com a Globo que o meio acadêmico a compara, para desqualificá-la. Da mesma forma, é comum professores desdenharem das entrevistas que concedem a canais universitários, mas não se vê a mesma indiferença quando quem os convida a falar é o "Jornal Nacional". O grande satã das ondas hertzianas converte-se em guru da boa produção televisiva diante dos canais universitários, sempre vistos como coisa menor, aos quais não tocarão jamais as bênçãos do Ibope. 

Até certo ponto, é natural que seja assim. A universidade tem dificuldades em compreender a televisão na exata medida de sua influência sobre a cultura, a política e os costumes. Tende a superdimensioná-la, seja para o mal (a máquina de fazer doidos, a máquina de chupar cérebros), seja para o bem (a mídia eficientíssima, o canal de comunicação onipotente). E como não consegue apreendê-la na inteireza de suas ambigüidades, poderes e limitações, hesita diante dela, quando ela se oferece ao uso. Abriga-se numa ótica comparativa (como fazer TV tão bem como a Globo?), que, além de descabida, é redutiva e imobilista. O resultado é o descaso com os canais universitários que estão à sua disposição, transmitindo diariamente em mais de 50 centros urbanos grandes ou médios do país, para muitos milhares de brasileiros do outro lado da tela. 

Palavra inteligente 
Este é, então, um fato insofismável: a televisão universitária vem crescendo apesar da universidade, às vezes contra o desejo de parte dela. Os núcleos de produção existentes e os canais que eles mantém nasceram da iniciativa de setores acadêmicos (nos cursos de jornalismo ou RTV, nas assessorias de comunicação e nas pró-reitorias de extensão, em geral), mas ainda não foram bem metabolizados no organismo universitário. Ainda não foram "assumidos" pela comunidade acadêmica, não se transformaram em objeto de interesse ou desejo de todos os cursos, do conjunto do professorado, dos estudantes, dos servidores. Sobrevivem enquistados, lutando por verbas, clamando por apoio, expostos permanentemente aos cortes de pessoal e orçamento, ao menor sinal de crise financeira nas instituições que os abrigam. 

E, no entanto, muita gente os assiste. Cidadãos comuns, cansados da mesmice e da banalidade da televisão de entretenimento, interessados em ilustrar-se, sintonizam os canais universitários em busca da palavra inteligente, do comentário sensato, da análise sólida, da informação boa. A imprensa busca neles fontes de informação e novas caras para o telejornalismo. A publicidade tenta usá-los para comunicar-se mais facilmente com o mundo universitário e só não avança nessa direção porque há complicadores legais (são canais públicos, sem finalidade de lucro), mas sobretudo porque não estão profissionalmente estruturados para relacionar-se com agências e anunciantes (não fazem pesquisa de audiência, divulgam mal a sua programação, não têm política definida para captação de patrocínio/apoio cultural, etc). 

Os canais universitários, enfim, já são úteis para muita gente e cumprem boa parte de sua missão, mostrando à sociedade muito do que a universidade faz e pensa. Imagine-se, então, o que já estariam fazendo, se merecessem o decidido apoio da comunidade universitária, se fossem amados e impulsionados por ela. E imagine-se o que poderão fazer, no cenário da televisão digital – que vem aí com ampliação do número de emissoras disponíveis, multiprogramação das emissoras em vários canais, serviços interativos de informação, entretenimento e educação, e talvez com um bloco de canais públicos robustecido, integrado, bem financiado e mais apoiado pelo Estado. Como se comportará a televisão universitária nesse cenário? 

A resposta depende, em parte, dela mesma, mas na maior parte, da comunidade universitária. Ambas precisam conceituar com mais precisão o papel de uma TV operada pela universidade, para que ela serve, a que necessidades atende. Com certeza, esse papel está muito além do mero espaço laboratorial para capacitação de estudantes, ou da ferramenta de comunicação institucional para uso de reitorias. Essas são duas aplicações legítimas da TV universitária, mas não devem ser dominantes, muito menos exclusivas. 

Televisão múltipla e plural 
Assim como uma universidade, por modesta que seja, encerra um mundo de diversidades, a televisão universitária também pode ser múltipla e plural, oferecendo informação, educação e entretenimento compatíveis com o rigor que se espera de uma instituição de ensino superior. Pode veicular um jornalismo diferenciado, que estabeleça novos padrões, ao menos na cobertura de educação. Pode dinamizar o esporte universitário, o teatro e a música (de onde surgiram mesmo a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o CPC, Chico Buarque, Caetano, Gil?). Pode divulgar uma infinidade de serviços gratuitos ou de baixo custo para a população: médicos, psicológicos, odontológicos, jurídicos, etc. Pode permitir experimentos de professores e estudantes, e fazer a permanente análise crítica do próprio sistema televisivo, falando ao mesmo tempo para o público interno e o público geral. 

Essa é a televisão universitária do futuro, que surgirá se a atual fizer a opção correta na encruzilhada em que se encontra. Se optar, como dito acima, pelo caminho do profissionalismo e de sua consolidação como empreendimento sério de comunicação educacional, superando a condição de mero apêndice laboratorial para os cursos de mídia ou de simples veículo de propaganda – comercial para universidades, pessoal para dirigentes. Porque o outro caminho, o do continuísmo, o da indefinição permanente, não a levará a nada, exceto aos trancos e barrancos, a marcar passo ou a voltar atrás. É descaminho, não opção de avanço. 

Se a TV universitária não explorar as possibilidades que já tem diante de si, e que terá muito mais com a televisão digital, algum outro setor da TV ocupará os seus espaços, inexoravelmente. A demanda por educação no Brasil só aumentará, na razão do crescimento que o país experimentar. Aumentarão as exigências para as instituições de ensino atuais e surgirão novas instituições, ampliando o contingente universitário e suas necessidades de formação e de atualização pós-formatura. Aumentará a necessidade de bom ensino básico, médio e profissionalizante. Aumentará, mais e mais, a obrigação de capacitar docentes, servidores e técnicos da educação. Alguém atenderá toda essa demanda, se a TV universitária não perceber que esse papel é seu. 

Programação cultural 
A outrora chamada televisão educativa, por exemplo, é forte candidata. Sozinha na área da TV educacional entre 1967, quando foi criada na radiodifusão pelo Decreto-Lei 236, e 1995, quando surge a TV universitária na cabodifusão, ela foi progressivamente abandonando os seus compromissos com a educação formal e extinguindo os telecursos de sua grade de programação, para converter-se em televisão cultural, educativa em sentido muito amplo, apenas complementar à escolarização. Avançou tanto nesse rumo que passou a recusar a própria identidade de televisão educativa, preferindo nomear-se como televisão pública, em contraste com a televisão comercial privada.  

Não agiu dessa forma por algum impulso maléfico de dirigentes, de trair os seus propósitos e princípios. Abandonou a teleducação porque a tecnologia televisiva, no estágio de desenvolvimento em que se encontrava, permitia apenas a comunicação unidirecional do professor no estúdio para os alunos nas tele-salas, muitas das quais sequer contavam com monitores. Não permitia que os alunos fizessem perguntas e tirassem suas dúvidas. Inexistindo a interatividade entre educandos e educadores, tornou-se impossível um efetivo processo de ensino-aprendizagem, de avaliação de desempenho, de educação em sua plenitude. Assim, a mudança para uma programação cultural, sem responsabilidades educativas formais, tornou-se inevitável. 

No entanto, aí está a televisão digital, introduzindo a possibilidade de interação entre telespectador e emissora, teoricamente em grau equivalente à que existe entre alunos e mestres na educação à distância via internet. Não no começo, mas com o tempo, a TV digital dará um grande salto na comunicação interativa. O público poderá perguntar, opinar, solicitar, até mesmo enviar seus próprios vídeos, trocando a postura passiva por uma audiência estimulantemente ativa. A bidirecionalidade no fluxo de comunicação enterrará a unidirecionalidade empobrecedora. E quando houver diálogo através da TV, em vez do monólogo atual, haverá um vasto campo para a teleducação. 

Some-se essa funcionalidade à da multiprogramação, isto é, a possibilidade de que uma emissora transmita várias programações simultâneas, por canais diferentes. É o que já fazem atualmente, na TV por assinatura, emissoras como Telecine, SporTV, Premiére, Discovery, HBO, Cinemax e outras – não por acaso, utilizando da tecnologia digital já aplicada nas redes de cabo ou nas transmissões via satélite, que otimiza enormemente a capacidade de tráfego desses sistemas e favorece a multiplicidade de canais. A digitalização da TV aberta terrestre permitirá as mesmas funcionalidades e, de olho nelas, emissoras educativas, como a TV Cultura de São Paulo, já anunciam a disposição de dedicar um canal exclusivamente para a teleducação. Permitirá a TV universitária que os primeiros telecursos de nível superior sejam oferecidos pelas suas primas ricas? Ou cuidará ela mesma de ser senhora e rainha no terreno educacional que é seu por definição? 

Aprofundar a segmentação 
Por outro lado, o surgimento de outros canais não-comerciais de finalidade pública, como os legislativos (TV Senado, TV Câmara, TVs de Assembléias e Câmaras Municipais), os institucionais (NBR, TV Justiça, TV Brasil) e os comunitários (já presentes em cerca de 80 cidades brasileiras), redefiniu o campo público da televisão e introduziu nele um conceito de segmentação que ainda foi pouco explorado. Se esses canais competirem entre si e com os educativos e universitários, veiculando programações genéricas semelhantes para complementar o pouco que fazem de específico, a autofagia vai destruí-los. O avanço para o campo público está no aprofundamento da segmentação, com cada canal fazendo o melhor do que lhe é próprio. Ninguém mais habilitado, portanto, para tratar melhor dos conteúdos universitários do que a TV universitária.  

Identidade, segmentação, profissionalismo, qualidade, poder de sedução. Estes são os desafios que a televisão universitária tem de enfrentar. Que a inteligência sobre a qual a universidade se funda seja capaz de entender que ela não pode enfrentá-los sozinha. A TV universitária só será uma grande televisão educativo-cultural do Brasil se for, antes, o que ainda não é: a televisão preferida da própria universidade.

Hélio Costa, o ministro intocável das Organizações Globo

Após ser reconduzido ao cargo pelo presidente Lula, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, parece que resolveu sair da penumbra. Em menos de um mês, o homem de confiança da TV Globo já comprou três polêmicas enviesadas: criticou de forma inábil a televisão estatal venezuelana, criando uma saía justa à diplomacia brasileira; agrediu o Coletivo Intervozes, uma ativa entidade de luta pela democratização da mídia; e desrespeitou o Fórum das TVs Públicas, encabeçado pelo Ministério da Cultura e a Radiobrás, ao defender a estranha criação da TV do Executivo. Estas atitudes intempestivas e conversadoras só atestam que o governo errou novamente ao confirmar seu nome para o estratégico Ministério das Comunicações. 

Todos estes tropeços tiveram origem no debate sobre a urgência da montagem de uma rede pública de TV como forma de ser contrapor às manipulações da ditadura midiática no Brasil. Talvez de forma desatenta, o atual ministro deixou aflorar a sua conhecida defesa dos monopólios dos meios de comunicação. O que antes ele fazia nos bastidores, privilegiando os “latifundiários” do setor – como na perseguição às rádios comunitárias, na imposição do restritivo modelo japonês de TV digital, no cerceamento ao debate sobre a democratização da mídia e em outros episódios sombrios –, agora ele trouxe à tona de maneira agressiva e explícita. Sentindo-se provocado, o intocável representante das Organizações Globo escancarou sua face. 

Veneno conservador 
Na inábil briga com o governo venezuelano, o ministro fez questão de destilar o seu veneno conservador e anticomunista. Ao ser questionado sobre sua proposta de TV do Executivo, atacou: “TV estatal é o que o Chávez faz, é o que se faz em Cuba”. Num afronta destemperado, disse que a televisão venezuelana “não é ruim, é péssima. Para rir, tem grande utilidade. É melhor do que o Chaves mexicano”, referindo-se ao famoso programa humorístico. Diante da reação do embaixador da Venezuela, Julio García Montoya, que pediu respeito ao país-irmão, ele esbanjou arrogância. Sugeriu ao embaixador “dobrar a língua antes de se referir a uma pessoa que, além de ministro, é senador da República, eleito com 3,5 milhões de votos”. 

Num comunicado ao Itamaraty, Montoya ironizou as grosserias. Além de criticar a manipulação da mídia privada – “um instrumento da lógica conspirativa mundial contra o processo revolucionário venezuelano” –, ele alfinetou: “Não tem sentido esclarecer o papel da televisão privada, pois como o ministro Costa foi empregado da TV Globo ele conhece bem”. Rejeitando o seu “desatino diplomático e óbvia ignorância”, também relatou as iniciativas do governo bolivariano para democratizar os meios de comunicação. Citou “a explosão de canais públicos e comunitários a partir de 1999”, controlados por “grêmios, associações e ONGS, que se sustentam através de equipes comunitárias de produção áudio-visual independente”. 

Ao final, o embaixador cobra do “governo do Brasil uma satisfação” para o incidente e diz “acreditar que o ministro Costa teve um deslize emocional produto da pressão dos jornalistas que o encurralaram com perguntas sobre a natureza pública e independente de sua proposta [TV do Executivo]”. O sintomático no caso é que o atual ministro, funcionário nomeado de um governo que mantém amigáveis relações com o país vizinho, nunca tenha se pronunciado contra a mídia da Venezuela, que instigou o frustrado golpe de abril de 2002. Crítico ácido da TV venezuelana, ele também nunca condenou a ação golpista da mídia brasileira na eleição presidencial de 2006, talvez devido a sua cumplicidade com a famiglia Marinho.   

Avesso à democracia 
Na seqüência, durante audiência pública realizada pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, em 28 de março, o desajustado ministro acusou levianamente o Coletivo Intervozes, uma organização não-governamental que adquiriu respeito na sociedade em função da sua luta séria e contínua pela democratização da mídia. Avesso às críticas, disparou contra a entidade, lembrando os algozes da ditadura militar. “Quem é que financia esse movimento? Quem é que financia esse grupo para poder estar seis, setes meses na Europa? Como é que andam de primeira classe? Eles correm aqui e colocam na mesa da cada deputado um documento fazendo ataques duros”, esbravejou. 

De bate-pronto, o Coletivo Intervozes, composto por jovens lutadores que se dedicam voluntariamente a uma nobre causa, retrucou: “Nossos integrantes jamais utilizaram recursos para ‘passar meses na Europa’ ou ‘viajar de primeira classe’. A afirmação injuriosa, feita em espaço institucional da mais alta relevância, é fato grave e inaceitável”. Após informar que as suas contas estão abertas e lamentar que “o ministro e senador Helio Costa não julgue ser ‘direito’ das organizações da sociedade civil se fazerem presentes nas audiências públicas”, a entidade declarou que usará “os meios disponíveis e necessários à retratação desta acusação”. Um processo por injuria até que cairia bem contra o “intocável” apadrinhado da TV Globo! 

TV pública sabotada 
Como já foi dito, por detrás destes arroubos encontra-se o debate sobre a criação de uma rede pública de televisão no país. Essa demanda, tão antiga, sempre foi sabotada pelo ministro Hélio Costa. Em função da descarada manipulação da ditadura midiática nas eleições do ano passado, a idéia ganhou novo ímpeto. O próprio presidente Lula, que nutria ilusões sobre o papel da mídia, parece que acordou para esta aberração antidemocrática e acelerou os esforços governamentais. Talvez ciente das resistências do seu ministro, o projeto ficou a cargo do Ministério da Cultura, da Radiobrás e da Casa Civil, que montaram o Fórum das TVs Públicas reunindo inúmeras entidades da sociedade civil – inclusive o atacado Coletivo Intervozes. 

Para surpresa e revolta dos envolvidos neste projeto democratizante, no momento que o Fórum ultimava a sua proposta o ministro defendeu, de maneira desrespeitosa, a montagem da TV do Executivo, a um custo estimado de R$ 250 milhões. Essa atitude premeditada, ao gosto dos monopólios privados, serviu apenas para criar uma confusão conceitual entre a televisão pública e a estatal – ambas previstas no artigo 221 da Constituição. A primeira já existe, através da emissora NBR vinculada à Radiobrás, e precisaria, isto sim, ser reforçada via imediata transmissão no espectro aberto. Já a segunda urge ser criada e, para ser pública de fato, precisaria ter autonomia financeira e de gestão, sendo controlada pelas organizações da sociedade civil. Com a sua ação atabalhoada, o intocável da Globo visou unicamente sabotar a rede pública de TV. 

Na sua bronca contra o Coletivo Intervozes, talvez o que tenha irritado o ministro foi a esclarecedora nota divulgada pela entidade. “É completamente despropositada a criação de uma nova rede estatal, dobrando os esforços que o próprio governo já faz, desperdiçando recursos do tesouro e, principalmente, desviando o foco da principal necessidade do país, que é a criação de um Sistema Público de Comunicações, forte e independente… Na proposta do ministro Hélio Costa transparece a completa falta de sintonia entre os membros do próprio governo no que diz respeito às políticas de comunicação. Mais do que isso, atesta uma vez mais a oposição absoluta do ministro a qualquer proposta de caráter democratizante”. 

O poder hegemônico da Globo 
Diante destes episódios, a manutenção do senador Hélio Costa a frente do Ministério das Comunicações só se justifica – mas não convence – em decorrência do enorme poderio das Organizações Globo, que já transformou muitos governos em dóceis reféns. Como é descrito no livro “Rede Globo, 40 anos de poder e hegemonia”, organizado por Valério Brittos e César Bolaño, esta corporação goza de exagerado poder político no Brasil. Ela teve início com o lançamento do jornal O Globo em 29 de julho de 1925, ganhou musculatura com a criação da Rádio Globo do Rio de Janeiro em dezembro de 1944 e conquistou uma hegemonia avassaladora na mídia nacional a partir da fundação da TV Globo, em 26 de abril de 1965. 

Através de um nebuloso acordo com o grupo estadunidense Time-Life, que era vedado pela Constituição, mas que nunca foi investigado pelo Congresso Nacional, e do ostensivo apoio da ditadura militar, a Rede Globo desbancou os concorrentes, conquistou recordes de audiência, abocanhou mais de 60% das verbas publicitárias do Estado e construiu um império – o quarto maior do mundo entre as lucrativas empresas de televisão. Com a sua força descomunal, ela interferiu em todos os processos políticos no país, ajudando a eleger presidentes (como Collor de Mello e FHC), a montar vários ministérios (nomeação de Maílson da Nóbrega na presidência José Sarney) e a desestabilizar e enquadrar distintos governos.  

Quando Ulisses Guimarães questionou a indicação de Antonio Carlos Magalhães, coronel de uma afiliada da TV Globo na Bahia, para o Ministério das Comunicações, Tancredo Neves justificou: “Eu brigo com o papa, brigo com a Igreja Católica, brigo com o PMDB, com todo mundo, eu só não brigo com o Doutor Roberto Marinho”. Numa entrevista ao jornal The New York Times, o próprio “semi-deus” da TV Globo gabou-se de usar seu império da comunicação para interferir nos rumos políticos do país. “Sim, eu uso o poder, mas sempre faço isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas, buscando os melhores caminhos para o país e seus Estados. Nós gostaríamos de ter poder para consertar tudo o que não funciona no Brasil. Nós dedicamos todo o nosso poder para isso”, confessou o prepotente Roberto Marinho.

 

Uma cria do nefasto império 
O senador Hélio Costa, reconduzido agora ao cargo pelo presidente Lula, é uma cria deste nefasto império midiático. Como jornalista, exerceu vários postos de comando na TV Globo, inclusive como chefe de sua redação em Nova York (EUA), e tornou-se dono de uma estação de rádio em Minas Gerais. Na sua triste gestão no Ministério das Comunicações, ele abortou os tímidos passos democratizantes dados por seus antecessores no primeiro governo Lula – Miro Teixeira e Eunício de Oliveira. Ele nunca escondeu seus vínculos com as emissoras de TV, em especial com a Rede Globo, com quem se reúne periodicamente.

Entre outras iniciativas opostas à democratização da mídia, ele sabotou o Grupo Gestor responsável pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), impondo o modelo japonês que reforça a concentração privada no setor, dificulta a criação de novos canais e reitera a dependência tecnológica do Brasil. Na prática, Hélio Costa atuou como lobista da indústria japonesa NET e da TV Globo. O ministro ainda marcou sua gestão pela violenta repressão às rádios comunitárias – cerca de 10 fechadas por dia, em média, em 2006, entesourou os R$ 5 bilhões do Fundo de Universalização das Telecomunicações (FUST) e inviabilizou o processo de licitação das faixas de freqüência para internet de banda larga sem fio. 

Diante da manipulação mídia, o presidente Lula apresentou na campanha pela sua reeleição um programa avançado para a área de comunicação. Entre outras propostas, ele assumiu o compromisso de redefinir o marco regulatório do setor, investir numa rede pública de qualidade, incentivar a pluralidade nos meios de comunicação, não criminalizar as rádios comunitárias e promover um plano nacional de inclusão digital. A manutenção de Hélio Costa a frente do Ministério das Comunicações, porém, coloca em dúvida estes compromissos. O atual ministro não combina com qualquer proposta de democratização da mídia no país. Como afirma um recente manifesto do Coletivo Intervozes, “com Hélio Costa, não dá”. 

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

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