A TV digital e a oportunidade perdida

Hoje mais do que nunca a transformação necessária ao desenvolvimento e consolidação da democracia brasileira passa por uma ampla reforma no setor das Comunicações. Isso se dá pelo fato da produção e difusão de informação e cultura envolverem direitos e liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, o direito à informação, a liberdade de imprensa, o direito à privacidade e, e englobando todos eles, o direito humano à comunicação. 

O reconhecimento desses direitos (e o Brasil o faz, pelo menos em seus princípios constitucionais e tratados internacionais do qual é signatário) deveria imputar ao Estado brasileiro e aos poderes da República responsabilidades diversas materializadas na forma de normas infra-constitucionais e políticas públicas capazes de equilibrar, naquilo que chamamos de mídia, a circulação de informações de maneira que este processo reflita tanto o conjunto da sociedade brasileira quanto suas especificidades de classe, etnias, raças, regiões, gêneros, ideologias e valores morais e éticos. 

Harmonizar estas responsabilidades não é tarefa fácil, correndo-se sempre o risco de abusos por parte do Estado, que pode exercer um poder arbitrário, como ainda o fazem de forma sistemática alguns países totalitários. No Brasil, apesar de existirem ainda focos inaceitáveis de violações (especialmente onde impera o coronelismo), a liberdade de opinião e imprensa, nos últimos anos, dá demonstração de solidez. E, a despeito da tentativa dos setores que detêm a hegemonia na circulação de informações de imputar ao governo Lula tentações autoritárias, os fatos provam que os últimos quatro anos foram de ampliação das liberdades civis. Hoje, o maior impeditivo ao exercício destas liberdades é de outra ordem: a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos e sua finalidade majoritariamente comercial, ambas a maior forma de censura dos nossos tempos. 

Violação permanente

Este quadro se materializa em diversas formas e atinge em cheio o meio de comunicação mais importante do Brasil, a televisão. A fragilidade da legislação, datada da década de 60, e a sua má implementação geram diversas distorções. Exemplo claro é a aprovação e renovação das concessões, feitas muitas vezes por parlamentares donos de emissoras de Rádio e TV em um processo automático, sem critérios de avaliação, sem a participação da sociedade e ferindo a regra constitucional. Sem este controle, os atuais concessionários seguem abusando da publicidade ou da prática de estelionato (muitas vezes pouco sutil, diga-se), cometendo ilegalidades flagrantes como a sublocação de espaço nas grades de programação. 

Não bastasse, como uma cereja no bolo do quadro caótico, o capítulo de Comunicação Social da Constituição de 1988 ainda não foi regulamentado (após 19 anos), deixando sem efetivação princípios como a proibição ao monopólio, a prioridade aos conteúdos informativos, educacionais e culturais, a promoção da cultura regional e independente e a complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal. 

Num quadro onde a violação ao direito humano à comunicação é regra e não exceção, a migração para a plataforma digital da transmissão e recepção dos sinais de televisão aberta, por suas diversas características, inaugurou uma janela de oportunidades para que o Estado brasileiro reorientasse as políticas de comunicação, agora sob a perspectiva do interesse público. Em primeiro lugar, porque a TV digital necessariamente demanda a reorganização do espectro de freqüências (por onde trafegam os sinais de rádio e televisão), permitindo que mais programações sejam transmitidas (até seis vezes mais do que as existentes hoje). Em segundo, porque possibilita o oferecimento de serviços interativos de relevância social hoje só disponíveis pela Internet. Em terceiro, porque induzirá um processo econômico de grande escala que pode ser usado como um indutor do desenvolvimento tecnológico e científico do país. 

A televisão digital, entretanto, apesar de suas potencialidades, não é uma dádiva que, necessariamente, trará benefícios à sociedade. Seus resultados dependem de decisões políticas. Algumas delas já foram tomadas. Outras, tão essenciais quanto, ainda não estão consolidadas, especialmente em função da incapacidade do marco regulatório vigente de absorver a migração para a televisão digital. 

A história recente da TV digital no Brasil

O Decreto Presidencial (4.901/2003) que instituiu o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) possuía méritos inegáveis. Mencionava princípios como o desenvolvimento científico-tecnológico, a inclusão social, educação à distância e a democratização da informação. A partir dele, foram criados consórcios de universidades e centros de pesquisa que receberam recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico para as Telecomunicações (Funttel) a fim de  produzirem tecnologias nacionais que pudessem ser utilizadas na TV digital. Ao mesmo tempo, a sociedade civil foi chamada a participar do processo, através da criação de um Conselho Consultivo. 

O desenrolar das atividades previstas no Decreto 4.901, porém, se mostrou bem aquém das expectativas dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação. Houve pouco dinheiro para as pesquisas e seus repasses sofreram vários atrasos. O Conselho Consultivo não contou com infra-estrutura para seu funcionamento, até que finalmente deixou de ser convocado sem que a sociedade civil pudesse se pronunciar sobre os diversos assuntos envolvidos com a TV digital. Por fim, a posse do ministro Hélio Costa, em um momento onde o governo Lula sofria forte perseguição da grande mídia privada, significou a consolidação dos interesses dos radiodifusores privados (em especial as Organizações Globo), que conseguiram emplacar toda as suas reivindicações. 

O ápice desta “virada” no processo foi o Decreto Presidencial 5.820/2006, promulgado em 29 de junho de 2006 durante a realização da Copa do Mundo da Alemanha, quando todas as atenções estavam voltadas para o futebol. Ele sacramentou a adoção da tecnologia japonesa na constituição da TV digital terrestre brasileira (aquela que irá substituir o serviço de TV prestado atualmente em sinal aberto).

Para a implantação do novo sistema, o Decreto estabeleceu as diretrizes do processo de transição. Nele, a norma concedeu a cada emissora que já possuía outorga para um canal analógico um novo canal digital, em caráter de consignação. A figura da consignação é inédita em se tratando de concessões públicas e permitiu que o governo entregasse novos canais para os atuais radiodifusores sem levar o assunto para deliberação do Congresso Nacional, como determina nossa Constituição. A previsão é que o processo ocorra das maiores para as menores cidades mas nenhuma consignação foi feita ainda pelo fato da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estar procedendo estudos sobre a melhor ocupação do espectro.

Aqui começam os primeiros problemas. Na TV digital, um único canal de televisão passa a comportar a transmissão de várias programações simultâneas, variando a quantidade de acordo com a definição da imagem. Se optarmos pela qualidade de um DVD, no espaço hoje ocupado por uma única programação, é possível colocar pelo menos quatro. Frente a esta possibilidade, por que entregar este espaço todo para os atuais radiodifusores e não fragmentar as faixas, permitindo a entrada de novas emissoras (privadas, estatais e públicas)? A perdurar a escolha atual, esta segunda opção estará comprometida, pois haverá pouquíssimo espaço disponível para novas emissoras no período de transição, especialmente nos grandes centros urbanos. Ao invés de democratização teremos uma concentração ainda maior do espectro reservado à TV aberta. 

Contraditoriamente, o Decreto não otimiza o uso do espectro para incluir mais fontes de informação mas prevê que as atuais emissoras transmitam várias programações simultaneamente, entrando em conflito com o Decreto-Lei 236, de 1967. Esta norma impede um mesmo concessionário de possuir mais de um único canal por estado, numa clara restrição à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Também está prevista na norma a possibilidade de haver interatividade, contrariando o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que define a radiodifusão como um serviço unidirecional. Porém, mais preocupante é o fato do governo permitir que a interatividade seja usada exclusivamente de acordo com os planos comerciais das emissoras. Ou seja, a TV interativa estará disponível apenas para quem puder pagar por um “canal de retorno” (banda larga) e comprar um terminal de acesso com modem, memória, HD, etc. Estaremos criando a categoria dos excluídos da TV interativa. Ao mesmo tempo em que deixaremos de usar os recursos interativos para prover diversos serviços de utilidade pública. 

Outro conflito presente no Decreto é de caráter político e ético. O Ministério das Comunicações é o responsável por definir quais emissoras estarão com a sua documentação atualizada, para que possam receber a consignação do novo canal. Ocorre que o titular da pasta, Hélio Costa, foi durante anos empregado das Organizações Globo, é dono de uma emissora de rádio em Barbacena e seu suplente (que financiou parte de sua campanha ao Senado) é dono das retransmissoras da Bandeirantes em Goiânia e do SBT em regiões do interior de Minas Gerais.

Por fim, o Decreto cria problemas também na definição do prazo de 10 anos para que as a finalização da transição do analógico para o digital, embora tudo indicar que o tempo necessário para que todos os usuários comprem os conversores ou troquem seus aparelhos televisores será maior.

As pesquisas brasileiras

Em paralelo à adoção da tecnologia japonesa para a TV digital (nome fantasia: ISDB) foi firmado um acordo com o governo japonês que visa definir como será a parceria entre as empresas brasileiras e nipônicas. Tal acordo, que deveria ter passado pelo Congresso Nacional, como define nossa Constituição, é vago, não imputando qualquer responsabilidade aos japoneses, não ficando claro em momento algum o nível da parceria ou se haverá ou não transferência de tecnologias. Ao não definir tais critérios e a obrigatoriedade da formação de mão-de-obra qualificada, a implantação da TV digital abre a possibilidade da instalação de meras montadoras, mantendo nossa histórica dependência de tecnologias importadas. Também há o risco do isolamento. Até agora, o Brasil é o único país do mundo, além do próprio Japão, a adotar o ISDB.

Mais recentemente, o governo criou um fórum para confecção das regras técnicas de implantação do ISDB no Brasil. Para participar deste fórum é preciso pagar (sic) e dele fazem parte apenas as empresas de equipamentos e radiodifusores, além de duas vagas para universidades. O primeiro problema é que o próprio governo tem presença consultiva em um órgão que definirá uma parte importante de uma política pública. O segundo é o veto à participação da sociedade civil. E, pela pouca informação disponível (quase tudo obtido em conversas informais), o que se sabe é que teremos a utilização de apenas duas tecnologias nacionais: o middleware Ginga e a implantação, no ISDB, do codec H264.

Canais da União

No Decreto 5.820/2006 consta que “poderá haver” a criação de quatro canais da União, um para o Poder Executivo, outro para educação, um para cultura e um último para a cidadania. É importante destacar que estes canais serão geridos pela União, sendo estatais e não públicos. Inversamente, não há nenhuma menção sobre levar para a TV aberta os canais de acesso público já existentes na TV a cabo (TV Câmara, TV Senado, TVs de assembléias legislativas e câmaras de vereadores, TV Justiça, canais comunitários e canais universitários).

Para ir ao ar, os canais da União deverão ocupar o espaço final do UHF (60-69). Mas, antes será preciso retirar de lá o serviço de link entre as geradoras analógicas e as suas estações repetidoras e retransmissoras (Serviço de Repetição de TV – RpTV), o que implicará em custos para os radiodifusores. Isso sem contar que tais canais são os que geram mais custos para a sua ocupação, o que implica na necessidade de utilizar uma maior potência (requerida pelos canais mais altos), aumentando os custos de transmissão. Assim, o Decreto preservou os canais mais baixos (e de transmissão mais barata) para as emissoras privadas, deixando os maiores desembolsos com a União.

Mudança necessária

Se a ampliação de fontes de informação e cultura não foi até agora uma opção política dos governantes brasileiros, com a tecnologia digital há poucos motivos cabíveis para não realizá-la. A tecnologia permite que isso aconteça, mas, sendo esta apenas um instrumento, é preciso que as autoridades responsáveis, especialmente o presidente da República, inovem frente aos seus antecessores. Se a história do Brasil é marcada pela atuação do Estado em prol dos grupos privados de mídia, um governo que se anuncia popular deve necessariamente adotar outro rumo. 

A democratização das comunicações é compromisso assumido pelo próprio presidente de forma explícita em seu programa de governo: “O governo deve assumir o compromisso com um plano vigoroso e específico de democratização da comunicação social no Brasil como uma de suas principais propostas para um segundo mandato e de fortalecimento da democracia” (Programa setorial de Comunicação e Democracia, disponível no sítio do PT). 

O mesmo programa cita explicitamente a necessidade de encarar a chegada da convergência tecnológica como oportunidade para “dar novas soluções a velhos e novos problemas” apontando que o novo modelo setorial “deverá corrigir as atuais distorções existentes na organização e no funcionamento destes serviços e orientar as profundas transformações que estão sendo introduzidas pela tecnologia digital”. 

A correção destas distorções passa, como afirmamos anteriormente, por um conjunto de políticas que coloque a comunicação a serviço das maiorias e que respeite o espectro eletromagnético como bem público. Nesse sentido, o próprio programa de governo para o segundo mandato aponta duas prioridades para levar a cabo este objetivo. A primeira é a reformulação do marco regulatório das comunicações em coerência  com o  direito humano à comunicação. A segunda é o fortalecimento dos sistemas democráticos de mídia, especialmente de um sistema público forte, com autonomia editorial, financiamento público e estável, e gestão participativa. 

Mais do que uma obrigação do governo frente aos compromissos assumidos durante a campanha, o projeto de democratizar a mídia no país é de responsabilidade de todos aqueles que defendem uma sociedade justa e democrática, especialmente dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais. Frente à dura disputa de projetos que já está em curso para os próximos anos, estas forças políticas não podem prescindir de buscar transformações radicais neste que é um dos campos mais importantes da luta ideológica da atualidade.  

Diogo Moyses, Gustavo Gindre e Jonas Valente são coordenadores do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

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